A Geopolítica das Eleições Americanas

A Geopolítica das Eleições Americanas

Alexander Dugin | Geopolitica.RU

Já não se trata mais apenas de uma campanha eleitoral vitoriosa — esta é a primeira fase de uma guerra civil em plena iminência.

Um consenso centenário entre as elites americanas

A própria expressão “geopolítica das eleições americanas” soa bastante inusitada e surpreendente. Desde a década de 30 do século XX, o confronto entre dois principais partidos americanos — os republicanos “vermelhos” (Great Old Party — GOP) e os democratas “azuis” — tornou-se uma competição baseada no acordo com os princípios básicos da política, da ideologia e da geopolítica reconhecidos por ambas as partes. A elite política dos EUA baseava-se num consenso profundo e integral: em primeiro lugar, na devoção ao capitalismo, ao liberalismo e à afirmação dos EUA como a principal potência do mundo ocidental. Quer estivéssemos lidando com “republicanos”, quer com “democratas”, era possível ter a plena certeza de que a visão sobre a ordem mundial de ambos era praticamente idêntica:

• globalista;

• liberal;

• unipolar;

• atlanticista e;

• americocêntrica.

Esta unidade teve a sua expressão institucional no Conselho de Relações Exteriores — CFR (Council on Foreign Relations), criado durante a sanção do Acordo de Versalhes, como consequência da Primeira Guerra Mundial, e que reuniu representantes de ambas as partes. O papel do CFR esteve sob constante crescimento, e, após a Segunda Guerra Mundial, o órgão tornou-se a sede principal do globalismo em ascensão. Durante as primeiras fases da Guerra Fria, o CFR permitiu que os sistemas convergissem com a URSS com base em valores comuns do Iluminismo. Porém, devido ao acentuado enfraquecimento do campo socialista e à traição de Gorbatchóv, a “convergência” tornou-se desnecessária, e a construção da paz global ficou nas mãos de um único pólo: aquele que ganhou a Guerra Fria.

O início dos anos 90 do século XX tornou-se um minuto de glória dos globalistas e do próprio CFR. A partir daquele momento, o consenso das elites americanas, independentemente da filiação partidária, tornou-se ainda mais forte, e as políticas de Bill Clinton, George W. Bush, ou Barack Obama — pelo menos nas principais questões de política externa e de devoção à agenda globalista — eram praticamente as mesmas. Da parte dos republicanos — o análogo “direitista” dos globalistas (estes representados principalmente pelos democratas) —, foram os neoconservadores que expulsaram os paleoconservadores dos anos 80, isto é, aqueles republicanos que seguiam a tradição isolacionista e que se mantinham fiéis aos valores conservadores, característicos do Partido Republicano no início do século XX e dos primórdios da história americana.

Sim, democratas e republicanos divergiam em matéria de política fiscal, medicina e seguros (aqui os democratas estavam economicamente à esquerda e os republicanos, à direita), entretanto, tratava-se de uma disputa dentro do contexto do mesmo modelo, que exercia pouca ou nenhuma influência sobre os principais vetores da política interna, e muito menos sobre os da política externa. Em outras palavras, as eleições americanas não possuíam qualquer relevância geopolítica, e, portanto, uma combinação de palavras como “geopolítica das eleições americanas” não era utilizada devido à sua ausência de sentido e de utilidade.

Trump destrói o consenso

Tudo mudou em 2016, quando o atual Presidente dos EUA, Donald Trump, inesperadamente chegou ao poder. Na própria América, a sua chegada tornou-se algo completamente excepcional. Todo o programa eleitoral de Trump baseava-se em críticas ao globalismo e às elites governantes americanas. Em outras palavras, Trump desafiou diretamente o consenso bipartidário, incluindo a ala neoconservadora do seu partido republicano, e... ganhou. Claro que os 4 anos de presidência de Trump mostraram que era simplesmente impossível reestruturar completamente a política americana de uma forma tão inesperada, e Trump teve de fazer muitas concessões, incluindo a nomeação do neoconservador John Bolton como seu Conselheiro de Segurança Nacional. No entanto, contra todas as adversidades, ele tentou, pelo menos em parte, seguir a sua linha, o que enfureceu os globalistas. Sendo assim, Trump alterou dramaticamente a própria estrutura das relações entre os dois maiores partidos americanos. Sob o seu comando, os republicanos voltaram parcialmente à posição nacionalista americana inerente ao GOP dos tempos mais remotos — daí os slogans da “America first!” ou “Let’s make America great again!” Isto provocou a radicalização dos democratas, que, a começar pelo confronto entre Trump e Hillary Clinton, declararam uma verdadeira guerra a Trump e todos aqueles que o apoiaram em um nível político, ideológico, mediático, econômico, etc.

