Racismo e xenofobia: assassinato de caboverdiano em Portugal mostra as verdadeiras garras lisboanas
Armando Holanda | Rádio SputnikA morte de um imigrante cabo-verdiano baleado pela polícia gerou uma onda de revolta nos subúrbios de Lisboa no início da semana passada, com quase 60 incidentes na capital portuguesa e arredores e três detenções, segundo as autoridades.
O recente caso de Odair Muniz, de 43 anos, morto a tiros pela polícia portuguesa, suscita um intenso debate sobre a percepção racial e social de cidadãos de origem africana em Portugal.
A morte do cidadão caboverdiano provocou uma onda de comoção que evidencia uma crise social profunda, conforme afirma Paulo Mártires, analista internacional. Durante entrevista à Sputnik Brasil, ele destacou que este trágico incidente é reflexo de um contexto histórico e social mais amplo.
"O que se passou não é um episódio que surge do nada; tem antecedentes sociais, políticos e econômicos", afirmou Paulo. Ele ressaltou que a sociedade portuguesa, marcada por um histórico de exploração e segregação, enfrenta um aumento nas tensões sociais, particularmente entre imigrantes.
Desde a Revolução dos Cravos, em 1974, até os dias atuais, Portugal viveu diversas ondas de imigração. "A partir de 2010, a imigração passou a ser predominantemente da Ásia e de África, e as pessoas que vêm para cá buscam, acima de tudo, uma vida melhor", observou Paulo. No entanto, muitos imigrantes enfrentam condições de trabalho deploráveis e baixos salários. "Trabalham 10 a 16 horas por dia e, ao final do mês, recebem 800, 900 ou até 1000 euros", lamentou.
A crise habitacional também agrava a situação, com muitos imigrantes vivendo em condições precárias, incluindo tendas e abrigos improvisados. "As pontes, os parques e as portas de igrejas em Lisboa tornaram-se dormitórios para pessoas sem abrigo", apontou. Ele acrescentou que, embora a cidade tenha uma rica história de convivência pacífica, a pressão social está crescendo e pode levar a confrontos.
Portugal: polícia reage inadequadamente
Paulo alertou que a resposta das autoridades tem sido inadequada. "A polícia já se apercebeu da dimensão do problema, mas não tem os meios para lidar com a situação", explicou, destacando a falta de recursos e treinamento nas forças de segurança. "O desinvestimento em pessoas e na segurança pública é uma responsabilidade dos governos que têm estado no poder desde 1976."
A desigualdade social, impulsionada por um sistema econômico que explora tanto imigrantes quanto nacionais, está na raiz desse mal-estar. "O governo permite que os grandes grupos econômicos se beneficiem da mão de obra barata, enquanto os cidadãos comuns são deixados à mercê de condições cada vez mais degradantes", declarou.
Minimização dos danos
Ao podcast, João Almeida Medina, jornalista e professor em Cabo Verde, compartilhou suas impressões sobre o tratamento da mídia e a repercussão do caso tanto em Portugal quanto em Cabo Verde.
Segundo Medina, a abordagem da mídia portuguesa tende a minimizar a identidade de Muniz, apresentando-o como um "cidadão comum" em vez de um caboverdiano, enquanto a cobertura em Cabo Verde é marcada por uma perspectiva de racismo e xenofobia.
"O tratamento que se dá em Cabo Verde é de um caboverdiano, mas um caboverdiano morto pela polícia com uma perspectiva de racismo", afirmou.
O bairro da Cova da Mora, onde Muniz residia, é conhecido por sua história de conflitos com a polícia. Medina destacou que "sempre que acontece um problema, ou que descamba em mortos, sempre se apresenta o cidadão morto como um possível traficante". Contudo, ele enfatiza que Muniz era um trabalhador e "estava no seu bairro vivendo o seu dia a dia".
A morte de Muniz gerou uma onda de protestos em Portugal, onde milhares de pessoas se manifestaram contra o racismo e a violência policial. O primeiro-ministro português, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu uma investigação rigorosa, algo incomum em casos semelhantes, indicando a crescente pressão da sociedade para enfrentar essas questões.
Medina ressaltou a importância da memória coletiva em Cabo Verde, mencionando outros casos emblemáticos de violência racial, como a morte de Alcindo, um caboverdiano assassinado em 1995. "Houve tanto barulho que o próprio chefe do governo caboverdiano foi chamado para se manifestar", disse ele.
O contexto histórico da imigração africana em Portugal também é central para entender as dinâmicas atuais. Medina apontou que, a partir dos anos 90, muitos caboverdianos enfrentaram um longo processo para adquirir a nacionalidade, o que gerou um estigma social e racial. "O bairro em si, Cova da Moura, era uma espécie de favela em Lisboa", explicou.
O discurso xenófobo de partidos como o Chega, que ganhou força nas últimas eleições, reflete uma polarização crescente na sociedade portuguesa. "Isso mostra que há um discurso reconhecidamente racial, racista e que tem um impacto social", alertou Medina.