Sob uma lua de sangue

Sob uma lua de sangue

Vampiro: A máscara, 3ª edição; epílogo


"Tudo o que eu lhe disse é mentira, inclusive isto."

Estas foram as últimas palavras de Alisdair, cuspidas de sua boca enquanto eu golpeava suas costelas com o pedaço de uma cadeira quebrada. Esta deve ter sido a única verdade que eu ouvira dele. Afinal de contas, ele me disse que uma estaca no coração imobilizaria qualquer vampiro, e no entanto, lá estava ele, ainda se mexendo mesmo depois de eu afundar um tronco de cerejeira de mais de meio metro através do seu peito. Eu acho que ele não deveria ser capaz de fazer aquilo. Eu não entendo. Não entendo nada. Só sei que acabo de fazer uma coisa que provavelmente não deveria ter feito. Vagando suavemente através da janela entreaberta, os últimos vestígios das cinzas de Alisdair flutuam pela noite. Do lugar no chão onde eu estou sentada, posso ver a lua se erguendo acima da linha do horizonte. É uma lua crescente com as pontas voltadas para cima, uma silhueta gorda e um brilho alaranjado sangrento através da fumaça. Minha colega de quarto, Carol, diria que uma lua como essa é um símbolo do poder feminino e que a cor representa a magia inerente da menstruação, e assim por diante. Eu olho para a lua e imagino quão completamente imundo o ar precisa estar para que ela apresente este tom de vermelho. Eu me sinto até vagamente agradecida por não ter mais que respirar este veneno.

A brisa flutua pelo aposento, trazendo com ela o redor das ruas lá embaixo. Junto com ele, eu ainda posso sentir o cheiro de papel queimado no qual Alisdair se transformou quando acabei com ele. Eu acho que esse cheiro jamais deixará este lugar. Se eu permanecer aqui, mais cedo ou mais tarde ele vai me deixar louca. Mesmo estando morto, mesmo que eu tenha bebido até a última gota de seu sangue, de alguma forma ele ainda não se foi. Neste exato momento, ele ecoa em minha cabeça e se eu permanecer aqui, este eco vai se tornar mais e mais alto.

Certo, eu preciso ir embora, preciso me distanciar deste lugar onde matei Alisdair. Eu nem ao menos tenho certeza de por que eu o fiz, mas Deus sabe que ele deve ter feito alguma coisa para merecê-lo. Eu poderia mentir e dizer que ele mereceu isso por ter me transformado em uma vampira, mas isso seria um desrespeito às memórias que eu possuo dele. Quanto mais eu penso sobre isso, maior é a minha certeza de que algo me disse para encontrá-lo; eu tenho certeza de que esse mesmo algo disse a ele para me Abraçar ao invés de me matar. Talvez tenha sido este mesmo algo que me disse que eu precisava afundar aquele poste nas costelas dele e então tomar todo o seu sangue até secá-lo. Eu poderia quase jurar que escutei alguém aqui enquanto realizava a façanha, dizendo-me o que fazer mas não o porquê. Esta não é uma desculpa tão ruim para um assassinato, é? De qualquer modo, vamos encarar os fatos: mesmo pegando-o de surpresa, eu nunca deveria ter sido capaz de incomodar Alisdair, quanto mais matá-lo. Durante essas três semanas, desde que ele me Abraçou, eu o vi correr mais rápido do que carros de polícia e levantar seu piano com apenas uma das mãos. Eu, por outro lado, posso fazer minhas bochechas ficarem rosadas — e apenas se eu me esforçar muito. Ele deveria ser capaz de me impedir sem nem pensar nisso. Por que não o fez? Será que alguém impediu que ele se defendesse? Ou ele estava procurando por alguém que o matasse? Infelizmente, ele não pode mais me responder.

Deixe este lugar. Agora. O dinheiro está na gaveta do meio da escrivaninha — você vai ter que destroçar a madeira para alcançá-lo.

Não há mais ninguém aqui. Ninguém me viu assassinar Alisdair; ninguém entrou aqui desde então. Os vizinhos nunca nos incomodaram, então não podem ser eles.

Eu disse vá agora.