No decorrer de 4 anos, esta guerra não cessou por um único instante, e hoje — às vésperas das novas eleições — alcançou o seu apogeu. Tudo isso se manifestou:

• na desestabilização generalizada do sistema social;

• no levante de elementos extremistas nas principais cidades dos EUA (com um apoio quase que deliberado às forças anti-Trump do Partido Democrata);

• na demonização direta de Trump e dos seus apoiadores, que, caso Biden venha a ganhar, serão ameaçados com um verdadeiro ostracismo, independentemente do cargo que ocupem;

• na acusação de Trump e de todos os patriotas e nacionalistas americanos de fascismo;

• nas tentativas de apresentar Trump como um agente de forças externas — principalmente de Vladimir Putin —, etc.

O amargo confronto interpartidário no qual alguns dos próprios republicanos, principalmente neoconservadores (como Bill Cristol, o principal ideólogo dos neoconservadores) se opuseram a Trump, provocou uma acentuada polarização da sociedade americana como um todo. E hoje, no outono de 2020, tendo como plano de fundo a vigente epidemia do COVID-19 e as suas consequências sociais e econômicas associadas, a corrida eleitoral representa algo completamente diferente do que tem sido nos últimos 100 anos da história americana — a começar por Versalhes, os 14 Pontos Globalistas de Woodrow Wilson e a criação do CFR.

Anos 90: um minuto de glória para os globalistas 

É claro que não foi Donald Trump quem pessoalmente rompeu o consenso globalista das elites americanas, colocando os Estados Unidos praticamente à beira de uma guerra civil em sua plenitude. Trump tornou-se um sintoma dos profundos processos geopolíticos que vêm ocorrendo desde o início dos anos 2000.

Nos anos 90, o globalismo atingiu o seu auge, o campo soviético se encontrava em ruínas, agentes diretos dos Estados Unidos estavam no poder da liderança da Rússia, e a China estava apenas começando a copiar obedientemente o sistema capitalista, que criou a ilusão do “fim da história” (Francis Fukuyama). Ao mesmo tempo, apenas opusera-se abertamente à globalização as estruturas extraterritoriais do fundamentalismo islâmico, controladas, por sua vez, pela CIA e pelos aliados dos EUA da Arábia Saudita e de outros países do Golfo, e por alguns “estados malfeitores” — como o Irã xiita e a Coreia do Norte ainda comunista, que em si mesmos não representavam o grande perigo. O domínio do globalismo parecia ser total, o liberalismo continuava a ser a única ideologia que subjugava todas as sociedades, e o capitalismo era o único sistema econômico. Antes da proclamação do Governo Mundial (e este é o objetivo dos globalistas e, em particular, a culminação da estratégia do CFR), somente faltava um passo.

Os primeiros sinais da multipolaridade

Mas há algo que tem dado errado desde o início dos anos 2000. Com Putin, a desintegração e o prolongamento da degradação da Rússia cessaram, cujo desaparecimento final da arena mundial foi um pré-requisito para o triunfo dos globalistas. Tendo embarcado no caminho da restauração da soberania, a Rússia percorreu um longo caminho em 20 anos, transformando-se num dos pólos mais importantes da política mundial, claro, ainda muitas vezes inferior ao poder da URSS e do campo socialista, mas já não submissa de forma servil ao Ocidente, como fora nos anos 90.

Em paralelo a isso, a China, munida da liberalização da economia, manteve o poder político nas mãos do Partido Comunista, evitando o destino da URSS, o colapso, o caos, a “democratização” conforme os padrões liberais, e tornando-se gradualmente a maior potência econômica comparável aos Estados Unidos.

