O fim das certezas, segundo Prigogine e Stengers

O fim das certezas, segundo Prigogine e Stengers

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Ilya Prigogine (1917-2003) recebeu o prêmio Nobel de química em 1977 pelos resultados de seus estudos em termodinâmica de processos irreversíveis, onde formulou a teoria das estruturas dissipativas. Foi professor da Universidade Livre de Bruxelas e da Universidade do Texas, EUA. Nascido na Rússia e naturalizado Belga, escreveu diversos livros relacionados à complexidade, alguns em parceria com Stengers (PRIGOGINE; STENGERS, 1997).


Isabelle Stengers, nascida em 1949, teve sua carreira acadêmica construída através da química e da filosofia das ciências, foi colega de trabalho de Prigogine na Universidade Livre de Bruxelas. No trabalho de Prigogine e Stengers, nos livros “O fim das certezas” e “A nova aliança” os autores trataram de descrever e esclarecer como a ciência passou de uma convicção determinista, um estado de certeza, para uma perspectiva pautada na complexidade, onde a instabilidade dos sistemas se torna regra e a estabilidade uma exceção.


Na segunda metade do século XX surge o paradoxo do tempo identificado através dos trabalhos do físico austríaco, Ludwig Boltzmann (1844-1906), quando esse tentou oferecer uma teoria evolucionária dos fenômenos físicos. Seu trabalho acabou por colocar em evidência as contradições entre as leis da física newtoniana e a distinção essencial entre futuro e passado.


A questão central levantada por Boltzmann é que para a física advinda de Newton, Einstein, Galileu e Laplace, o tempo é simétrico, não sendo possível distinguir passado e futuro, chegando a ser considerado como ilusão. No entanto, para muitas ciências como a química, biologia, cosmologia e ciências humanas, o passado e o futuro são tempos distintos.


O Paradoxo do Tempo consiste nestas duas ideias conflitantes, se admitirmos que ambas as afirmações sobre o tempo sejam percepções corretas da realidade, surge o dilema sobre como equacionar tal questão (PRIGOGINE; STENGERS, 1997).


Para esclarecer esse problema Prigogine e Stengers iniciam explicando sobre o conceito de processos reversíveis e irreversíveis no intuito de contextualizar as percepções das diferentes ciências e desmistificar a crença em um determinismo atemporal.


Os processos reversíveis são aqueles onde não é possível distinguir o futuro do passado, por exemplo, ao considerar o movimento de um pêndulo sem a presença de qualquer resistência do ar. Nesse caso, o pêndulo terá um movimento idêntico e independente se estivermos no passado ou no futuro, não sendo possível a partir de um ponto qualquer no tempo calcular quando se deu o início do movimento ou quando irá ocorrer o seu fim. Os processos reversíveis são identificados por fenômenos que não variam com a inversão dos tempos, esse é o caso da equação de Newton na dinâmica clássica, na afirmação de Einsten sobre o tempo ser uma ilusão, na equação de Schrodinger em mecânica quântica, no primeiro princípio das leis da termodinâmica onde a energia do universo é uma constante, entre outros (PRIGOGINE; STENGERS, 1997).


Nos processos irreversíveis os fenômenos ocorrem orientados no tempo permitindo uma clara distinção entre passado e futuro, uma vez que ocorre uma evolução variável e dependente de um estado inicial, em outras palavras, um dado fenômeno sofre mudanças com o passar do tempo sem que seja possível reverter tais ocorrências. Por exemplo, ao chutar uma bola sua velocidade diminui, uma barra de ferro se deteriora, os organismos envelhecem etc. Nenhum desses fenômenos pode ser revertido no tempo.


Diferente da tradição que buscou explicar o mundo através da estabilidade, Prigogine esclarecem que para a ciência atual:


a natureza apresenta-nos ao mesmo tempo processos irreversíveis e reversíveis, mas os primeiros são a regra, e os segundos, a exceção. Os processos macroscópicos, como as reações químicas e fenômenos de transporte, são irreversíveis. A radiação solar é o resultado de processos nucleares irreversíveis. Nenhuma descrição da ecosfera seria possível sem os inúmeros processos irreversíveis que nela se desenrolam. Os processos reversíveis, em compensação, correspondem sempre a idealizações: devemos negligenciar a fricção para atribuir ao pêndulo um comportamento reversível e isto vale como uma aproximação (PRIGOGINE, 1996, p. 25).


A distinção entre processos reversíveis e irreversíveis surge com o conceito de entropia, esse sinaliza as mudanças produzidas através das múltiplas e variadas relações entre os fenômenos. Quanto maior o número e intensidade nas interações, maior será a produção de mudanças não previsíveis, entropia. Nesse sentido, “o crescimento da entropia designa, pois, a direção do futuro, quer no nível de um sistema local, quer no nível do universo como um todo” (PRIGOGINE, 1996, p. 23).


