Primus versus

Primus versus


Sobre mim, Nero


“Se é verdade que Nero exclamou: ‘Feliz Príamo, que viste a ruína de tua pátria’, reconheçamos-lhe o mérito de haver alcançado o mais sublime desafio, a última hipóstase do gesto belo e da ênfase lúgubre. Depois de tal frase, tão maravilhosamente apropriada na boca de um imperador, tem-se direito à banalidade; se está mesmo obrigado a ela. Quem poderia ainda aspirar à extravagância? Os mínimos acidentes de nossa trivialidade nos forçam a admirar esse César cruel e histrião (e isto ainda mais porque sua demência conheceu uma glória maior que os suspiros de suas vítimas, pois a história escrita é pelo menos tão desumana como os acontecimentos que a suscitam). Todas as atitudes parecem arremedos em comparação às suas. E se foi verdade que incendiou Roma por amor à Ilíada, houve algum dia homenagem mais sensível a uma obra de arte? É em todo caso o único exemplo de crítica literária em marcha, de um juízo estético ativo.


O efeito que um livro exerce sobre nós só é real se experimentamos o desejo de imitar sua intriga, de matar se o herói mata, de estar ciumento se está ciumento, de estar doente ou moribundo se ele sofre ou se morre. Mas tudo isso, para nós, permanece em estado virtual ou degrada-se em letra morta; só Nero apresenta a literatura como espetáculo; suas resenhas, ele as faz com as cinzas de seus contemporâneos e de sua capital...


Tais palavras e tais atos deviam ser ao menos uma vez proferidos e realizados. Um facínora encarregou-se disso. Isto pode consolar-nos, e até deve, senão como retomaríamos nosso cansaço costumeiro e nossas verdades hábeis e prudentes?


-O último decadente.”

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