Ainda não há ninguém aqui, mas dane-se, eu não vou me arriscar. Eu me aproximo da escrivaninha, sem acreditar no que estou prestes a fazer. É uma linda peça; Alisdair me disse uma vez que ele a resgatara da casa de um marquês durante o Terror. Ele também me disse que se tornara um vampiro somente dois séculos atrás, na Inglaterra, e nunca colocara os pés na França. Na verdade, é tudo mentira. Eu imagino se posso acreditar em qualquer coisa que ele disse sobre o verdadeiro significado de ser um vampiro.

Esperando alguma resistência, eu puxo a maçaneta de bronze da gaveta do meio. Ela nem se move.

Rápido!

Quem quer que seja o meu patrono invisível, ele está com pressa. Fecho meus olhos e tento imaginar o fluxo de sangue em meus braços, aumentando minha força. Este é um truque que Alisdair me mostrou, mas que, honestamente, eu não aprendi muito bem.

Faça desse jeito, Celeste. Subitamente eu ouço a voz de Alisdair, sinto sua vontade direcionando a força do meu sangue dentro de mim. Isso não pode estar acontecendo. Ele está morto. Já era! Eu o matei, suguei-o até matá-lo. Não, Celeste. Eu estou aqui, e permanecerei com você para sempre, minha querida. Você vai precisar da minha ajuda — você tem tantas coisas a fazer, e sem mim, você nunca conseguirá. Seu outro amigo concorda comigo — e é por isso que ele fez com que você me matasse.

A parte da frente da gaveta se quebra com uma estalo agudo e cai no chão em meio a uma torrente de papéis e contas. Eu encho rapidamente uma bolsa com um punhado de dinheiro e, pela última vez, reviro a gaveta em busca da pistola de Alisdair. Eu confio na paranóia dele — graças a Deus eu estava certa e a pistola está carregada.

É inútil, me diz uma voz que não é de Alisdair. Estamos no 15° andar e há um rosto na janela, um rosto feio, pálido e cheio de caninos. Ele me diz alguma coisa sobre cometer diablerie e o Fim dos Tempos, mas eu não perco meu tempo ouvindo.

Eu levanto a arma e atiro, acertando seis tiros na coisa feia fora da janela. Ela explode em uma mistura de sangue e vidro partido e voa longe. Dentro de mim, posso ouvir Alisdair exultante; lá fora só existe o grito abafado de um vampiro atingindo o chão depois de uma queda de quase cem metros. Se você correr, pode chegar ao cano antes que ele se recupere. Desta vez eu não hesito, não discuto nem um pouco. Somente corro para fora do apartamento, batendo a porta atrás de mim pela última vez. Enquanto viro o corredor até a escada, eu ouço ruídos distantes de coisas se quebrando dentro do apartamento. Acho que o feioso trouxe alguns amigos.

Estão com medo de você. Estão com medo do que você fará.

"Quem diabos é você?" Eu grito para o ar, enquanto desço as escadas, quatro degraus de cada vez. "Onde está Alisdair?"

Eu sou um amigo. E Alisdair é parte de você agora. A força dele é sua. Você vai precisar dela durante as noites que se aproximam. Seus inimigos vêm esperando por você desde antes de você nascer.

E com isso, eu passo pela porta e pelo salão de entrada, quase atropelando Abe, o porteiro, no processo. Eu ouço sirenes no outro quarteirão, provavelmente os policiais e uma ambulância, vindo nesta direção para investigar os tiros e o corpo achatado no chão. Eu viro para o outro lado, e continuo correndo. Minha barriga está doendo. A mão que usei para destroçar a gaveta da escrivaninha de Alisdair também dói. Meus braços doem, especialmente logo acima do ombro, onde eu tenho aquela horrível marca de nascença, da qual Carol vive me falando. Há uma arma vazia em minhas mãos e eu estou quase sem fôlego, seguindo em frente apenas com meus reflexos. Como eu gostaria de poder me sentar e descansar...

Ainda não. Largue a arma, mas continue correndo. Logo você poderá descansar.

"Quem me dera!" Eu me assusto ao cruzar a frente de um táxi. O motorista paquistanês começa a xingar, mas grita de medo ao ver o sangue seco de Alisdair em minha face. "Quando poderei descansar?" Depois de me matar também.

Enquanto eu mergulho cada vez mais fundo dentro da noite posso ouvir os RISOS de Alisdair misturados ao barulho das sirenes. Um som que vai me assombrar até o fim do mundo.

E se meus pressentimentos estiverem certos, não vai ser por muito tempo.

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