Jejum de dopamina: alguns médicos estão recomendando. Você deveria considerá-lo?
portugues.medscape.comA ideia é intrigante: interromper por um período comportamentos viciantes — mídias sociais, videogames, jogos de azar, pornografia, alimentação inadequada, drogas, álcool — para redefinir o circuito de recompensa do seu cérebro e reduzir maus hábitos.
Esse conceito é frequentemente denominado como jejum de dopamina, amostragem de abstinência ou desintoxicação de dopamina. Mas será que desligar o fluxo desse neurotransmissor de bem-estar é realmente a chave para abandonar vícios?
Os influenciadores do TikTok e os executivos do Vale do Silício parecem pensar assim, bem como alguns médicos.
Proeminente entre os defensores dessa abordagem está a Dra. Anna Lembke, médica e professora de psiquiatria na Stanford University School of Medicine e chefe da Stanford Addiction Medicine Dual Diagnosis Clinic, nos Estados Unidos. Em sua prática, o jejum de dopamina é uma estrutura de intervenção precoce adotada para muitos pacientes.
“O que observamos nesses pacientes é que não apenas o desejo começa a diminuir em cerca de quatro semanas, mas também há melhora no humor, ansiedade, sono e em todos os outros parâmetros e marcadores relacionados à boa saúde mental”, disse ela.
Qualquer médico pode adotar esta estrutura, disse a Dra. Anna, que também é autora do livro Nação Dopamina (Dopamine Nation), durante sua palestra na conferência do American College of Lifestyle Medicine (ACLM) no outono passado.
“Na medicina existe a ideia de que devemos deixar o tratamento do vício para ambientes como a Clínica Betty Ford ou para um psiquiatra especializado”, observou durante a reunião. “Mas há muito que podemos fazer, independentemente da nossa formação e do contexto de tratamento”.
Seria o jejum de dopamina adequado para seus pacientes? Alguns especialistas argumentaram que é uma abordagem simplista e até perigosa. Aqui está o que você deve saber:
Dopamina e o cérebro
Do córtex pré-frontal — o centro de controle do cérebro — ao núcleo accumbens e à área tegmental ventral, localizada nas profundezas do sistema límbico, a dopamina preenche lacunas entre os neurônios para transmitir mensagens essenciais sobre prazer, recompensa e motivação.
Todos nós temos um nível básico de dopamina, e substâncias e comportamentos que apreciamos — desde chocolate e sexo até cocaína e anfetaminas — aumentam a liberação dessa substância.
“Quando buscamos recompensas saudáveis, como uma boa refeição em um restaurante ou uma boa conversa com amigos, os neurônios dopaminérgicos disparam, e a dopamina é liberada”, explicou a Dra. Birgitta Dresp, Ph.D., psicóloga cognitiva e diretora de investigação do Centre National de la Recherche Scientifique, na França. "Isso nos proporciona uma sensação de bem-estar".
Com o passar do tempo e a exposição crônica a estímulos excessivamente prazerosos, o cérebro se adapta. Os receptores de dopamina diminuem e ocorre uma regulação negativa, resultando na redução do “ponto de ajuste hedônico”, ou seja, o nível básico de felicidade. Agora, são necessários mais estímulos para alcançar o nível de bem-estar anterior.
Esta conexão cerebral primitiva serviu a propósitos evolutivos, ajudando os nossos antepassados a procurar incansavelmente recursos escassos, como os alimentos. Contudo, em nosso mundo moderno, repleto de atividades facilmente acessíveis, novas, potentes e estimulantes, nossos cérebros estão constantemente tentando compensar. Paradoxalmente, esta “autoexcitação” constante pode estar contribuindo para a nossa crise de saúde mental nacional e global, sugeriu a Dra. Anna.
“A atividade humana transformou o mundo em que vivemos”, disse ela, “e agora esta antiga estrutura mecanicista tornou-se uma espécie de risco”.
O jejum de dopamina em ação
Para reconfigurar essa “programação”, a Dra. Anna recomendou um jejum de quatro semanas com a “droga de escolha” de cada pessoa. No entanto, não se trata de uma solução rápida ou “da moda”, onde você se abstém de tudo que traz alegria. É uma intervenção direcionada, geralmente voltada para um comportamento ou substância de cada vez. O jejum permite que o indivíduo compreenda “a natureza do cérebro sequestrado”, sendo motivado a mudar hábitos a longo prazo, ela destacou.
Embora as primeiras duas semanas sejam difíceis, ela descobriu que muitos pacientes se sentem melhor e mais motivados após quatro semanas.
Para identificar pacientes que podem se beneficiar de um jejum de dopamina, é importante começar perguntando “quanto” e “por quê”. Em vez de questionar sobre a quantidade semanal usada de uma substância ou a recorrência de um comportamento, o que pode ser impreciso, a Dra. Anna usa uma técnica de “acompanhamento da linha do tempo”, questionando a quantidade no dia anterior, no dia anterior a esse, e assim por diante. Isto pode levar a um momento de clareza, quando eles veem o verdadeiro total da semana, disse a médica na conferência do ACLM.