Em outras palavras, existiam condições prévias para uma ordem mundial multipolar, que, juntamente com o próprio Ocidente (os Estados Unidos e os países da OTAN), possuía pelo menos dois outros pólos bastante significativos e de peso: a Rússia de Putin e a China. E quanto mais longe, mais claramente surgiu esta imagem alternativa do mundo, na qual, juntamente com o Ocidente liberal globalista, outros tipos de civilizações baseadas nos pólos em crescimento no seu poder — a China comunista e a Rússia conservadora — estavam fazendo ouvir as suas vozes. Elementos do capitalismo e do liberalismo estão presentes tanto lá como lá. Todavia, isto ainda não se trata uma verdadeira alternativa ideológica, uma contra-hegemonia (segundo Gramsci), mas trata-se de algo mais. Sem se tornar multipolar no sentido pleno, nos anos 2000 o mundo deixou de ser inequivocamente unipolar. O globalismo começou a engasgar-se, a perder a sua trajetória. Isto foi acompanhado por uma divisão iminente entre os EUA e a Europa Ocidental. Além disso, o populismo de direita e de esquerda começou a aumentar nos países ocidentais, o que manifestou um crescente descontentamento público com a hegemonia das elites liberalistas globalistas. O mundo islâmico tampouco pôs fim à sua luta pelos valores islâmicos, que, contudo, deixaram de ser estritamente identificados com o fundamentalismo (controlado de uma forma ou de outra pelos globalistas) e começaram a assumir formas geopolíticas mais claras: 

• a ascensão do xiismo no Oriente Médio (Irã, Iraque, Líbano, em parte na Síria); 

• o crescimento da independência — até os conflitos com os Estados Unidos e a OTAN — da Turquia sunita de Erdoğan;

• oscilações dos Estados do Golfo entre o Ocidente e outros centros de poder (Rússia, China), etc.

O momento Trump: a grande reviravolta

As eleições americanas de 2016, que foram vencidas por Donald Trump, foram realizadas precisamente neste contexto — numa altura de grave crise do globalismo e das elites globalistas no poder.

Foi então que, por conta da fachada do consenso liberal, ocorreu o surgimento de uma nova força — aquela parte da sociedade americana que não se queria identificar com as elites globalistas no poder. O apoio de Trump tornou-se um voto de desconfiança na estratégia do globalismo — não só dos democratas, mas também dos republicanos. Assim, a cisão fora encontrado na própria cidadela do mundo unipolar, na sede da globalização. De debaixo do espesso desprezo, eles apareceram: os deploráveis, a maioria silenciosa, a maioria despossuída (V. Robertson). Trump tornou-se um símbolo do despertar do populismo americano.

Assim, a verdadeira política ressurgiu nos Estados Unidos e, novamente, se tratando de disputas ideológicas, da “cultura do cancelamento”, do Black Lives Matter; da qual a destruição de monumentos da história americana tornou-se uma expressão de uma profunda divisão da sociedade americana em suas questões mais fundamentais.

O consenso americano entrou em colapso.

A partir de agora, as elites e as massas, globalistas e patriotas, democratas e republicanos, progressistas e conservadores transformaram-se em pólos de pleno direito e independentes — com as suas estratégias alternativas, programas, pontos de vista, avaliações, sistemas de valores. Trump explodiu a América, rompeu o consenso das elites e descarrilhou a globalização.

É claro que não fez tudo isso sozinho. Porém, de forma ousada — talvez sob alguma influência ideológica do conservador atípico e antiglobalista Steve Bannon (um caso raro de um intelectual americano familiarizado com o conservadorismo europeu, e até mesmo com o tradicionalismo de Guénon e Evola) —, ele foi além do discurso liberal dominante, abrindo assim a mais nova página da história política americana. Nesta página, desta vez, estamos lendo claramente a fórmula “geopolítica das eleições americanas”. 

Eleições americanas de 2020: tudo está em jogo

A depender do resultado das eleições de novembro de 2020, o que virá a ser determinado será o seguinte:

• a arquitetura da ordem mundial (a transição para o nacionalismo e multipolaridade real, no caso de Trump; a continuação da agonia da globalização, no caso de Biden);

• estratégia geopolítica global dos EUA (“America first”, no caso de Trump; um desesperado impulso rumo ao Governo Mundial, no caso de Biden);

• o destino da OTAN (a sua dissolução em prol de uma estrutura que reflita mais estritamente os interesses nacionais dos Estados Unidos — desta vez enquanto Estado, e não como baluarte da globalização como um todo, no caso de Trump; ou a preservação do bloco atlântico como instrumento das elites liberais supranacionais, no caso de Biden);

