Análise: onda antiglobalização na Europa reduz chance de aprovação do acordo Mercosul-UE neste ano
Melissa RochaEm entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que apesar do empenho do presidente Lula, a nova rodada de negociações prevista para os dias 5 e 6 deste mês não traz perspectiva de desfecho rápido para o acordo entre blocos, e que o principal entrave é a falta de apetite europeu por novas iniciativas de liberalização comercial.
O governo brasileiro tenta um novo impulso para aprovar ainda neste ano o acordo entre Mercosul e União Europeia (UE). Negociado desde 1999, criaria uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, englobando cerca de 720 milhões de pessoas e 20% da economia mundial.
As negociações do acordo estão travadas desde fevereiro, por oposição da França e por exigências de sustentabilidade impostas pela Comissão Europeia à indústria e à agricultura sul-americanas, entre elas a taxação de produtos brasileiros que gerem CO2.
Em encontro com o presidente italiano, Sergio Mattarella, em agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou o interesse do Brasil em concluir o quanto antes o acordo, afirmou que a taxa de carbono imposta pela UE é unilateral e pode afetar cinco dos dez produtos brasileiros mais exportados para a Itália.
"A redução das emissões de CO2 é um imperativo, mas não deve ser feita com base em medidas unilaterais que vão impactar as vidas dos produtores brasileiros e dos consumidores italianos", disse Lula.
Uma nova rodada de negociações sobre o pacto está prevista para ocorrer entre os dias 5 e 6 de setembro. Apesar de não constar no calendário oficial do Mercosul, a rodada foi confirmada pelo Ministério das Relações Exteriores.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se há possibilidade de o acordo ser aprovado nos próximos meses, como deseja o governo brasileiro.
Para Miriam Gomes Saraiva, professora de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), não há uma mudança significativa no cenário capaz de colocar no horizonte a aprovação do acordo.
"Acho que o presidente Lula fala [sobre o acordo], como é natural que ele fale, e que aqui no Brasil tem muitos setores que estão interessados no acordo. Mas as questões que estavam mais dificultando o acordo continuam vigentes. Pelo lado europeu, o instrumento adicional, a side letter, que amplia a possibilidade de a União Europeia controlar, vigiar e mesmo punir o Brasil por questões relativas ao meio ambiente e que foge do controle dos brasileiros, dos mercosulinos em geral."
A especialista acrescenta que, no lado brasileiro, o governo Lula levantou o que ela aponta como uma "contraexigência", afirmando que uma forma de equilibrar as exigências impostas pela UE seria limitar a possibilidade de as firmas europeias participarem nas compras governamentais.
"Isso é uma coisa bastante complicada para a União Europeia e foi um dos itens que historicamente mais travaram o andamento do acordo, porque era uma exigência que os europeus faziam já de longo prazo. Então não tem nenhuma novidade nesse sentido."
Questionada sobre se um eventual enfraquecimento do presidente francês, Emmanuel Macron, no cenário interno francês e externo poderia destravar as negociações, Miriam explica que foi justamente o enfraquecimento de Macron que o levou a se opor ao acordo.
"Porque ao se enfraquecer, ele não teve como enfrentar forças internas que estavam em oposição ao acordo, que eram as forças mais à direita, ligadas ao campo, particularmente a produção primária, e as forças mais à esquerda ligadas à defesa do meio ambiente. Então não foi a força que fez ele falar aquilo, foi justamente a fraqueza."
Ela afirma que as negociações poderiam avançar no caso de enfraquecimento de Macron em relação aos outros governos da UE.
"Ou seja, que vendo Macron encurralado, os outros governos interessados no acordo, sobretudo a Espanha e a Alemanha, […] aumentem a sua pressão sobre a França. Mas internamente ele tem hoje menos condições ainda para negociar o acordo do que ele tinha no começo do ano", afirma.
Movimentos antiglobalização na Europa dificultam aprovação do acordo
Christian Brandão, doutorando em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que além das novas regras europeias impostas aos países do Mercosul, "a União Europeia está demonstrando um baixo apetite por novas iniciativas de liberalização comercial".
"Isso fica evidente pela criação do Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira, que funciona como um imposto de importação baseado nas emissões de carbono não taxadas no país de origem, e pelas novas tarifas de importação sobre carros elétricos chineses, recentemente anunciadas pelo bloco."
Ele acrescenta que a influência de Macron não tem impacto significativo no acordo, uma vez que "a oposição do presidente francês reflete mais uma tentativa de apaziguar os movimentos antiglobalização em seu país do que uma posição ideológica pessoal".
"Esse fenômeno é relevante porque vários outros países europeus também estão enfrentando o crescimento desses movimentos. Esse padrão é evidente nos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu, onde os partidos de extrema-direita, que advogam por uma menor integração na União Europeia, ganharam apoio significativo."
