Homo Sacer e os ciganos : uma resenha de Larissa Costa Murad – o livro que estou lendo

Homo Sacer e os ciganos : uma resenha de Larissa Costa Murad – o livro que estou lendo

web.archive.org

Homo Sacer e os ciganos : uma resenha de Larissa Costa Murad – o livro que estou lendo

HOMO SACER E OS CIGANOS: O ANTICIGANISMO – REFLEXÕES SOBRE UMA VARIANTE ESSENCIAL E POR ISSO ESQUECIDA DO RACISMO MODERNO

O livro Homo sacer e os ciganos: o anticiganismo – reflexões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno, de Roswitha Scholz, aborda a importância da crítica às representações modernas acerca dos ciganos (vistos como avessos ao trabalho, sensuais, selvagens) para a sustentação de uma crítica do valor e do trabalho.

Publicado em 2014 pela editora Antígona, o livro apresenta uma contribuição original tanto aos estudos sobre o racismo quanto à crítica do valor ao ressaltar o vínculo orgânico entre capital, ética do trabalho e a construção de estereótipos racistas.

A autora parte do pressuposto de que os ciganos são parte constitutiva da própria cultura ocidental moderna, sendo o desdém anticiganista característico da sociedade capitalista no seu todo, aparecendo inclusive nos meios que se dedicam à crítica do valor. O que está em questão é a centralidade do sujeito do trabalho fordista, masculino e branco nas análises críticas. Conforme o trabalho abstrato vai se tornando obsoleto no período de afirmação da condição pós-moderna, o sujeito do trabalho fordista se esfuma, tornando premente a crítica ao racismo e suas variantes como constitutivos do mecanismo de reprodução do valor. Nesse sentido, o constructo do homem branco como ser dominante pode ser observado inclusive no silêncio da crítica quanto à variante anticiganista do racismo.

Para a crítica da “dissociação-valor”, conceito cunhado pela autora para definir o movimento do capital de dissociar momentos fundamentais da reprodução social que não estão subjugados pela lógica da mercadoria, é importante destacar o anticiganismo como variante específica do racismo no capitalismo e o papel do trabalho nesse sistema. As representações acerca dos ciganos aparecem na idealização romântica dos mesmos e no imperativo de sua exclusão. Ambos traduzem comportamentos, práticas racistas.

A partir do conceito de homo sacer, cunhado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, Scholz desenvolve sua tese de que “o cigano é o homo sacer par excellence”, ou seja, as representações acerca dos ciganos legitimam seu banimento das margens da sociedade burguesa e, como banido, o cigano se situa no exterior da lei como sua matriz inadmitida sendo por isso mesmo paradigma da modernidade. Segundo Scholz, no capitalismo contemporâneo o anticiganismo pode ajudar a descortinar abismos, principalmente em um momento no qual aumenta a quantidade de seres humanos supérfluos ao capital – e consequentemente recrudescem as formas de racismo e fundamentalismos pelas quais pauta-se a lógica da competição. A autora destaca ainda que a noção de luta de classes, por vezes, traduz a estilização do homem branco como vítima.

O estereótipo do cigano é construído conforme a ética do trabalho se generaliza. Quando o trabalho constitui o principal laço de sociabilidade os ciganos são rotulados como seres estranhos por resistir a essa conformação social. Para Scholz, o estereótipo do cigano revela concepções racistas antes mesmo do aparecimento “científico” do conceito de raça no iluminismo, servindo de base para a fixação de diferenças entre os seres humanos a partir de argumentos morais e estéticos. Essa prática de classificar e apartar seres humanos considerados divergentes é funcional para a reprodução da lógica do valor, pois traz implícita a homogeneização da cultura como necessidade de sobrevivência social.

Antes da constituição do moderno Estado- nação houve resistência maciça à sujeição ao trabalho no processo produtivo capitalista também por parte da população “normal”, o que possibilitou certa aceitação quanto aos ciganos em determinados locais, apesar das já existentes declarações de banimento. O que não ocorre após a universalização da ética do trabalho e a consequente condenação da tendência à preguiça, comumente atribuída aos ciganos; há no iluminismo a associação do homem branco como o único capaz de ascender à civilização.

