Desperta, a fome.

Desperta, a fome.

Alric Lars Granfelt. Halkeginia, 5pm. 01.05.2025.

O dia não havia amanhecido silencioso.

Ter se designado para a função de auxiliar na enfermaria parecia uma boa ideia, ao menos de início. Afinal, quem poderia imaginar que tantos outros alunos poderiam acabar se machucando ao executarem tarefas tão básicas, como as da criadagem?

Ali, na enfermaria, repousavam os que tinham doenças crônicas, os que não possuíram sucesso em despertar completamente, ou aqueles cujo os acidentes do dia-a-dia haviam tomado boa parcela de seus corpos frágeis. A enfermeira-chefe estava ocupada — ou fingia estar — e Aldric foi deixado quase sozinho com frascos rotulados, arquivos empoeirados e gemidos abafados.

A única coisa que precisava fazer era focar em suas tarefas.
Apenas isso.

Casos de "descuidos" entre nobres de casas rivais, registros de poções com efeitos estranhamente adversos e, até mesmo, varinhas entrando em combustão nas mãos de seus magos. Todos os tipos de acidente aconteciam em Halkeginia e seus relatórios, mais do que extensos, atestavam isso com precisão — era Alric quem agora passeava com os dedos sobre as pilhas de registros médicos, organizando-os com o cuidado de quem tinha aprendido, na força do hábito, a ver algo mais do que simples anotações.

Mas, seu olhar se fixou em um conjunto de papéis mais antigos.

Eram registros de pacientes de décadas atrás, seus nomes quase apagados pela passagem do tempo. Notou que algo estava errado, porém, ao folhear as páginas amareladas com a ponta dos dedos; cada um dos pacientes estavam marcados com um símbolo comum: a letra “E”, o termo registrado ao lado de cada nome se repetindo como uma marca de algo desconhecido, uma anomalia.

Alric franziu a testa, os dedos parando de se mover sobre os papéis.

— Como foi que isso veio parar aqui? — Ele murmurou, sabendo que a Torre tinha seus segredos, mas jamais pensou que fosse encontrar algo tão… explícito.

Entretanto, antes mesmo que pudesse alimentar a curiosidade latente, foi despertado dos devaneios por um grito alto de dor; sinal suficiente para que Alric se levantasse, depressa, na direção de uma das camas conhecidas ao fundo.

— Ei, ei, Lys. O que foi? — O nome escapou da boca, recente.

Havia conhecido a paciente faziam poucas horas, mas tinha noção de que a estadia da aluna naquela parte da torre era mais do que recorrente, ainda que sua presença fosse calma e acolhedora. Agora, no entanto, a encontrou contorcendo-se sobre a cama, como se algo estivesse torcendo sua mente, não apenas seu corpo. Suas palavras saíam em murmúrios desconexos, mas o suficiente para que o ruivo ouvisse:

“Eles estão vindo... Não posso mais me esconder, eu não posso.”

O vácuo vai devorar tudo.

Alric parou por um momento, o estômago apertando repentinamente. Ele nunca havia ouvido algo como aquilo. Ela parecia estar em transe, mas as palavras… eram como algo que ele já soubera de algum lugar, até mesmo de algum... sonho. A torre, os registros, a letra "E"... Ele precisou se controlar para não olhar para os papéis espalhados sobre a mesa, onde sua mente já se lançava.

Alric, foco. — Grunhiu para si mesmo, interrompendo o transe.

Ele correu para os armários trancados e começou a procurar freneticamente a solução mágica que poderia ajudá-la, mas algo o fez hesitar. Algo que estava errado no seu movimento, na ordem em que fazia as coisas; algo lacrado e escondido entre o fundo de um compartimento.

Com o selo do papel quebrado, ele viu algo que não deveria.

Era um relatório administrativo, antigo, com destino à Torre E. Algo o puxava para ele. O papel estava marcado como "não entregue". Ele examinou a data. Décadas passadas. Alric hesitou; o protocolo estava longe de ser vigiado, e como todos os criados estavam ausentes, ele sentiu, mais do que nunca, a pressão de uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.

“Isso é parte do meu trabalho.”
Foi a única justificativa que precisou.

A travessia até a torre esquecida exigiu que cruzasse corredores de pedra interditados e uma escada em caracol escondida atrás de tapeçarias mofadas, o peso do silêncio sendo opressor, como se a própria Torre estivesse retendo seu fôlego, aguardando algo já predestinado. Alric não sabia o que exatamente, mas sentia que estava indo para algo que aguardava por ele.

