O Cão de Guarda

O Cão de Guarda

LeviS

Moravam num vilarejo um guarda florestal e seu cão farejador. E eram tão bons amigos! O guarda o havia muito bem adestrado, e quando um item tinha sido perdido no bosque, por menor e menos cheiroso que seja, o cão logo o encontrava. Era assim: cafungava bem muito o dono, de um lado pro outro, e logo desatinava a andar obstinado em direção à mata.

E como se perdiam as coisas na mata! Se perdiam joias, cachecóis, bonecas e cestas de piquenique. Se procuravam chinelas, dentaduras, chaveiros e até roupas de baixo!

Mas o que mais divertia o guarda era quando se perdiam crianças travessas. Ele ficava à rir, ó, mais que moleques bobocas! Não fosse por nós se perdiam para sempre! Merecem uns bons tapinhas quando chegarem em casa, as mães morrem de chorar e os enchem de beijos... merecem mais é duas semanas inteiras de castigo!

E viviam bem, pois eram bons amigos, o guarda e seu cão. Mas dado certo passar de estações, o guarda estava mais cansado. Esquecia de dar o almoço do cão. Esquecia ele mesmo de almoçar. O cão, tadinho, rebolava muito o rabinho para sair e passear lá fora. Mas o guarda não se levantava da cama. O cão puxou e puxou o cobertor, e nada!

O cão não entendia porque o guarda sempre olhava pela janela de sua casa, mas nunca saía.

O cão ficou tão enfezado que teve um pensamento nefasto! E se culpou um pouco por isso. Mas ao se ver em situação tão desagradável, ele desejou que alguém tivesse perdido algo muito, mas muito importante, só para que eles pudessem sair de novo. O cão colocou o rabo entre as pernas.

E no outro dia, o dono foi até o armário, abriu a última gavetinha, e tirou de lá uma bonita e reluzente fita. E a colocou em cima da mesa. O cão se endireitou, estava deitado e se sentou... O guarda colocou a fita em sua frente, e pediu, por favor. Encontre para mim.

O cão farejou o laço e reconheceu o cheiro de primeira! E resmungou, olhou de um lado pro outro, disse que não, foi pra sua cama, não iria atrás daquilo de jeito nenhum! Nunca! E o dono foi atrás dele, prometeu todos os biscoitos do mundo, que era tudo que ele precisava naquele momento. O cão quis morder o dono!

Mas ficou de costas pro dono e não abanou o rabo. O dono voltou para a cama.

E lá ficou. E era tão difícil vê-lo dessa maneira. Não queria fazer nada, só olhando pela janela, esquecendo-se de almoçar...

O cão percebeu que não havia o que fazer. Foi pegar sua coleira, e colocou na frente do guarda. Ambos saíram à noite, ninguém no vilarejo para dar conta deles.

E seguiram adiante, fundo, fundo no bosque...

Iluminou o dia, e homem aqueceu um bule de chá e alimentou seu fiel canino. Anoiteceu de novo, e eles dormiram sob as estrelas, contando vias lácteas. O cão estava com uma saudade de tomar leite!

Ia ficando frio e no ar pairava uma leve bruma. Os galhos quebravam com o peso do passo, as folhas dançavam antes de cair cansadas no chão. O vento uivava pela fresta, e de vez em quando ouvia-se o coral de grilos.

As provisões que tinham trazido iam se acabando... e estavam tão, mas tão cansados, o cão se deitou de barriga pra cima para pegar um solzinho e se aquecer um pouco. O homem se recostou em uma árvore, e se pôs a dormir e a sonhar. O cão queria saber o que ele tanto sonhava.

Amanhecia uma luz tão fraca. E já exaustos de tanto andar, quase não caminhavam mais; se arrastavam. Não havia mais o que comer... O chá havia acabado, água do córrego não era boa. O cão ganiu e se encostou sem fôlego no dono, a respiração ofegante, a linguinha de fora. E o dono, sem acordar, se pôs a afagá-lo.

O seu coraçãozinho batia rápido no peito... o dono pediu que fosse embora, voltasse para o vilarejo e que cuidasse das crianças. Passeasse bem muito, encontrasse o que se perdeu... E pediu perdão pelas vezes que esqueceu de dar o almoço! Agora, ele precisava que partissem caminhos opostos... O cão não quis! Quis ficar! Quis estar perto do dono. E ficou. O guarda pegou o laço e desatou a andar. O cão ficou sentado em posição de fica. E o dono gritou, vá embora! E o cão levantou as orelhas. E o dono voltou a gritar, VÁ EMBORA! E mesmo que não tivessem lhe sobrado forças, lançou uma pedra em sua direção. E mesmo que que não tivessem lhe sobrado forças, o cão foi embora.

E o homem andou cada vez mais fundo no bosque, segurando o laço. Às vezes deitava e sonhava. Perambulava sem rumo, cada vez menor. Distante.

Até que sumiu e o bosque já não se dava conta dele. Coisas sumidas são assim, são como se nunca tivessem existido senão como memória. Lembrança particular... e no mundo mesmo, ninguém faz a menor ideia de onde está.

O homem sonhou um sonho longo. O cão latiu, latiu e latiu, e surgiu com as crianças travessas, e com suas mães. Apareceram em uma rodinha, rodeando o homem, beijando sua bochecha e o cão lambendo seu rosto todo. O carregaram de volta para sua casa, onde ele se deitou perto da janela... Fizeram chá e comeram biscoitos!

E o laço ficou entre as folhas caídas do bosque, perdido. Algumas coisas devem continuar perdidas para sempre... Mas às vezes precisamos nos perder para nos encontrar. Essa foi a sabedoria que o cão de guarda me ensinou.

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