Decifrando a declaração conjunta russo-chinesa
Andrei Raevsky - 05 de fevereiro de 2022 - (Traduzido por @QuantumBird e revisado por @LadyBharani)
[Figura adicionada pelo tradutor. Fonte: https://t.me/boris_rozhin/20162]
Introdução:
Em primeiro lugar, esta é uma declaração muito longa (5300 palavras). Também é extremamente importante, pois lida principalmente com questões de grande estratégia (discutindo o “o que” e não o “como”). Para ser sucinto, esta é uma visão comum do futuro compartilhada entre a Rússia e a China. É, portanto, também um documento comum de definição de metas. Considerando seu escopo e objetivo, este é definitivamente um documento histórico crucial.
Em seguida, é realmente importante entender quem é o público-alvo dessa afirmação. Por definição, o público-alvo de tal documento é o planeta inteiro, mas por sua linguagem eu diria que está bastante claro que este não é um documento dirigido a ninguém no Ocidente (por um lado, é muito longo para o leitor ocidental médio e é também longo demais para ser reimpresso ou lido na íntegra na imprensa geral). Há um ditado que todos os russos conhecem: “ o Oriente é um assunto delicado (refinado)” (vem de um famoso filme soviético). O estilo e o conteúdo desta declaração conjunta mostram que ela se destina principalmente ao público russo e chinês, especialmente aqueles em posição de poder: para um leitor ocidental típico, o texto em si parece prolixo e cheio de chavões bem-intencionados. Os russos e os chineses se entendem muito melhor, e não só podem ler nas entrelinhas como podem avaliar o que é dito e o que é apenas sugerido. O fato de algumas coisas serem apenas aludidas não as torna menos cruciais. Novamente, o público-alvo aqui definitivamente não é ocidental.
Dito tudo isto, quero escolher, grosso modo, algumas partes-chave desse discurso e tentar descompactar o que essa declaração conjunta realmente diz. Esta é uma seleção um tanto arbitrária, na realidade, a letra da palavra e a vírgula importam aqui, mas por uma questão de brevidade, não comentarei o texto completo. No entanto, recomendo que você reserve um tempo e leia aqui:
Principais trechos da Declaração Conjunta RU-CH (ênfase adicionada) :
Alguns atores que representam uma minoria na escala internacional continuam a defender abordagens unilaterais para abordar questões internacionais e recorrer à força; interferem nos assuntos internos de outros Estados, infringindo seus direitos e interesses legítimos, e incitam contradições, diferenças e confrontos, dificultando o desenvolvimento e o progresso da humanidade, contra a oposição da comunidade internacional.
Tradução para linguagem simples: os EUA e alguns de seus estados vassalos querem manter a hegemonia mundial e ignorar o direito internacional. Esta é uma ameaça à paz e à segurança de todo o nosso planeta. Nós nos opomos a isso.
Não existe um modelo único para orientar os países no estabelecimento da democracia. Uma nação pode escolher as formas e métodos de implementação da democracia que melhor se adaptem ao seu estado particular, com base em seu sistema social e político, sua história, tradições e características culturais únicas. Cabe apenas ao povo do país decidir se o seu Estado é democrático.
Tradução para linguagem simples: não há uma única maneira de estabelecer o poder real do povo, e os de fora são, por definição, desqualificados para julgar o grau de “democracia” de qualquer nação. Cada nação tem o direito de decidir como quer viver, como quer estruturar formalmente seu poder popular e somente o povo dessa nação pode decidir se a organização de seu país expressa fielmente e defende seus valores nacionais. Pessoas de fora não podem se considerar “professores de democracia”.
Os lados reafirmam seu foco na construção da Grande Parceria Eurasiática em paralelo e em coordenação com a construção do Cinturão e Estrada para promover o desenvolvimento de associações regionais, bem como processos de integração bilateral e multilateral em benefício dos povos do continente eurasiano. As partes concordaram em continuar intensificando consistentemente a cooperação prática para o desenvolvimento sustentável do Ártico.
Tradução para linguagem simples: nós, os habitantes locais, estamos (e estaremos) construindo uma comunidade eurasiana que abrangerá toda a massa terrestre eurasiana e suas águas árticas adjacentes. Esta massa de terra eurasiana será governada soberanamente pelas nações que a compõem.
Os lados estão seriamente preocupados com os sérios desafios de segurança internacional e acreditam que os destinos de todas as nações estão interconectados. Nenhum Estado pode ou deve garantir sua própria segurança separadamente da segurança do resto do mundo e à custa da segurança de outros Estados.