Opera-se uma “etnicização do estereótipo” a partir da ética do trabalho. Os ciganos são retratados como avessos ao trabalho e (numa visão romântica) aptos naturalmente ao canto e a dança, atividades desenvolvidas na ociosidade. Aqui já atua a noção de raça como biológica e associal. A individualidade e a particularidade de grupos de ciganos e de suas culturas são naturalizadas nessa perspectiva romântica como dom.

Observamos aqui o processo pelo qual o outro do homem burguês se torna familiar e, ao mesmo tempo, estranho. O que legitima seu destino, seu não lugar no sistema produtor de mercadorias. Está em questão o medo do outro como agressor potencial no âmbito da competição capitalista, ou seja, legitima-se seu extermínio e o silêncio sobre a violência sofrida por determinados grupos sociais em nome da civilização.

De acordo com Scholz, a “dissociação-valor” é o princípio abstrato fundamental do patriarcado (abstrato porque independe dos indivíduos concretos, porém é determinante das relações reais). Tal dissociação passa por metamorfoses no decorrer da modernidade. Logo, mulheres, ciganos, judeus (em outra medida), negros; qualquer outro em relação ao homem branco, erigido como personificação do valor.

Ou seja, a dissociação não é a exceção, mas sim a regra, a qual opera por meio da construção de estereótipos que legitimam o lugar destinado ao “outro”. À mulher, assim como aos ciganos e à religiosidade dos negros, é comumente associada a idéia de sensualidade, de outra relação com a natureza, mais próxima desta, a qual por vezes assume cariz ameaçador (a bruxa, a cigana praticante de magia, a magia negra, o candomblé, o voodoo, etc.). Cabe explicitar que o racismo serve à acumulação primitiva, pois fundamenta a cisão-valor em sua moralidade e em seus pressupostos de concentração; e o anticiganismo é determinado por um critério associado ao sexo.

A autora utiliza o exemplo do nacional-socialismo na Alemanha para evidenciar a relação entre estereótipos divergentes das necessidades do valor e violência extrema. Na Alemanha o nacional-socialismo exterminou em massa também os sinti e os roma, grupos ciganos que dividiam com os judeus a representação de serem avessos ao trabalho – apesar do judeu ter a fama de ser ultracivilizado, os ciganos são considerados inferiores enquanto os judeus são associados ao poder e à dominação no capitalismo. Mesmo depois de finda a guerra, a polícia manteve “atitude de suspeição sistemática” quanto aos ciganos, os colocando como criminosos em potencial, compreendidos a partir da categoria associalidade.

Para Scholz, como não há nenhuma base de sustentação concreta dos estereótipos dos ciganos, o que ocorreu no decorrer da história foi uma tentativa sistemática das sociedades que os acolheram de civilizá-los, o que pressupõe o abandono de sua cultura. Apoiada nos estudos de Franz Maciejewski e Schatz e Woeldike, a autora apresenta elementos psicológicos do anticiganismo. É como se alguns hábitos ciganos remetessem o homem civilizado a um tempo primitivo, suscitando o medo mítico de regressão à natureza. Retorno que o sujeito marcado pela cisão-valor não pode admitir. Renegar este “chamamento” da natureza equivale a se integrar, portanto, virar o branco. Nesse sentido, tanto judeus quanto ciganos, entendidos a partir da noção segundo a qual ambos são avessos ao trabalho, vivenciaram a perseguição física e a exclusão do não idêntico por meio da força, da violência constitutiva da civilização, as quais projetam no outro o ódio quanto a si mesmo, próprio do sujeito moderno marcado pela renúncia. Aquele que supostamente não se deixa integrar pelo trabalho é excluído a partir da mistificação da cultura.

Para a autora, o cigano é então o homo sacer por excelência “porque (…) ele recorda aos membros da ‘cultura dominante’ o medo perpétuo do deslizamento para a associalidade” (SCHOLZ, 2014, p. 51). O cigano mantém algo de um nomadismo ainda presente no ethos de alguns grupos.

O anticiganismo, sustentado nessas representações acerca do cigano, permite então suspender a regra, dando lugar à exceção, a qual se constitui por fim como regra. Por isso a autora utiliza o conceito de homo sacer para pensar os ciganos, pois este conceito expressa a dialética exceção e regra. Ao ser considerado banido, fora da lei, o homo sacer pode ser morto impunemente, realizando-se assim o estado de exceção, que renasce no processo contemporâneo de crise e decadência – onde todos podem ser “homines sacri em potência”.

