Entrevista: Boulos paga o preço da 'esquerda legal' que discute gênero e raça e deixou pobres na direita, diz Jessé Souza
https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/13/entrevista-boulos-paga-o-preco-da-esquerda-legal-que-discuteVoz destacada da esquerda na academia e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no governo Dilma Rousseff (PT), Souza critica o protagonismo dado pelos partidos de esquerda às pautas identitárias.
Para o professor da Universidade Federal do ABC, este foi um “erro completo” e uma das razões pelas quais Guilherme Boulos (PSOL) teve muito menos votos no domingo do que a soma do prefeito Ricardo Nunes (MDB), dono da máquina municipal, e de Pablo Marçal (PRTB), em franjas da cidade nas zonas Sul (Paralheiros, Grajaú), Norte (Brasilândia, Lauzane Paulista), Leste (Sapopemba e Vila Prudente) e até Oeste (Lapa).
Veja a seguir os principais trechos da entrevista com o GLOBO:
Nunes e Marçal chegaram na frente em áreas periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste em São Paulo. Foi o voto do “pobre de direita”?
Sem dúvida. Passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade. Quando comecei a entrevistar, para o livro, há alguns anos, pessoas das periferias de São Paulo, me desesperei. O quadro já era o de “tá dominado” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.
O Datafolha mostra que 84% dos eleitores de Marçal devem migrar para Nunes no segundo turno. O quão ideológico é esse voto?
O pastor evangélico é uma espécie de coach e Marçal escancarou a faceta neoliberal do neopentecostalismo, com a ética da prosperidade e o culto vazio à capacidade do indivíduo. A esquerda até pode reconquistar esse eleitor, mas, para isso, precisará mostrar a ele que as limitações estruturais do empreendedorismo popular estão ligadas à retenção do capital na Faria Lima.
Marçal é um “Coringa” (referência ao personagem dos quadrinhos), mimetiza os anseios do pobre remediado que sonha com o apagamento mágico, por ele prometido, da pobreza. É um “político Bets”, que soube interpretar anseios dos pobres de direita. Esses eleitores identificaram nele a raiva e o ressentimento, mesmo sem que lhes fosse dada explicação alguma sobre as razões dessa injustiça social.
Candidatos similares a Marçal se multiplicarão?
Marçal se tornou referência nacional e me chamou atenção a irmandade de sua visão de mundo com a da Faria Lima, uma aliança extremamente perigosa ao unir muito dinheiro a muita penetração popular. Ele será a cara do Brasil em um futuro próximo se nada for feito institucionalmente para garantir o cumprimento das regras democráticas. Marçal precisa ser considerado inelegível após o que fez. Isso não evitará que outros candidatos sigam sua cartilha, mas eles precisarão serem mais cuidadosos, menos ameaçadores. E, com sorte, comunicadores com menos domínio do público.
A esquerda foi incapaz de conversar com o “pobre de direita” nas eleições municipais?
Foi. A esquerda errou, e muito. Não procurou, com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito. No vazio que foi criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas, a esquerda perdeu campo. Não estou otimista, creio que isso se aprofundará mais.
Nesse sentido, o senhor escreve que se criou um eleitorado cativo entre os pobres que, apesar de não conseguirem nenhuma mudança econômica prática com seu voto, vivem a violência da extrema direita como expressão de suas angústias e ressentimentos…
A chave, para a direita, é a de fazer com que o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente humilhado, vinte e quatro horas por dia. Muitas vezes, literalmente, sem nem o nome do pai na certidão de nascimento. Ele aceita assim como possibilidade de salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica, ainda que passe pelo material.
As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina, montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça social. Porém, e aí está a chave para a esquerda, repito: jamais é objeto de discussão os porquês da injustiça.
A meritocracia dos coaches responde que é culpa de sua própria incompetência…
Como se viu com Marçal. Uma explicação que não é real, mas de fácil entendimento. Em nenhum estrato sócio-econômico a meritocracia é tão entranhada quanto entre os mais pobres. A aposta na direita passa pela aceitação da culpabilidade da vítima. Esquece-se a falta de acesso à Educação e à Saúde, e, tão ou mais importante, a herança da escravização.
O senhor identifica componente racial regional no voto do pobre de direita, que teria sido fértil para o bolsonarismo…
O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, com o Bolsa Família.
No caso dos pobres de direita negros e evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que “nordestino é preguiçoso”.
Bolsonaro é traduzido no livro como a expressão atual deste pobre de direita. Mas o avanço de Marçal não sinaliza fratura no bolsonarismo neste estrato?
Não. O racismo reprimido seguirá guiando este voto para o bolsonarismo, com sua arminha voltada para o jovem preto, a partir da pauta da segurança, tão cara a esses eleitores. Os pobres são os que mais sofrem com os preconceitos que a elite criou para oprimi-los. Ele acredita que é um incapaz. E aí ou ele usa essa "faca envenenada” nele mesmo ou no “outro pobre”.
Esse “outro pobre” é o maconheiro, o macumbeiro, o LGBTQUIA+, o nordestino, o que vota no PT, o bandido, cabe tudo naquele que é percebido como transgressor. O lulismo ainda consegue tocar o eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de criminalização.
Esse eleitor sofre, desde a Lava-Jato, com a pecha de ser cúmplice da corrupção. E o pobre prefere morrer a ser corrupto. O voto na esquerda teria sido uma burrice, mais uma prova da incapacidade do andar de baixo. Isso está entranhado em muitos pobres de direita hoje.
O senhor critica o protagonismo das pautas ditas identitárias pela esquerda. Isso a teria distanciado ainda mais dos eleitores mais pobres?
Sim. Foi um erro completo. E Boulos está pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixar este pobre na direita.
O identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da maioria pobre e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio Vargas.
O senhor defende um encontro do PT com o varguismo?
Sim. Validar esse pobre é importante. É o que Getúlio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje. A não ser que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica.
É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT. Não é assim que funciona a cabeça humana na sociedade contemporânea, e muito menos a transmissão de ideias e de informação. A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar. O Bolsa Família foi importantíssimo, mas a esquerda não ofereceu o escape da humilhação que é estar na posição de delinquente no mundo de hoje. O pobre que ganha R$ 4 mil criminaliza o “nordestino miserável que mama no Bolsa Família” e crê de fato que o sustenta. Friso, só há um jeito de se sair da armadilha do pobre de direita e disputar de verdade seu voto: explicar a ele as razões das injustiças sociais e de sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor.