UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO - Sigmund Freud

UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO - Sigmund Freud

Marcos Baptista

Apresento um recorte dos escritos de Sigmund Freud (1856 - 1939), onde este faz um relato de caso clínico, uma paciente por ele atendida o qual utilizou a Hipnose como recurso terapêutico. Este breve relato foi extraído das publicações pré-psicanalíticas.

Sigmund Freud (1856 - 1939) | https://la-philosophie.com/


UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO (1892-93)


Nas páginas que se seguem, proponho-me trazer a público um caso isolado de cura pela sugestão hipnótica, pois, devido a uma série de circunstâncias concomitantes, esse caso foi mais convincente e mais claro do que a maioria dos nossos tratamentos nos quais houve êxito.

Já havia vários anos que eu conhecia a senhora a quem pude, desse modo, proporcionar atendimento numa fase importante de sua existência, e ela permaneceu sob minha observação, posteriormente, por vários anos. O distúrbio do qual foi aliviada pela sugestão hipnótica tinha surgido, pela primeira vez, algum tempo antes. E havia em vão lutado contra ele e, devido a tal problema, tinha sido forçada a uma limitação da qual depois, com minha ajuda, se viu livre. Um ano mais tarde, o mesmo distúrbio apareceu mais uma vez, e novamente foi superado da mesma forma. O êxito terapêutico foi valioso para a paciente e persistiu enquanto ela desejou levar a cabo a função afetada pelo distúrbio. Por fim, nesse caso, foi possível individualizar o mecanismo psíquico básico do distúrbio e correlacioná-lo com atos semelhantes na área da neuropatologia.

Posso agora deixar de falar por enigmas. Tratava-se de uma mãe que era incapaz de amamentar seu bebê recém-nascido, até haver a intervenção da sugestão hipnótica. Suas experiências com um filho anterior e com um outro, subseqüente, serviram de controle do êxito terapêutico, tal como raramente se consegue lograr.

A pessoa de que trata esse caso clínico é uma jovem senhora, entre vinte e trinta anos de idade, a quem eu conhecia desde os seus anos de infância. Sua capacidade, tranquilo bom senso e espontaneidade tornavam impossível que alguém, inclusive seu médico de família, a considerasse neurótica. Tendo em conta as circunstâncias que passo a relatar, devo classificá-la, segundo a apropriada expressão de Charcot, como uma hysterique d’occasion[6]. Essa categoria, como sabemos, não exclui uma admirável combinação de qualidades e de uma saúde nervosa isenta de comprometimentos em outros aspectos.

Quanto a sua família, conheço sua mãe, que de modo algum é uma pessoa neurótica, e uma irmã mais nova, igualmente sadia. Um irmão sofreu de uma neurastenia[7] típica do início da idade adulta, o que arruinou sua carreira. Estou familiarizado com a etiologia[3] e a evolução dessa forma de doença, que encontro repetidamente, todos os anos, no meu exercício da medicina. Tendo começado a vida com uma boa constituição, o paciente se defronta, na puberdade, com as dificuldades sexuais próprias da idade; seguem-se anos de sobrecarga de trabalho, como estudante; ele se prepara para exames e sofre um ataque de gonorreia, seguido de um súbito início de dispepsia[5], acompanhada de uma constipação rebelde e inexplicável. Depois de alguns meses, a constipação[4] é substituída por sensação de pressão intracraniana, depressão e incapacidade para o trabalho. Daí em diante o paciente torna-se cada vez mais ensimesmado e seu caráter vai ficando sempre mais fechado, até ele se tornar um tormento para a família. Não tenho certeza se não é possível adquirir essa forma de neurastenia com todos os seus elementos; portanto, sobretudo porque não conheço os demais parentes da minha paciente, deixo em aberto a questão de podermos supor que, nessa família, estaria presente uma disposição hereditária para a neurose.

Ao chegar a época do nascimento do primeiro filho de seu casamento (que era um casamento feliz), a paciente pretendia amamentar o bebê. O parto não foi mais difícil do que o habitual numa primípara[9] já não tão jovem; foi concluído por fórceps. Entretanto, embora sua constituição física parecesse favorável, ela não conseguia amamentar satisfatoriamente a criança. Havia pouca produção de leite, surgiam dores quando o bebê era posto a mamar, a mãe perdeu o apetite e se mostrava alarmantemente sem vontade de se alimentar, tendo noites agitadas e insones. Por fim, após uns quinze dias, a fim de evitar algum risco maior para a mãe e a criança diante do fracasso, abandonou-se a tentativa e a criança passou a ser alimentada por uma ama-de-leite. Com isso, todos os problemas da mãe desapareceram. Devo acrescentar que não tenho condições de fazer um relato, nem como médico nem como testemunha ocular, dessa primeira tentativa de amamentação.