Brandão destaca que os agricultores europeus têm protestado vigorosamente contra as políticas ambientais da UE e contra o acordo do bloco com o Mercosul.
"A mobilização desses agricultores, que incluiu bloqueios de estradas com tratores, levou tanto o governo francês quanto a União Europeia a fazer concessões. A França anunciou 160 milhões de euros [cerca de R$ 1 bilhão] em subsídios para o setor agrícola, enquanto a UE concordou em restringir as importações de grãos ucranianos sem tarifas. Esse alinhamento de forças contra o acordo Mercosul-UE representa um desafio considerável", afirma.
Apoio de Alemanha e Espanha pode acelerar a conclusão do acordo?
Atualmente, duas importantes economias europeias se posicionam a favor do acordo Mercosul-UE: Espanha e Alemanha. Questionada sobre se o apoio dos dois países poderia contribuir para a conclusão do pacto, Miriam diz que "certamente esse acordo segue sendo negociado, não foi interrompido, porque esses dois países estão insistindo muito".
"São os países que de fato têm políticas externas mais próximas para a América Latina, por diferentes formas […]. […] o que a gente não sabe, claro, é se esses dois países [apoiando] são suficientes [para a aprovação do acordo]. Porque precisam de uma maioria para aprovar, e a maioria da União Europeia não é simples. E, ademais, depois precisa que todos os parlamentos nacionais e europeus aprovem também. Também não adianta assinar o acordo e depois os parlamentos não assinarem. Tem que ir checando a posição de cada um."
Outro obstáculo apontado pela especialista é que as exigências de sustentabilidade impostas pela UE causam temor no setor do agronegócio brasileiro, que agora passou a ter certo receio em relação ao acordo entre os blocos. Nesse contexto, ela afirma que o ponto mais nevrálgico é o prazo demasiado curto dado para a adaptação do setor às exigências europeias.
"A União Europeia está dando um prazo muito pequeno — a priori seria o ano que vem —, que ninguém consegue, nem que queira. Porque tem que ter uma capacidade, por exemplo, de checar, de fazer toda a correia [checagem] do gado, desde lá do princípio; no caso da agricultura, se em algum momento aquela terra foi desmatada. E os latino-americanos, por ora, e o Brasil também, não têm ainda tecnologia organizada, conhecimento organizado, para fazer essa checagem. Então fica muito na mão da União Europeia."
Diante disso, ela considera improvável a conclusão do acordo da maneira que está agora, a não ser que os europeus tenham "um pouco mais de juízo" e concedam mais tempo aos produtores do bloco para que desenvolvam a tecnologia necessária para atender às exigências de forma que possam "controlar toda a trajetória da terra e não ficar nas mãos do que dirão os europeus".
Brandão, por sua vez, concorda que o apoio de Espanha e Alemanha tem um peso valioso para o Brasil, mas o considera insuficiente. Segundo ele, a coalizão que governa a Alemanha enfrenta uma situação delicada e pode desmoronar a qualquer momento.
"O avanço do AfD, de extrema-direita, e do BSW, de extrema-esquerda, nas últimas eleições regionais da Alemanha, apesar de suas diferenças ideológicas, reflete um forte nacionalismo e uma oposição comum ao liberalismo comercial. Mesmo que o governo alemão estivesse em uma posição mais estável, a influência que a Alemanha e a Espanha poderiam exercer sobre outros países europeus é limitada quando se trata de questões que têm um impacto tão significativo no cenário político nacional."
Ele argumenta que na Europa "as prioridades dos governos frequentemente giram em torno das eleições nacionais e da manutenção do poder".
"Em resumo, para que mais países passem a apoiar o acordo, é necessário que os líderes nacionais percebam que o acordo trará mais benefícios eleitorais do que prejuízos. Isso exigirá uma mudança substancial no cenário político europeu atual."
Diante desses fatores, Brandão diz não acreditar que a negociação entre os blocos chegue a um consenso neste momento.
"Para que o acordo seja aprovado no cenário atual, seria necessário que os países do Mercosul fizessem concessões significativas e que os governos europeus decidissem enfrentar os agricultores e nacionalistas. Vale lembrar que, para aceitar as novas exigências de sustentabilidade, o presidente Lula também teria que lidar com a oposição dos grupos agropecuários no Parlamento brasileiro."
A opinião é compartilhada por Estevão Chaves de Rezende Martins, professor do Instituto de Relações Internacionais (Irel) da Universidade de Brasília (UnB). Ele afirma que "a rodada de negociações que se reabre agora repõe a máquina em movimento, mas não há perspectiva de desfecho rápido".
"A França vai continuar a se opor, pois a agropecuária francesa é influente e nenhum outro político cederá às condições que a França exige. Não vejo razões de otimismo. Alemanha e Espanha não bastarão para formar a decisão final", afirma o especialista.