• a ideologia dominante (conservadorismo de direita, nacionalismo americano, no caso de Trump; globalismo liberal de esquerda, a eliminação definitiva da identidade americana, no caso de Biden);

• polarização dos democratas e dos republicanos (crescimento contínuo da influência dos paleoconservadores no Partido Republicano, no caso do Trump) ou um retorno ao consenso bipartidário (no caso do Biden, com novo crescimento da influência dos neoconservadores no Partido Republicano);

• e até mesmo o destino da Segunda Emenda Constitucional (a sua preservação, no caso do Trump; e a sua possível revogação, no caso do Biden).

Estes são momentos tão importantes que o destino do sistema de saúde, do muro de Trump, e até mesmo as relações com a Rússia, China e Irã se provarão ser coisas de relevância secundária. Os EUA estão tão profunda e fundamentalmente divididos que a questão agora é se o país sobreviverá de alguma forma a estas eleições tão sem precedentes. Desta vez, a luta entre democratas e republicanos, entre Biden e Trump, é uma luta entre duas sociedades agressivamente opostas uma contra a outra, não um espetáculo sem sentido de cujos resultados nada depende fundamentalmente. A América cruzou uma linha fatal. Qualquer que seja o resultado destas eleições, os EUA nunca mais serão os mesmos. Há algo que mudou de maneira irreversível.

É por isto que estamos falando da “geopolítica das eleições americanas”, e é por isto que se trata de algo tão importante. O destino dos Estados Unidos é, em muitos aspectos, o destino de todo o mundo moderno.

O fenômeno “Heartland”

O conceito mais importante da geopolítica desde a época de Halford John Mackinder, o fundador desta disciplina, é o de “Heartland”. Significa o núcleo da “civilização terrestre” (Land Power) em oposição à “civilização do mar” (Sea Power).

Tanto o próprio Mackinder, como especialmente Carl Schmitt, que desenvolveu as ideias do primeiro à luz de uma intuição própria, falam do confronto de dois tipos de civilizações, e não apenas da disposição estratégica das forças num contexto geográfico.

A “Civilização do Mar” encarna a expansão, o comércio, a colonização, mas também o “progresso”, a “tecnologia”, as constantes mudanças na sociedade e nas suas estruturas, refletindo o próprio elemento líquido do oceano — a sociedade líquida de Zygmunt Bauman.

Trata-se de uma civilização sem raízes, móvel, sempre sob movimento, “nomádica”. 

A “Civilização da Terra”, pelo contrário, está ligada ao conservadorismo, à constância, à identidade, à sustentabilidade, à meritocracia e aos valores imutáveis; trata-se de uma cultura com raízes, de caráter sedentário.

Sendo assim, a “Heartland” também adquire um significado civilizacional: não apenas compreende uma área territorial o mais afastada possível das costas e dos espaços marítimos, mas também uma matriz de identidade conservadora, uma área de raízes fortes, uma zona de concentração máxima de identidade.

Ao aplicar a geopolítica à estrutura moderna dos Estados Unidos, obtemos uma imagem extraordinariamente clara. A peculiaridade do território dos EUA é que o país está localizado entre dois espaços oceânicos: entre o Oceano Atlântico e o Oceano Pacífico. Ao contrário da Rússia, nos EUA não há uma mudança tão inequívoca do centro para um dos pólos — muito embora a história dos EUA tenha começado a partir da Costa Leste e tenha se deslocado gradualmente para o Ocidente, hoje em dia, até certa medida, ambas as zonas costeiras encontram-se bastante desenvolvidas e representam dois segmentos de uma notória “Civilização do Mar”.

Os estados e a geopolítica eleitoral

E é aqui que a diversão começa. Se pegarmos o mapa político dos Estados Unidos e o colorirmos nas cores dos dois principais partidos com base no princípio de quais governadores e quais partidos que dominam em cada um deles, obtemos três faixas:

• a Costa Leste será azul, com grandes áreas metropolitanas nelas concentradas e, portanto, dominadas pelos Democratas;

• a parte central dos EUA — fly-over zone, zonas industriais e agrárias (incluindo a “América de um piso”), ou seja, a “Heartland” propriamente dita — é pintada quase que inteiramente de vermelho (zona de influência republicana);

• a Costa Ocidental, novamente dominada pelas megacidades, centros de alta tecnologia e, consequentemente, pela cor azul dos democratas;

Bem-vindos à geopolítica clássica — isto é, à linha de frente da “grande guerra dos continentes”.

