'A máscara caiu': Ocidente escancara protecionismo econômico para combater China, diz analista
Ana Livia EstevesCanadá segue EUA e impõe tarifas de até 100% contra veículos elétricos produzidos na China. Ao adotar o protecionismo econômico para conter o crescimento chinês, Ocidente revela falácia de seu discurso em favor do livre comércio, acredita analista ouvido pela Sputnik Brasil.
Nesta semana, o Canadá anunciou a imposição de tarifas de até 100% contra veículos elétricos produzidos na China, além de tarifas de 25% nas importações de alumínio. A medida foi classificada por Pequim de "protecionismo clássico" e abre mais um front na guerra comercial declarada pelo Ocidente contra o país asiático.
A medida canadense espelha a de seus vizinhos e aliados EUA, que quadruplicaram as tarifas impostas contra veículos elétricos chineses em maio deste ano, também atingindo a marca dos 100%. Os EUA ainda restringiram as importações de semicondutores, componentes para painéis de energia solar, baterias de lítio-íon e demais bens considerados estratégicos.
O Ministério do Comércio da China reagiu ao anúncio canadense, declarando que a medida vai contra as regras internacionais de comércio e afeta a "estabilidade das cadeias de suprimentos globais", conforme reportou a Reuters.
"O lado canadense afirma apoiar o livre comércio e o sistema de comércio multilateral com base nas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), mas viola flagrantemente as regras desta organização, segue cegamente determinados países e anuncia que adotará medidas tarifárias unilaterais, o que é protecionismo comercial típico", disse o porta-voz do ministério chinês.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jian, se uniu ao coro, declarando que a competitividade dos veículos elétricos chineses é fruto de "de inovação tecnológica persistente, cadeias industriais e de suprimentos bem estabelecidas e adesão total à concorrência de mercado".
"Os subsídios não geram competitividade industrial, enquanto o protecionismo protege apenas o atraso. O desenvolvimento futuro será sacrificado", disse o porta-voz da chancelaria chinesa.
Uma das empresas que será mais afetada no curto prazo pelas tarifas canadenses é a norte-americana Tesla, que exportou mais de 35 mil unidades de veículos elétricos produzidos em Xangai para o Canadá em 2023, de acordo com o portal Automative News.
Nesta quinta-feira (29), a Tesla solicitou ao governo canadense que reconsidere as tarifas impostas, reportou a Reuters. As tarifas impostas contra a China pela União Europeia, por exemplo, garantem tratamento especial a ocidental Tesla. Enquanto empresas chinesas são alvo de tarifas que variam entre 17 e 36%, a Tesla arca com somente 9%, cenário que poderá se repetir no caso canadense.
Outras líderes chinesas de mercado, como a BYD, ainda não exportam quantidades significativas para o Canadá. Atualmente, os veículos elétricos chineses têm como principais mercados países do Sul Global, particularmente na região do Sudeste Asiático.
Adeus ao liberalismo comercial?
A decisão canadense reflete a tendência de recrudescimento das relações geopolíticas globais, que refletem nos fluxos comerciais, acredita o professor de economia do Mackenzie, Milton Pignatari. Para o especialista, a atual proliferação de conflitos internacionais leva a uma cisão entre lados beligerantes opostos, que exercem sua rivalidade também na esfera comercial.
"No exemplo do Canadá, por questões políticas, geográficas e ideológicas, certamente é muito melhor manter um bom relacionamento com os EUA [do que com a China]", disse Pignatari à Sputnik Brasil. "Isso nos leva a acreditar que no atual momento econômico, existe sim uma alteração nos processos de liberalização comercial em curso, não em grande escala, mas sinalizando algumas tendências que podem vir a se confirmar futuramente, principalmente com o eventual desfecho dos conflitos."
A reemergência do protecionismo global e a consolidação das guerras comerciais poderão levar a uma estagnação da produção de riqueza e gerar uma crise econômica internacional, alerta o economista.
"Seguindo de maneira didática as regras de mercado, se tivermos menos oferta do que procura, certamente haverá um aumento dos preços. Com aumento dos preços, os países terão menos reservas, o que compromete a acumulação de riquezas. Isso fará que os investimentos tenham de ser repensados. Ao diminuir investimentos, sempre existe uma forte tendência a ocorrer uma diminuição da produtividade", explicou Pignatari.
O esforço de países ocidentais desenvolvidos em frear o crescimento chinês através da imposição de tarifas também poderá ter efeitos nocivos em suas próprias economias, diminuindo o acesso não só a bens industriais essenciais, mas também produtos alimentícios como arroz e milho. "Ou seja, frear o crescimento chinês poderia refletir em frear também outras diversas economias", acredita Pignata.
Por outro lado, a China se prepara para o impacto das medidas ocidentais e já desvia suas exportações para mercados do Sul Global, menos propensos a adotar tarifas comerciais de cunho geopolítico, disse o mestre em história pela USP, residente em Pequim e especialista em assuntos relacionados a China, Marco Fernandes.
"Desde o final de 2022, a China passou a exportar mais para os países do Sul Global do que para países desenvolvidos, o que é, na minha opinião, mais um movimento tectônico da economia global", disse Fernandes à Sputnik Brasil. "Essa tendência se consolidou em 2023 e se encontra em plena aceleração, o que muda completamente o jogo."
A capacidade ocidental de frear o crescimento econômico da China através da imposição de tarifas comerciais também esbarra na pujança do mercado doméstico chinês, capaz de manter a demanda por produtos industriais produzidos internamente.
"A China tem outra carta na manga, que é o seu mercado interno. Podemos considerar que o país atualmente conta com uma classe média de cerca de 400 milhões de pessoas. O objetivo do governo é expandir esse número para 700 milhões em 2035, isto é, praticamente dobrar a capacidade", revelou Fernandes.
Segundo ele, essa estratégia econômica chinesa é denominada "circulação dual" e implica a diminuição da dependência de exportações para apostar no crescimento do consumo doméstico. "A China já previa problemas de ordem geopolítica e formulou esse conceito, que atende a demandas internas pelo aumento da prosperidade", diz o analista.
Por outro lado, o analista nota que o protecionismo dos países desenvolvidos não é uma novidade e sempre foi acionado para proteger setores econômicos menos competitivos de EUA e Europa, como o setor agrícola.
"O Brasil é alvo de protecionismo europeu a décadas, basta atentarmos para as negociações do acordo Mercosul-União Europeia, que nunca foi concluído", lembrou Fernandes. "O discurso liberal do livre comércio capitaneado pelos países desenvolvidos, enquanto mantinham a hegemonia absoluta do mercado mundial, era hipócrita e voltado para convencer as classes dominantes do Sul Global a abrirem seus mercados internos. Agora vemos que a máscara caiu."
A liberalização dos mercados do Sul Global levou a processos deletérios, como a desindustrialização de países-chave como África do Sul e Brasil, "que era uma potência industrial décadas atrás, e hoje se resume a ser uma grande fazenda ou uma grande mina". Neste novo momento geopolítico, o Brasil também poderá se reposicionar e fazer novas escolhas para reforçar o seu parque industrial doméstico, concluiu o analista.