Scholz atenta para o perigo, porém, de nivelar as diferenças e generalizar uma condição particular como a dos judeus, por exemplo. O que nos levaria a uma abstração pura e a borrar as diferenças entre o desviante e os que se adéquam à norma, por exemplo. No caso, o conceito auxilia no entendimento do “desviante” como descartável na contemporaneidade.

À reinterpretação de Agamben a partir da lógica do valor Scholz acrescenta a dissociação-valor, pressuposto do estado de exceção,

“que torna visível a não-identidade oposta à regra, que tem de ser encarada na sua qualidade própria – em particular, tendo em vista os diversos agrupamentos sociais e as formas de exclusão” (SCHOLZ, 2014, p. 56).

Houve a interiorização do estado de exceção no processo civilizatório, associada à busca da felicidade, a qual só leva a desolação dada a lógica da concorrência no capitalismo e a crescente imposição da renúncia. Com a crise pós-década de 1970, o espaço de exclusão inclusiva está se dissolvendo. Consequentemente, os supérfluos vão sendo empurrados cada vez mais para fora da cobertura legal do estado de direito, sendo paradoxalmente essa a única forma de inclusão dos mesmos (em outra medida os autos de resistência no Brasil exemplificam esse processo).

É segundo um modelo racista que se processa a exclusão inclusiva. Para Scholz, aos ciganos sinti e roma foi imposto um estado de exceção permanente na modernidade, dado o seu banimento constante em diferentes épocas e governos, usando-se mesmo de “leis inconstitucionais”. Já havia inclusive o anticiganismo religioso antes do racista.

O estereótipo do cigano, baseado na condenação dos que supostamente rejeitam a moral burguesa do trabalho, almeja a rejeição de um modo de vida. Mesmo que essa rejeição ao trabalho por parte dos ciganos não seja baseada em atos concretos, sendo antes parte do misticismo que cerca a figura do cigano. Scholz se apropria da leitura de Hund acerca da dialética da discriminação racista, demonstrada no estereótipo do cigano como forma de legitimação da opressão e do paternalismo a partir de assunção da existência de hierarquias raciais.

Em tempos de crise estrutural do capital, o lugar destinado aos ciganos configura uma lembrança constante da ameaça inconsciente que faz com que todos “andem na linha” no sentido da reprodução do valor (mesmo que esta signifique seu próprio aniquilamento, como lembram Adorno e Horkheimer). Os sinti e os roma condensam também o medo de que a desobediência se espalhe, além de servirem como objeto do ódio concreto da população integrada.

Logo, o cigano vive em um estado de exceção permanente, mas é o nomos da modernidade porque revela seu fundamento e critério: o trabalho como produção de valor. A autora lembra que, na era da globalização, muitos membros da “cultura dominante” enfrentam a ameaça de se tornarem supérfluos. O que pode aumentar o anticiganismo e o anti-semitismo por consequência, apesar de estarmos “no mesmo barco”.

Scholz destaca ainda a análise de Gronemeyer segundo a qual, apesar das perseguições sofridas, não é interessante a redução dos ciganos a vítimas, pois tal abordagem pode lhes retirar a condição de sujeitos sociais.

A autora ressalta que, nas décadas de 1970 e 1980 (principalmente 1980 com os movimentos multiculturais), os ciganos passam a ser vistos a partir de uma das abordagens românticas, como resistentes ao modo de vida dominante. Sua cultura configuraria, nessa leitura, uma alternativa. A crítica social aparece aqui como uma representação romântica do modo de vida cigano. A vida cigana nos Estados Unidos, por exemplo, nada tem de tais representações. Os ciganos sobrevivem principalmente em nichos da economia informal, e não necessariamente estão ociosos ou têm aversão ao trabalho. A perspectiva romantizada inverte e positiva a existência do homo sacer. Nos anos 1990 essa perspectiva é rejeitada como essencialista, ou seja, construiria uma autenticidade inexistente. A desconstrução de identidades ganha espaço nesse período, coincidindo com uma das tendências da globalização: as identidades flexíveis.

Scholz afirma que o anticiganismo provavelmente existiria mesmo se não existissem ciganos, por ser uma necessidade intrínseca da subjetividade capitalista burguesa. Ou seja, o racismo é uma necessidade intrínseca na construção da cultura no capitalismo. Tanto em sua vertente romântica quanto no âmbito do desprezo e da aniquilação sociais.