Precisaria agradecer à Rui mais tarde por cobrir seu turno na enfermaria.

Não precisou de muito tempo para chegar em uma das entradas pouco utilizadas da torre E; uma porta lateral, de serviço, trancafiada apenas por uma das chaves que obteve da enfermaria, ainda que sem autorização oficial. Entretanto, apenas empurrou a porta com cautela, o rangido do metal ecoando pelo corredor.

Não esperava uma visão como aquela.

O lugar estava em ruínas, com as paredes rachadas e símbolos apagados parcialmente no chão. Não havia mais vida ali, apenas o vazio imenso que parecia se espalhar pela Torre; uma opressão intensa, como se a própria estrutura reconhecesse a presença de um mago que não deveria estar ali. Aldric não deveria estar ali.

— Eu só preciso fazer uma entrega. Só isso. — Seguiu, respirando fundo.

Caminhou pelo corredor principal que levava a um saguão com seis portas de madeira antiga. Em cada uma, um selo mágico queimava suavemente em linhas geométricas intricadas. Nenhuma se abria, nenhuma cedia a empurrões ou palavras de comando. Eram como prisões fechadas por escolha; mas de quem?

Na única sala aberta — abandonada e deteriorada — Aldric encontrou uma mesa coberta de poeira. Sobre ela, uma varinha partida ao meio, e ao lado, um caderno de capa escura.

Ele abriu o diário.

“ᚳᚢᚪᚾᛞᚩ ᚪ ᚳᚢᛁᚾᛏᚪ ᛈᚩᚾᛏᚪ ᚳᚢᛖᛒᚱᚪᚱ ᚩ ᛋᛖᛚᚩ ᛞᚩ ᛋᛁᛚÊᚾᚳᛡ, 
ᚪ ᛚᚢᛋ ᛞᚩᛋ ᚠᛁᚠᚩᛋ ᚠᚪᚳᛁᛚᚪᚱÁ ᚾᚪ ᚱᛖᛋᛈᛁᚱᚪÇÃᚩ ᛞᚩ ᛗᚢᚾᛞᚩ. 
ᛖ ᚩ ᚠÁᚳᚢᚩ, ᚠᚪᛗᛁᚾᛏᚩ, ᚠᚪᚱÁ ᛞᚩ ᛖᛋᚳᚢᛖᚳᛁᛗᛖᚾᛏᚩ ᛋᚢᚪ ᛗᚩᚱᚪᛞᚪ.

ᛖᛚᛖ ᛖᛋᛏÁ ᚳᚩᛗ ᚠᚩᛗᛖ. 
ᚩ ᚠÁᚳᚢᚩ ᛞᛖᚠᚩᚱᚪ ᛏᚢᛞᚩ. ”

Os olhos do loiro correram pelas linhas manchadas com tinta desbotada, reconhecendo, ainda que rusticamente, a língua praticada durante as aulas — algo sobre um aluno que havia despertado a habilidade do vácuo; uma... profecia.

— Ele está com fome... — Aldric leu em voz baixa.

O vácuo devora tudo.

No momento em que absorveu aquelas palavras, sentiu como se o ar deixasse os próprios pulmões e o coração acelerasse; uma sensação de calafrio tão intensa que demorou para registrar o som de passos pesados atrás de si.

Mas, quando se virou,
não havia ninguém ali.

De volta à enfermaria, ele se escondeu rapidamente com o documento entre os registros médicos mais recentes antes de agradecer ao amigo — torcendo para que Rui não notasse a palidez em seu rosto. Ele não queria que ninguém se preocupasse; sequer queria saber realmente o que estava acontecendo, mas sentiu que algo precisava ser feito.

Precisava falar com Lys.

Caminhou até os fundos da enfermaria, arrastando a cortina empoeirada que cobria ala onde havia visto a jovem pela última vez; talvez, com a ajuda dela, poderia encontrar alguma resposta. Mas, dessa vez, encontrou apenas uma cama vazia.

Aldric procurou por ela por mais alguns minutos antes de se dirigir à enfermeira chefe, sendo recebido com um olhar vazio e distante.

— Com licença, senhorita Harvesty. A paciente da cama aos fundos, a Lys. — O ruivo começou, sentindo uma estranha pressão em seu peito. — Onde ela foi?

A enfermeira o olhou com uma calma... inquietante. — Aldric, nunca tivemos uma paciente com esse nome aqui.

Aquelas palavras congelaram o sangue de Alric.
O vazio na torre, aquilo que ele sentiu... parecia ter engolido mais do imaginava.

O vácuo devora tudo.

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