Bem e mal não existem

Bem e mal não existem

Felipe Forte
Yin e yang, um dos símbolos mais mal-interpretados da antiga filosofia chinesa. Os chineses antigos percebiam o mundo através do dualismo, mas eles tinham a impressão de que os polos opostos do dualismo eram, de alguma forma, complementares entre si. Os mestres Zen, contudo, enxergavam o dualismo como uma delusão mental.


Para alguns talvez não seja óbvio, por isso, tento ser o mais claro possível, porque acredito que esse assunto é importante.

Não, bem e mal não existem, são ilusões que as pessoas cultivam em suas mentes. É uma das delusões dualistas mais enraizadas na nossa cultura, e mesmo não sendo explicitamente faladas, elas ainda permanecem presentes na nossa mente. Não existem pessoas boas nesse mundo. Nem pessoas ruins, até mesmo assassinos em série, políticos que causam morte de milhares a milhões, discriminadores de cor, gênero e sexo, ladrões, abusadores sexuais, burgueses exploradores da classe trabalhadora, pastores enganadores dos fieis, torturadores, narcotraficantes, seus pais, entre muitos outros exemplos. Como então diferenciar a conduta de uma pessoa “boa” e uma pessoa “má”?

Antes de responder a esta pergunta, primeiro vamos entrar no mérito de tentar explorar o que significa bem e mal. O que é uma boa pessoa? E uma má? Se tentarmos procurar no dicionário (estou usando o Dicio.com.br pra isso), vamos ver uma recursividade típica dos paradoxos e contradições: “Bom” significa “que expressa bondade”, “bondade” significa “inclinação para fazer o bem”, “bem” significa “o que causa alegria e felicidade”. Eita. As bruxas queimadas na fogueira eram recebidas com ímpetos de louvores extasiantes de alegria, isso quer dizer então que a Igreja estava fazendo o bem? Com certeza não para a pobre bruxa. Que tal um policial que acredita estar fazendo “um bem para a comunidade” ao assassinar 15 jovens numa chacina na periferia?

Certo, o bem é contraditório, e quanto ao mal, o ruim? “Ruim” signifca “que pratica atos de maldade”. “Maldade” significa “crueldade; qualidade da pessoa má. “Mal” signifca “contrário ao bem; que prejudica ou machuca”. A primeira coisa que vem à mente é o fato de que o mal aparenta ter como base o bem, expressando o seu contrário. O bem sempre aparece como princípio, e o mal é o seu oposto. A segunda coisa é que, segundo o dicionário, o mal prejudica ou machuca. Lembro do Código de Hamurabi, as mais antigas leis escritas de que se tem ciência, onde é dito que se você matar a filha do seu igual, sua própria filha seria morta. O Código de Hamurabi tem como base a suposta “bondade e a justiça ditada pelos deuses” para Hamurabi. Um exemplo mais atual seria o Estado 'democrático', que prende cidadãos que cometem crimes. Alguns acreditam que quem comete crimes é “do mal”. O cidadão é preso, excluso da sociedade, e por isso, prejudicado e machucado. Na visão metafísica dualista, o Estado estaria fazendo mal (ao criminoso) ao fazer o bem (ao resto dos cidadãos). Paradoxo e contradição.

Percebendo como são conceitos sem definição, sem precisão, e também sem utilidade prática, vemos como analisar o mundo pela ótica moralista de bem e de mal é uma ilusão cognitiva profunda. Agora, voltando à pergunta, como diferenciar a conduta de uma pessoa “boa” e uma pessoa “má”? Responderei com uma outra pergunta: para quê diferenciar a conduta de uma pessoa “boa” e de uma pessoa “má”? A filosofia não-dualista nos ajudaria profundamente nesse aspecto, a perceber como essa pergunta também não tem utilidade. Uma das filosofias não-dualistas mais profundas é o Zen (ou Chan), que aborda o não-dualismo radical. Não só o Zen busca libertar seus estudantes das ilusões dualistas de bem e de mal, de sabedoria e ignorância, de opressor e oprimido, como também de sujeito e objeto, ou seja, de “eu” e de “você”. Muitas vezes, ao se deparar com a literatura Zen, os koans, que são poemas ou anedotas que carregam o ensino dos mestres Zen escondida por de trás das palavras, buscam ilustrar a não-dualidade. Um exemplo:

Caso 4 da “Barreira sem Portões” — O Bárbaro do Ocidente imberbe
Wakun disse, “Por que o Bárbaro do Ocidente é imberbe?”

Soa simples, mas ao mesmo tempo confuso, especialmente para alguém que não esteja próximo da literatura Zen. O “Bárbaro do Ocidente” refere-se a Bodhidharma, que veio da Índia e trouxe o Chan (Zen) para a China. Bodhidharma era costumeiramente retratado em pinturas como um monge barbudo. A pergunta então é, “por que Bodhidharma, que é barbudo, é imberbe?”

Os koans costumam parecer paradoxais e contraditórios a princípio, mas essa estranheza vem de anos condicionados mentalmente a enxergar o mundo através da conceitualização linguística. Esse koan ilustra a não-dualidade dessa forma: eu e você não somos desiguais. Nossa mente tem o mesmo potencial intuitivo capaz de enxergar a realidade tal como ela é. A realidade para além da realidade, que, no Budismo é chamada de vacuidade. O que esse koan ilustra é que você e o Bodhidharma não têm nenhuma diferença. Bodhidharma, que é barbudo, é imberbe porque você não tem barba. A não ser que tenha. Nesse caso você só vai entender esse koan se você raspar sua barba.

Lembro-me que Wittgenstein falou que todos os problemas filosóficos são problemas de linguagem, e o dualismo é o melhor exemplo disso.

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