Mãe Negra

Mãe Negra

TANTO

Já pararam para refletir sobre como a amamentação quase sempre foi representada na arte?

Amamentar nunca foi um ato humano.

Quem amamentavam eram os deuses ou pessoas sempre muito ricas.

Olha essa pintura, A Virgem e o Menino, de Robert Campin, provavelmente de 1440.

Mesmo quando a amamentação era representada como um momento vivido por pessoas humildes, essa humildade era ainda de Nossa Senhora, nos momentos de provação, como nessa pintura que retrata A fuga para o Egito, feita entre 1615 e 1620, de Orazio Gentilesch.

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E nem só de deuses católicos se fez a representação do amamentar.

Segundo Tintoretto, A Origem da Via-Láctea (1575) se deu quando Júpiter segurou Hércules contra o peito de Juno, e o leite que jorrou formou a Via Láctea, e do leite caído na terra surgiram os lírios.

Quando não eram deuses a amamentar, eram humanos, sempre ricos, e talvez o ato de amamentar fosse o de menos.
Aqui, Fragonard mostra A Visita da Ama de Leite, provavelmente de 1774, revelando que muitas mulheres da época preferiam não amamentar.

Essa forma de representar a amamentação sempre me causou desconforto, pois o ato parece perpetuado como distante e não instintivo - sendo que, dar de mamar, é talvez o elo mais forte que tenhamos com nossa natureza.

Exatamente por isso, vibrei ao conhecer essa pintura: 
Conheçam Mãe Negra, de Ernst Neuschul, pintada em 1931!!!

Ernst Neuschul foi um pintor alemão-tcheco, judeu, que viveu entre 1895–1968, viveu os horrores do nazismo, teve quadros marcados com a suástica, quase foi apagado da história e, com esse quadro emblemático, criou uma Declaração de Amor à África.


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Neuschul sempre quis estudar arte, apesar das negativas do pai.

Em 1913, diante das seguidas negativas paternas para estudar na Academia de Arte de Praga, Neuschul se muda para a capital Tcheca e começa sua trajetória.

Enquanto fazia cursos de artes, Neuschul pintava paredes. 

Neuschul era um socialista radical.

Suas pinturas, poderosas e provocativas, representavam trabalhadores, negros, ciganos, presidiários e desempregados, celebravam igualdade e dignidade de toda a humanidade.

Por isso, começou a ser perseguido desde logo pelos nazistas 

Em fevereiro de 1933, sua exposição na “House of Artists” em Berlim, teve diversas obras confiscadas e muitas delas destruídas, marcadas com a suástica em tinta preta.

Na exposição estava p autorretrato Der Agitator, que mostrava Neuschul como um lutador antifascista. 

Após esse atentado, Neuschul roda mundo e acaba se estabelecendo novamente em Praga, em 1937.

Mas os nazi-fascistas nunca esquecem.

Com a aproximação da 2ª Guerra, Neuschul se vê cada vez mais encurralado e ameaçado.

Ele sabia que, muito em breve, a situação seria de morte. 

Quase por milagre, Neuschul consegue fugir com sua esposa e filhos no último trem saído de Praga, última chance aos diversos perseguidos pelo regime Nazista.

Ele consegue chegar à Inglaterra, onde viveu até morrer, mas o restante de sua família morreu em campos de extermínio. 
Mas, e a Mãe Negra...?

Ninguém sabe quem ela foi. Provavelmente, uma família de imigrantes que Neuschul ajudava, eis que, após sua morte, foram encontrados esboços e fotos da mesma mulher, e de seu pretenso marido, nos papeis de Neuschul, mas sem qualquer anotação. 
A família pode ser de Camarões, Namíbia, Tanzânia, Ruanda, Burundi ou Togo, colônias alemãs desde a década de 1880 - até serem abandonadas após a 1ªGuerra Mundial.
E a Alemanha não tinha colônias no Caribe.

Na época em que foi pintada Mãe Negra, o número de africanos em Berlim era mínimo. Na Alemanha toda, em uma população de 65 milhões de pessoas, havia pouco menos de 24.000 africanos.

Mas não é somente a cor de sua pele que a torna um assunto incomum na arte ocidental... 

É também seu ato...

Uma mulher comum, uma mulher negra, em plena Alemanha Nazista, amamentando em via pública, com olhos ferozes, de quem não aceita intimidações; de quem não baixa sua cabeça.

Ela veste roupas de rua e da moda. Está ao ar livre, provavelmente um lugar público, mas com o seio exposto e alimentando um bebê grande o suficiente para andar - digamos, com uns 12 meses de idade.

O ato de amamentar, nessa época, era absolutamente escondido e vergonhoso. 

E ela protege seu bebê do quê?
O bebê assustado que confia na mãe, como qualquer criança amada.

Os negros na Alemanha nazista foram vítimas silenciadas e esquecidas, justamente por eram poucos, mas foram tão barbarizados quanto quaisquer dos "indesejáveis".

E qual teria sido a razão de Neuschul retratar esse fato, a Mãe Negra amentando - além, óbvio, de toda sua luta feita por meio da arte?

Lembram que Mãe Negra foi pintada em 1931?

Pois então... existe uma teoria interessantíssima acerca da motivação por trás da Mãe Negra: Acontece que em 1931, o arqueólogo britânico Louis Leakey encontrou uma das mais antigas ferramentas feitas pelo homem, em Olduvai Gorge, na Tanzânia, África.

O objeto de 1,8 milhão de anos provou que a humanidade não surgiu de uma raça ariana suprema, mas começou na África.

A peça, que hoje está no Museu Britânico, virou manchete. O mundo soube, pela primeira vez, de forma incontestável, que a África era, de fato, a mãe de todas as nações.

Jamais saberemos se Neuschul tinha isso em mente quando pintou Mãe Negra, seu hino para a humanidade.

Mãe Negra se salvou das garras nazistas graças à primeira esposa de Neuschul e de amigos, que conseguiram esconder algumas obras durante a guerra.

Neuschul, por toda sua luta, foi apagado de forma violenta da história da arte alemã, o que o torna, até hoje, pouco conhecido. 
Tremendamente ferido pela perda da família e de amigos, pelas barbaridades nazistas contra a humanidade toda, Neuschul não voltou mais à Alemanha. Inclusive, mudou seu nome e passou a se chamar Ernest Norland - renegando suas origens tão feridas.

Felizmente, a memória e força de poucos foram suficientes para vencer a sanha destruidora dos nazifascistas e Ernest Neuschul, ou Ernest Norland, chega aos nossos dias, mesmo que pouco conhecido.

Mas jamais devemos esquecer a Mãe Negra, ode de amor e respeito à África.

No final, é um continente todo que amamenta a humanidade.

É o povo sofrido e escravizado que olha valente, cabeça erguida, capaz de proteger seus filhos e sua história.

É a resistência contra o colonialismo, o nazismo, o fascismo e toda a maldade que há.


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