Numa perspectiva baseada em entropia a vida só é possível quando longe do equilíbrio e os termos estagnação, estabilidade, equilíbrio e estado estacionário, assumem o mesmo significado, sugerindo uma contradição com o projeto da ciência clássica, que buscou encontrar na estabilidade a verdade da mudança. No entanto, embora pareça uma contradição, é mais provável a ocorrência de uma evolução onde a ciência deixa de se isolar em suas idealizações, favorecendo apenas um ponto de vista e passa a considerar contribuições de outras áreas do saber. Admitindo a validade dessa percepção pode-se afirmar que “a ciência de hoje não pode mais dar-se o direito de negar a pertinência e o interesse de outros pontos de vista e, em particular, de recusar compreender os das ciências humanas, da filosofia e da arte” (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 41).


Reforçando a concepção de uma possível evolução nas convicções da ciência da física, os autores sustentam que ela caminha em direção ao ideal de inteligibilidade:


Lembremo-nos do ideal de inteligibilidade formulado por Whitehead (seção 1): que todos os elementos de nossa experiência possam ser incluídos num sistema coerente de idéias gerais. Progredindo no programa inaugurado por Boltzmann há mais de um século, a física deu um passo nessa direção. (PRIGOGINE, 1996, p. 32). A partir do paradoxo do tempo proposto por Boltzmann, os autores apresentam um panorama onde a ciência parece evoluir de hipóteses deterministas atemporais para construções pautadas na instabilidade e no tempo, onde o processo de irreversibilidade, que é produtor de entropia, não é entendido na atualidade, apenas como fonte do desequilíbrio, que também é visto como promotor de ordem. Nessa direção os autores sinalizam, “a irreversibilidade leva ao mesmo tempo à desordem e à ordem” (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, p. 29). Para melhor equacionar essa afirmação é relevante abordar a noção de estruturas e sistema.


Compare um cristal e uma cidade. O primeiro é uma estrutura de equilíbrio, pode ser conservado no vácuo. A segunda tem também uma estrutura bem definida, mas esta depende de seu funcionamento. Um centro religioso e um centro comercial não tem nem a mesma função nem a mesma estrutura. Aqui, a estrutura resulta do tipo de interação com o ambiente. Se isolássemos uma cidade, ela morreria. Estrutura e função são inseparáveis (PRIGOGINE & STENGERS, 1997, p. 65).


É possível admitir que um sistema seja todo e qualquer fenômeno cuja estrutura é inseparável da função. Por exemplo, o sistema solar, o biológico ou o social, em qualquer um dos casos, a constituição do fenômeno ocorre admitindo maior ou menor equilíbrio entre estrutura e função (PRIGOGINE, 1996).


Em termos gerais, quanto mais longe do ponto de equilíbrio, mais intensas são as flutuações que produzem possibilidades ou bifurcações, permitindo assim, mudanças no estado da matéria. O mesmo ocorre com os sistemas, flutuações surgem com maior intensidade na medida em que este se distancia do seu ponto de equilíbrio, favorecendo uma nova forma de interação entre processos irreversíveis que atuam como meio criativo de auto-organização (PRIGOGINE, 1996).


Num tom metafórico, pode-se dizer que no equilíbrio a matéria é cega, ao passo que longe do equilíbrio ela começa a ver. E esta nova propriedade, esta sensibilidade da matéria a si mesma e a seu ambiente, está ligada à dissipação associada aos processos irreversíveis (PRIGOGINE, 1996, p. 71).


É na percepção de um conjunto de instabilidades e estabilidades singulares, ocorridas simultaneamente na imbricada configuração dos sistemas, que surge a equação onde ordem e desordem ocorrem ao mesmo tempo. Essa afirmação pode ser entendida como ponto central na noção de complexidade proposta por Prigogine e Stengers.


Segundo Prigogine (1996) uma das consequências de tal perspectiva consiste em admitir e distinguir o que pode ser previsto e controlado, daquilo que foge ao alcance do conhecimento e, consequentemente, da previsão e do controle. A noção de complexidade perpassa por uma percepção capaz de transitar entre o determinismo e o relativismo, entre o reversível e o irreversível, onde a criatividade emana em todos os níveis da natureza a partir da auto-organização na incerteza dos processos irreversíveis.


O que surge hoje é, portanto, uma descrição mediana, situada entre duas representações alienantes, a de um mundo determinista e a de um mundo arbitrário submetido apenas ao acaso. As leis não governam o mundo, mas este tampouco é regido pelo acaso (PRIGOGINE, 1996, p. 199).


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