Tradução para linguagem simples: a segurança é sempre e por definição coletiva. Não pode haver segurança para alguns em detrimento da segurança de outros. A noção de segurança unilateral do Império Anglo-Sionista é basicamente colocar uma arma na cabeça de cada nação do planeta com a ameaça muito explícita de puxar o gatilho se essa nação ousar resistir a esse típico ato de agressão imperialista.
As partes reafirmam seu forte apoio mútuo à proteção de seus interesses centrais, soberania estatal e integridade territorial, e se opõem à interferência de forças externas em seus assuntos internos.
Tradução para linguagem simples: estamos e estaremos lado a lado e juntos derrotaremos as forças que estão tentando nos impedir de alcançar e manter a soberania verdadeira e plena.
O lado russo reafirma seu apoio ao princípio de Uma Só China, confirma que Taiwan é uma parte inalienável da China e se opõe a qualquer forma de independência de Taiwan.
Tradução para linguagem simples: A Rússia apoiará os esforços chineses para reintegrar Taiwan. A Rússia cobre as costas da China.
A Rússia e a China se opõem às tentativas de forças externas de minar a segurança e a estabilidade em suas regiões adjacentes comuns, pretendem combater a interferência de forças externas nos assuntos internos de países soberanos sob qualquer pretexto, se opõem às revoluções coloridas e aumentarão a cooperação nas áreas mencionadas.
Tradução para linguagem simples: A China apoiará a Rússia em seus esforços para impedir que os EUA/OTAN/UE transformem a Ucrânia em uma anti-Rússia ou derrube governos amigos da Rússia. A China cobre as costas da Rússia.
As partes acreditam que determinados Estados, alianças militares e políticas e coalizões buscam obter, direta ou indiretamente, vantagens militares unilaterais em detrimento da segurança de outros, inclusive empregando práticas de concorrência desleal, intensificando a rivalidade geopolítica, alimentando o antagonismo e o confronto, e minando seriamente a ordem de segurança internacional e a estabilidade estratégica global. As partes opõem-se a um maior alargamento da OTAN e apelam à Aliança do Atlântico Norte para que abandone as suas abordagens ideologizadas da Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade das suas origens civilizacionais, culturais e históricas, e exerça uma atitude objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados.
Tradução para linguagem simples: o Ocidente está tentando desestabilizar, subverter, controlar e destruir qualquer país que não esteja disposto a se tornar um estado vassalo dos EUA. A OTAN é uma superestrutura agressiva, violenta e totalitária cujo objetivo é impedir que qualquer país alcance a soberania. É apenas a mais recente iteração do imperialismo anglo. Sua ideologia é baseada no ódio e na projeção de sua própria visão de mundo odiosa e ethos para os outros. Sua natureza é imperialista e seu lema é "divide et impera". Vamos nos opor a esse tumor maligno geoestratégico juntos.
As partes estão seriamente preocupadas com a parceria de segurança trilateral entre a Austrália, os Estados Unidos e o Reino Unido (AUKUS), que prevê uma cooperação mais profunda entre seus membros em áreas que envolvem estabilidade estratégica, em particular sua decisão de iniciar a cooperação no campo da submarinos de propulsão nuclear. Rússia e China acreditam que tais ações são contrárias aos objetivos de segurança e desenvolvimento sustentável da região Ásia-Pacífico, aumentam o perigo de uma corrida armamentista na região e representam sérios riscos de proliferação nuclear.
Tradução para linguagem simples: AUKUS é mais uma iteração do imperialismo anglo. É perigoso e vamos nos opor a isso juntos.
Os lados pedem que os Estados Unidos respondam positivamente à iniciativa russa e abandonem seus planos de implantar mísseis terrestres de alcance intermediário e curto na região da Ásia-Pacífico e na Europa. O lado chinês é solidário e apoia as propostas apresentadas pela Federação Russa para criar garantias de segurança juridicamente vinculativas de longo prazo na Europa.
Tradução para linguagem simples: a China apoia totalmente o ultimato russo ao Ocidente. A rejeição do Ocidente às demandas russas também afeta a região Ásia-Pacífico e, portanto, afeta e até ameaça os interesses nacionais da China. A Rússia e a China têm um objetivo comum de resistir às políticas imperialistas do Ocidente.
Os lados observam que a renúncia pelos Estados Unidos de uma série de importantes acordos internacionais de controle de armas tem um impacto extremamente negativo na segurança e estabilidade internacional e regional. Os lados expressam preocupação com o avanço dos planos dos EUA para desenvolver defesa antimísseis global e implantar seus elementos em várias regiões do mundo, combinado com a capacitação de armas não nucleares de alta precisão para ataques de desarmamento e outros objetivos estratégicos.