Três anos mais tarde, nasceu o segundo bebê; nessa ocasião, circunstâncias externas somaram-se ao fato de ser desejável evitar a ama-de-leite. Mas os esforços da própria mãe para amamentar a criança pareciam ainda menos bem-sucedidos e pareciam provocar sintomas ainda mais desagradáveis do que da primeira vez. A paciente vomitava todo o alimento ingerido, ficava inquieta quando ele era trazido até sua cama e era completamente incapaz de dormir. Ficou tão deprimida com sua incapacidade que seus dois médicos de família — médicos amplamente conceituados em Viena, como o Dr. Breuer e o Dr. Lott — não queriam nem ouvir em prosseguir com alguma outra tentativa mais prolongada nessa ocasião. Recomendaram apenas que se fizesse mais um esforço — com o auxílio da sugestão hipnótica; e, no entardecer do quarto dia, fizeram com que eu fosse apresentado profissionalmente, de vez que pessoalmente eu já era conhecido da paciente.

Encontrei-a deitada no leito, as faces ruborizadas, irritada com sua incapacidade de amamentar o bebê — incapacidade que aumentava a cada tentativa, mas contra a qual ela lutava com todas as suas forças. A fim de evitar os vômitos, não tinha ingerido nenhum alimento durante todo aquele dia. Seu epigástrio[1] estava distendido e apresentava-se sensível à pressão; a palpação revelou motilidade[9] anormal do estômago; de tempos em tempos, havia eructação[2] inodora, e a paciente se queixou de ter tido mau gosto constante na boca. A área de ressonância gástrica estava consideravelmente aumentada. Longe de ser bem recebido como um salvador em hora de necessidade, vi-me sendo recebido de má vontade e não pude contar com muita confiança por parte da paciente.

Logo tratei de induzir a hipnose por meio de fixação do olhar, ao mesmo tempo que fazia constantes sugestões referentes aos sintomas do sono. Três minutos depois, a paciente estava deitada, com a fisionomia tranquila de alguém que dorme profundamente. Não me recordo de ter feito quaisquer testes de catalepsia e outros sintomas de flexibilidade. Utilizei a sugestão para contestar todos os temores dela e os sentimentos em que esses temores se baseavam:

“Não tenha receio! Você vai poder cuidar muito bem do seu bebê, ele vai crescer forte. O seu estômago está perfeitamente calmo, o seu apetite está excelente, você já está na expectativa da próxima refeição etc.”

A paciente continuou dormindo, o que permiti por alguns minutos, e, depois que a despertei, ela revelou amnésia para o que ocorrera. Antes de sair de casa, vi-me na necessidade de contestar um comentário preocupado do marido da paciente; achava ele que os nervos de uma mulher poderiam ser totalmente arruinados pela hipnose.

No começo da noite seguinte, foi-me dito algo que me pareceu uma garantia de êxito, mas que, muito estranhamente, não tinha causado nenhuma impressão na paciente nem nas pessoas da família. Na noite anterior, ela havia feito uma refeição, sem qualquer consequência prejudicial, dormindo placidamente, e, na manhã seguinte, por sua própria iniciativa, tinha-se alimentado e amamentado a criança impecavelmente. No entanto, não suportou a refeição bastante farta do almoço. Nem bem a comida lhe foi trazida e logo sua indisposição voltou; os vômitos começaram antes mesmo de ela tocar no alimento. Foi impossível colocar o bebê ao seio e todos os sinais objetivos eram os mesmos de quando eu chegara, na noitinha anterior. Não consegui nenhum resultado com minha argumentação de que a batalha já estava quase ganha, de que agora ela estaria convencida de que o problema podia desaparecer e que de fato havia desaparecido durante meio dia.

Produzi então a segunda hipnose, que a levou ao estado de sonambulismo, tão rapidamente como da primeira vez, e agi com maior energia e confiança. Disse à paciente que cinco minutos depois de minha saída, ela iria zangar-se com sua família e dizer com aspereza:

O que tinha acontecido com o jantar dela?
Será que pretendiam deixá-la passar fome?
Como poderia ela amamentar a criança, se ela mesma não tinha nada para comer? E assim por diante.