Ela também analisa as razões por trás desse comportamento. Muitas vezes os pacientes dizem que estão se automedicando ou que a substância ajuda no tratamento da ansiedade ou depressão. Quando as pessoas persistem no uso compulsivo, apesar das consequências negativas, ela pode recomendar um período de reinicialização de quatro semanas.
Existem exceções importantes: a Dra. Anna não recomenda o jejum de dopamina para aqueles que tenham tentado repetidamente, sem sucesso, abandonar uma substância por conta própria, nem para qualquer pessoa para qual a abstinência possa ser fatal.
Para aqueles que podem experimentar a dopamina com segurança, ela recomendou estratégias de “autovinculação” para ajudá-los a manter o curso. É importante identificar pessoas, lugares e coisas que incentivam o uso e tentar evitá-los. Por exemplo, a depender do vício, excluir aplicativos de redes sociais; manter uma distância física do telefone; deixar alimentos e substâncias fora de casa.
A Dra. Anna também recomendou atividades dolorosas, mas produtivas, como exercícios físicos. O sistema cerebral associado ao prazer e à dor está intimamente conectado, portanto, essas atividades influenciam os circuitos de recompensa.
“Você está intencionalmente realizando tarefas desafiadoras que inicialmente não liberam dopamina, ao contrário dos intoxicantes. No entanto, você experimenta um aumento gradual, que permanece elevado mesmo depois que a atividade é interrompida, o que é uma maneira eficaz de obter dopamina indiretamente”, disse a médica.
Se os pacientes têm intenção de retomar sua “droga de escolha” após o jejum de dopamina, a Dra. Anna os auxilia no planejamento da quantidade e do momento de consumo. Para alguns, isso funciona. Infelizmente, outros voltam a usar tanto ou mais do que antes. Contudo, em muitos casos, disse ela, os pacientes sentem-se melhor e percebem que a sua “substância preferida” não estava sendo tão benéfica como pensavam.
Críticas ao jejum de dopamina
O jejum de dopamina não é adequado para todos, e especialistas debatem a sua segurança e eficácia. Aqui estão algumas preocupações comuns:
É muito simplista. O Dr. Peter Grinspoon, médico da atenção primária do Massachusetts General Hospital e instrutor da Harvard Medical School, disse que o jejum de dopamina não é realmente jejum, uma vez que não há um estoque finito de dopamina para conservar ou esgotar em um período fixo. Ainda que você se abstenha de certos prazeres, seu cérebro continuará a produzir um pouco de dopamina.
O que faz mais sentido, disse ele, é o “redirecionamento de dopamina” gradual, buscando recompensas em atividades saudáveis e prazerosas.
“O vício é uma doença do isolamento, e aprender a ter prazer nas coisas saudáveis da vida, como uma boa refeição caseira, um passeio na floresta, um abraço ou um mergulho no oceano, é exatamente o objetivo da recuperação", ele disse. "Quando você aprende a apreciar essas experiências e a ser feliz, não há mais espaço para a droga, e você não fica tão suscetível à recaída".
Uma preocupação é que o sistema de dopamina não é a única parte do cérebro relevante no contexto do vício. “Existem outras partes do cérebro muito mais importantes para controlar a tentação”, disse o Dr. Trevor W. Robbins, Ph.D., professor de neurociência cognitiva e diretor de pesquisa do Behavioural and Clinical Neuroscience Institute da University of Cambridge, no Reino Unido. Embora a dopamina desempenhe um papel significativo no vício e na recuperação, “chamar isso de jejum de dopamina é apenas um nome moderno para fazer com que pareça emocionante”, disse ele.
Faltam evidências empíricas. Sem ensaios clínicos para respaldá-lo, o jejum de dopamina carece de evidências sobre segurança e eficácia, disse David Tzall, psicólogo que atua nos EUA. "Parece divertido, certo? Pensar ‘ah, vou parar de fazer isso por um tempo e meu corpo se corrigirá’", disse. “Acho que é algo muito perigoso, porque não temos evidências suficientes para compreender sua eficácia ou possíveis riscos”.
A Dra. Anna “também gostaria de ver mais evidências”, além da observação clínica e do consenso de especialistas. Pesquisas futuras também poderão esclarecer quem tem maior probabilidade de se beneficiar e quanto tempo o jejum deve durar para obter o máximo benefício.
É uma abordagem muito generalizada. “Interromper o uso de uma droga será uma experiência única para cada indivíduo”, disse David. Enquanto alguns podem abandonar o hábito de fumar abruptamente, outros precisam fazê-lo de forma gradual. Alguns precisam de adesivos de nicotina; outros não. Da mesma forma, há os que conseguem superar esse desafio por conta própria, enquanto outros precisam de apoio.
A motivação pessoal por trás do vício também é crucial. Sem a droga ou o hábito, essas pessoas conseguirão “lidar com os estressores da vida?”, questionou David. Pode ser necessário adotar novas estratégias, pois desistir antes de estar pronto e fracassar, pode resultar em um sentimento ainda pior do que antes.
Os especialistas concordam em um ponto: podemos fazer mais para ajudar as pessoas que estão enfrentando dificuldades. “É muito bom que as pessoas estejam discutindo sobre a moderação do consumo, porque claramente temos um grave problema relacionado à dependência de drogas, álcool e mídias sociais, além da obesidade”, disse a Dra. Anna.
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
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