Tradução para linguagem simples: a Rússia não permitirá que os EUA cerquem militarmente a China e a China não permitirá que os EUA cerquem militarmente a Rússia. A Rússia e a China estão de costas um para o outro e se protegerão, frustrando assim qualquer plano da Anglo de cercar uma ou ambas as nações.
Os lados se opõem às tentativas de alguns Estados de transformar o espaço sideral em uma arena de confronto armado e reiteram sua intenção de fazer todos os esforços necessários para evitar o armamento do espaço e uma corrida armamentista no espaço sideral. Eles vão neutralizar as atividades destinadas a alcançar a superioridade militar no espaço e usá-la para operações de combate.
Tradução para linguagem simples: os programas espaciais russos e chineses farão um esforço conjunto para derrotar as tentativas dos Anglo-Sionistas de militarizar o espaço, ambos os países se ajudarão para desenvolver futuras capacidades espaciais, criar e implantar os meios para impedir que os EUA os ameacem do espaço.
Os lados enfatizam que as atividades de armas biológicas domésticas e estrangeiras pelos Estados Unidos e seus aliados levantam sérias preocupações e questões para a comunidade internacional em relação ao cumprimento da BWC [ sigla para Biological Weapons Convention, ou Convenção sobre Armas Biológicas - nota do tradutor]. Os lados compartilham a opinião de que tais atividades representam uma séria ameaça à segurança nacional da Federação Russa e da China e são prejudiciais à segurança das respectivas regiões.
Tradução para linguagem simples: os EUA claramente têm um programa de guerra biológica ativo. A Rússia e a China se sentem ameaçadas por isso e agirão juntas para impedir que os EUA desenvolvam armas biológicas ilegais e perigosas.
O lado russo destaca o significado do conceito de construção de uma “comunidade de destino comum para a humanidade ” proposto pelo lado chinês para garantir maior solidariedade da comunidade internacional e consolidação de esforços para responder aos desafios comuns. O lado chinês observa a importância dos esforços feitos pelo lado russo para estabelecer um sistema multipolar justo de relações internacionais.
Tradução para linguagem simples: Rússia e China concordam que a nova ordem mundial pós-ocidental que eles querem alcançar será baseada na fraternidade e solidariedade de todos aqueles países que, em vez de explorar todo o planeta para o benefício de alguns, querem ver um sistema internacional baseado em valores compartilhados e não na ganância e na opressão dos fracos pelos fortes. Nesse sistema, as relações entre os países serão baseadas no direito internacional e nas Nações Unidas como sua pedra angular e não por algumas “alianças de intenções” ad hoc ou qualquer outro absurdo ilegal.
Reafirmam que as novas relações interestatais entre Rússia e China são superiores às alianças políticas e militares da época da Guerra Fria. A amizade entre os dois Estados não tem limites, não há áreas de cooperação “proibidas”, o fortalecimento da cooperação estratégica bilateral não é direcionado contra terceiros países nem afetado pela mudança do ambiente internacional e mudanças circunstanciais em terceiros países.
Tradução para linguagem simples: “ as relações entre a Rússia e a China são superiores às alianças políticas e militares da era da Guerra Fria ” é bastante clara: a Rússia e a China são mais do que aliados ou “apenas” simbiontes, a aliança que eles formaram não é uma "paz de papel" de estilo ocidental que pode ser revogada ou ignorada. Rússia e China decidiram estabelecer uma verdadeira “amizade que não conhece limites”, que é uma irmandade muito maior em escopo e muito mais profunda por natureza do que qualquer aliança formal. Os dois países veem um futuro comum e se apoiarão como dois irmãos amorosos. Nota: a escolha das palavras “amizade sem limites” foi cuidadosamente elaborado para não fazer sentido para um público ocidental que o verá apenas como “platitudes piedosas e vagas sem obrigações vinculativas”, mas que ficará muito claro para aqueles que vêm dos reinos civilizacionais russo e chinês. Simplificando: ninguém no Ocidente realmente acredita em “amizade” entre estados, apenas aliados situacionais e interesses pessoais. O conceito de amizade tem um significado muito diferente na China e na Rússia. Além disso, “sem limites” também não faz sentido na geopolítica ocidental. Novamente, para um público russo ou chinês, o parágrafo acima significa e expressa muito MAIS do que qualquer “aliança”, “tratado” ou “acordo”. Os líderes políticos ocidentais simplesmente não conseguem entender ou imaginar o que a Rússia e a China estão dizendo aqui – suas mentes simplesmente não conseguem compreender o que está sendo dito aqui.