Na terceira tarde, quando retornei, a paciente recusou-se a prosseguir qualquer tratamento. Já não havia mais nenhum problema, disse ela: tinha um excelente apetite e muito leite para o bebê, não havia a menor dificuldade quando este era posto a mamar etc. Seu marido achou muito estranho que, depois de minha saída, na véspera, ela tivesse reclamado violentamente, exigindo comida, e tivesse censurado a mãe de um modo que não lhe era habitual. Todavia, acrescentou ele, tudo tinha estado muito bem desde então.

Não havia nada mais a ser feito por mim. A mãe amamentou a criança por oito meses; e com satisfação tive repetidas oportunidades de me inteirar de que ambos passavam bem. No entanto, eu achava difícil compreender, ao mesmo tempo que isto me aborrecia, o fato de jamais ter sido feita qualquer referência ao meu notável trabalho.

Um ano mais tarde, chegou a minha vez, quando o terceiro filho fez as mesmas exigências à mãe e esta foi incapaz de corresponder a elas, tal como nas ocasiões anteriores. Encontrei a paciente no mesmo estado do ano anterior, sentindo-se efetivamente exasperada consigo mesma, pois sua vontade nada conseguia fazer contra sua aversão aos alimentos e contra seus outros sintomas; e a primeira hipnose da tarde teve como único resultado fazê-la sentir-se mais desesperada. Mais uma vez, após a segunda hipnose, os sintomas foram eliminados tão completamente que não se fez necessária uma terceira hipnose. Também essa criança, que agora tem dezoito meses de idade, foi amamentada sem qualquer problema e a mãe tem gozado de boa saúde.

Em face desse êxito, a paciente e seu marido perderam o constrangimento e confessaram o motivo que havia determinado sua conduta em relação a mim.

“Eu me sentia envergonhada”, disse-me a mulher, “porque uma coisa como a hipnose podia obter resultado, ao passo que eu, com toda a minha força de vontade, não conseguia nada.”

Não obstante, não penso que ela ou o marido tenham superado a ojeriza à hipnose.


Sigmund Freud.


Glossário:

  1. Epigástrio: Uma das nove regiões anatômicas de superfície da parede abdominal, região superior e mediana do abdome, que vai do apêndice xifoide até o umbigo.
  2. Eructação: Arroto; excesso de gases no estômago ou na parte superior do intestino liberados pela boca.
  3. Etiologia: Estudo ou ciência das causas, cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de um determinado fenômeno.
  4. Constipação: Popularmente conhecida como Prisão de Ventre; sintomas são evacuações pouco frequentes e fezes pequenas e duras.
  5. Dispepsia: Distúrbio gastrointestinal que provoca sensação de dor ou desconforto na parte superior do abdome; muitas vezes recorrente, podendo ser descrito como indigestão, gases, saciedade precoce, queimação.
  6. Hysterique d’occasion: Termo francês à época, quando se utilizava o termo "histeria" como enfermidade, que classificava pessoas que acometiam da histeria em determinada circunstância, em ocasiões específicas e/ou pontuais.
  7. Neurastenia: Transtorno psicológico que provoca sintomas de perda geral do interesse, procrastinação, estado de inatividade ou fadiga extrema que atinge tanto a área física quanto a intelectual.
  8. Motilidade: Sinônimo de mobilidade; capacidade ou facilidade de se mover.
  9. Primípara: Fêmea que pariu ou vai parir pela primeira vez.

Fonte:


UM CASO DE CURA PELO HIPNOTISMO (1892-93)

EIN FALL VON HYPNOTISCHER HEILUNG NEBST BEMERKUNGEN ÜBER DIE ENTSTEHUNG HYSTERISCHER SYMPTOME DURCH DEN “GEGENWILLEN”

(a) EDIÇÕES ALEMÃS:

1892-93 Zeitschr. Hypnot., 1 (3), 102-7, (4), 123-9. (dezembro de 1892 e janeiro de 1893).

1925 G. S., 1, 258-72.

1952 G. W., 1, 3-17.

(b) TRADUÇÃO INGLESA:

“A Case of Successful Treatment by Hypnotism”

1950 C. P., 5, 33-46. (Trad. de James Strachey.)

A presente tradução inglesa constitui uma versão ligeiramente corrigida da que foi publicada em 1950.

Este artigo veio à luz quase exatamente na mesma época da “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud (1893a).




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