Caminhando para a conclusão do livro, Scholz observa o processo segundo o qual na pós-modernidade as identidades tradicionais dissolvem-se, se tornam ultraflexíveis, o que a autora caracteriza como o “tabu da hibridez”. Interioriza-se a própria degradação social. A autora aponta o início da dissolução das tradições dos sinti e roma na sequencia dos processos de modernização. A questão das identidades híbridas, porém, não está presente nos discursos anticiganistas, apesar de se reconhecer que eles não estão mais restritos a um nicho de emprego, social.

“Isso dever-se-á provavelmente à própria estrutura do anticiganismo, como interface do (etno-)racismo com a discriminação social simultânea, pelo que o cigano representa a categoria mais baixa na estrutura social, configurando o homo sacer par excellence do patriarcado produtor de mercadorias” (SCHOLZ, 2014, p. 80).

Com o “colapso da modernização” e a derrocada da pós-modernidade os estereótipos que legitimam o anticiganismo recrudescem. A discriminação contra os sinti e roma persiste hoje, sendo parte frequentemente das práticas de instituições estatais: polícia e justiça. Em tempos de crise, volta-se a temer a associalidade, e assim que os ciganos são identificados em seu estereótipo. A lei necessita sempre de sua exceção, nesse caso, o cigano considerado a partir das representações sociais.

Scholz recupera o conceito de “estado de exceção coagulado”, de Kurz, para sinalizar a constante criação de párias. Nas protoformas da modernidade estes eram submetidos à disciplina das casas de trabalho forçado, no contexto de generalização da ética do trabalho. Já na pós-modernidade, com a diminuição constante do trabalho vivo utilizado nos processos produtivos – dada a terceira revolução técnico-científica – são criadas maneiras de administração e controle das massas sobrantes para o capital (uma delas a indústria penal).

Dada a inviabilidade de se constituir uma base autônoma de acumulação por parte do Estado, são formadas novas camadas de párias, as quais continuam tendo cor- raça. Aos novos párias é destinada a condição de perigo constante de não sobrevivência. Para Scholz, o anticiganismo estrutural é então um mecanismo de defesa irracional perante o medo de sair do sistema, de viver às suas margens, de ser – como o cigano – banido. Tal medo se estende mais do que nunca à classe média em processo de pauperização e decadência.

As discriminações racial e social se alternam desde o início da Modernidade no caso do anticiganismo, como em nenhuma variante do racismo. A dissociação e o trabalho abstrato se pressupõem mutuamente em uma relação dialética que se transforma conforme as transformações históricas. Scholz aponta a necessidade de se negar igualmente essa concepção segundo a qual negros, mulheres, selvagens e ciganos significam natureza e sensualidade, logo, o reverso do ‘valor’. E lembra que, diferente do cigano que representa o sub-humano associado à associalidade, o negro como sub-humano foi uma construção no contexto dos processos de colonização.

A autora conclui indicando que o cigano (como constructo) desde sempre entrou em simbiose com a cultura dominante. Porém não se trata de hierarquizar as variantes de racismo, mas sim de expor o anticiganismo como variante específica do racismo,

“uma forma central da barbárie da Modernidade civilizada; (…) Os sinti e roma, ainda que descriminados, de modo nenhum são per se adversários do capitalismo, mas estão profundamente marcados por ele, tal como todos os outros” (SCHOLZ, 2014, p.102).

A originalidade do raciocínio apresentado por Scholz reside justamente em apontar a necessidade de desconstrução das representações racistas (corporificadas no anticiganismo) como parte integrante da crítica do valor. Essa perspectiva pode contribuir no sentido de deslegitimar a naturalização do domínio do valor e de suas personificações – necessariamente excludentes do “outro” – como única forma social possível.

Larissa Costa Murad – mestre em Serviço Social pela UFRJ e Doutorada em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da UFRJ

Artigo publicado na Revista Eletrônica Pegada

REFERÊNCIAS

SCHOLZ, Roswitha. Homo Sacer e os ciganos: o anticiganismo – reflexões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno. Lisboa: Antígona, 2014.

Compartilhar com

Curtir isso:

Curtida Carregando...

Relacionado

Source web.archive.org

Report Page