A Rússia e a China pretendem fortalecer de forma abrangente a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e aprimorar ainda mais seu papel na formação de uma ordem mundial policêntrica baseada nos princípios universalmente reconhecidos do direito internacional, multilateralismo, segurança igualitária, conjunta, indivisível, abrangente e sustentável. Eles consideram importante implementar consistentemente os acordos sobre mecanismos aprimorados para combater os desafios e ameaças à segurança dos estados membros da SCO e, no contexto de abordar essa tarefa, defendem a ampliação da funcionalidade da Estrutura Antiterrorista Regional da SCO.
Tradução para linguagem simples: China e Rússia desenvolverão sua cooperação de segurança de amplo espectro. Assim como o CSTO recentemente, o SCO logo desenvolverá “dentes” mais poderosos e os mostrará se/quando necessário. E não se deixe enganar pela referência à escolha da expressão “antiterrorismo”. A recente operação CSTO no Cazaquistão também foi “antiterrorista” :-)
Conclusão:
A divulgação desta declaração conjunta é o equivalente geoestratégico do famoso discurso de Putin no qual ele descreveu os novos sistemas de armas russos: inicialmente será rejeitado pelos políticos ocidentais que passarão lentamente pelos cinco estágios de luto de Kübler-Ross ( negação, raiva, negociação, depressão e aceitação). Esta “amizade sem limites” trabalhando para uma “comunidade de destino comum para a humanidade” é o pior pesadelo absoluto do imperialismo ocidental, que ainda é agravado pelo fato de que não há absolutamente nada que o Ocidente possa fazer para frustrar, se opor ou mesmo retardar o progresso da Rússia e da China em direção ao seu objetivo e futuro comuns.
Longe de “atacar” o Ocidente ou de invadir alguém, a Rússia e a China já fazem algo há anos e agora o que é esse “algo” está bem claro (pelo menos para aqueles com sobriedade e inteligência para vê-lo): Rússia e A China estão simplesmente deixando para trás o Ocidente coletivo, deixando-o na mão (suicídio político, cultural, econômico, militar e até espiritual) enquanto constrói uma alternativa.
Você poderia dizer que a Zona B não quer destruir ou derrubar a Zona A. A Zona B quer oferecer uma alternativa à Zona A e então deixar cada nação decidir por si mesma em que zona quer viver.
Há uma palavra que está faltando nesta declaração. Essa palavra é “ Irã ”.
Não está faltando porque a China ou a Rússia não se importam com o Irã ou não percebem o quão importante o Irã será para o futuro do Oriente Médio e até mesmo de todo o nosso planeta. Eles sabem disso muito, muito bem. A razão pela qual a palavra “Irã” está faltando é simples: enquanto o Irã é definitivamente um amigo e aliado tanto da Rússia quanto da China, o Irã não compartilha uma “amizade ilimitada” ou relacionamento simbiótico fraterno com nenhum dos países. Nem o Irã é um membro pleno da SCO, ainda. No entanto, tanto a China quanto a Rússia entendem que o Irã é crucial, não apenas como uma porta de entrada para a Rússia e a China no Oriente Médio, mas também como um membro crucial do sistema supra-ideológico de alianças que a Rússia e a China desejam criar. Na verdade, esses países já se ajudam há anos. Mas tem mais, veja:
- A Rússia é um estado democrático e “social”, com uma mistura estranha e mutável de capitalismo e coletivismo russo tradicional.
- A China é uma mistura única de capitalismo e controle estatal comunista
- O Irã é uma república islâmica .
Fale sobre a verdadeira diversidade! Esses países têm culturas, histórias e sistemas políticos completamente diferentes, mas se apoiam totalmente. Esse é o modelo “não existe um modelo único para todos” já sendo construído diante de nossos olhos! Também acredito que o Irã logo se juntará à SCO.
Esse modelo atrairá e incluirá facilmente os países latino-americanos que escolherem a ideologia do “socialismo do século 21” (desenvolvido principalmente por Cuba, Venezuela e Bolívia). Também será muito mais atraente para muitos países africanos do que a “bota imperialista ocidental” (exemplos incluem Mali, Burkina Faso, Congo e, potencialmente, muitos outros).
O mapa abaixo mostra a situação atual .
A declaração conjunta russo-chinesa nos diz tudo o que precisamos saber sobre como esse mapa mudará no futuro próximo.

Fonte: https://thesaker.is/unpacking-the-russian-chinese-joint-statement/