Os EUA de 2020 consistem, portanto, não em muitas (incontáveis) mas em exatamente duas zonas civilizacionais: a “Heartland” central e dois territórios costeiros, que representam mais ou menos o mesmo sistema social e político, dramaticamente diferente daquele da “Heartland”. As zonas costeiras são a zona dos democratas. É ali que se encontram os focos de protestos mais ativos do Black Lives Matter, dos LGBT+, do feminismo e do extremismo de esquerda (grupos terroristas “Antifa”), envolvidos na campanha eleitoral dos democratas em prol de Biden e contra Trump.

Antes de Trump, parecia que os EUA constituíam apenas uma zona costeira. Trump deu voz à “Heartland” americana. Assim, o centro vermelho dos Estados Unidos foi ativado e impulsionado à ação. Trump é o presidente desta “segunda América”, que quase não tem representação nas elites políticas e quase nada tem a ver com a agenda dos globalistas. Esta é a América das pequenas cidades, das comunidades e seitas cristãs, das fazendas ou até mesmo dos grandes centros industriais, devastada e destruída pela desalocação da indústria e sua subsequente realocação para áreas com mão-de-obra mais barata. Esta é uma América deserta, leal, esquecida e humilhada. É a pátria dos verdadeiros nativos americanos — americanos com raízes, sejam eles brancos ou não, protestantes ou católicos. E esta “Heartland” da América está desaparecendo rapidamente, sendo comprimida pelas zonas costeiras.

A ideologia da “Heartland” americana: a velha democracia

É notável que os próprios americanos tenham descoberto recentemente esta dimensão geopolítica dos EUA. Neste sentido, é substancial a iniciativa de criar todo um Instituto de Desenvolvimento Econômico, focado em planos de revitalização de microcidades, pequenos povoados e centros industriais localizados no coração dos Estados Unidos. O nome do Instituto fala por si só: “Heartland forward”, “Heartland forward!” Em essência, trata-se de uma interpretação geopolítica e geoeconômica do slogan de Trump “Let’s make America great again!”

Num artigo recente na última edição da revista conservadora American Affairs (Outono de 2020. V IV, № 3), o analista político Joel Kotkin publica o material emblemático “The Heartland’s Revival”, acerca do mesmo tema — “o renascimento da Heartland”. E, embora no sentido pleno da palavra, Kotkin ainda não tenha chegado à conclusão de que os “Estados Vermelhos” representam, de fato, uma civilização diferente das zonas costeiras, ele chega bem perto, a partir da sua posição pragmática e mais econômica.

A parte central dos EUA é uma área muito especial com uma população dominada pelos paradigmas da “antiga América” com a sua “antiga democracia”, seu “antigo individualismo” e sua “antiga” ideia de liberdade. Este sistema de valores nada tem a ver com xenofobia, racismo, segregação, ou quaisquer dos outros termos pejorativos que os intelectuais e jornalistas arrogantes das áreas metropolitanas e dos canais nacionais se utilizam em referência aos americanos comuns. Trata-se da América, com todas as suas características distintivas, apenas a velha e tradicional América, ligeiramente cristalizada na sua vontade original de liberdade individual desde a era dos pais fundadores. Ela é mais claramente representada pela seita Amish, que ainda veste no estilo do século XVIII, ou pelos mórmons do Utah, que professam um culto grotesco porém puramente americano, muito remotamente reminiscente do “cristianismo”. Nesta antiga América, uma pessoa pode ter todo o tipo de crenças, dizer e pensar o que bem quiser. Esta é a raiz do pragmatismo americano — nada pode limitar nem o sujeito nem o objeto, e todas as relações entre eles se revelam apenas através de uma ação ativa. Novamente, tal ação possui um critério: funciona ou não funciona. E isto é tudo. Ninguém pode prescrever a este “antigo liberalismo” o que uma pessoa deva pensar, falar ou escrever. O politicamente correto aqui não faz sentido algum.

É desejável apenas expressar claramente o próprio pensamento, que pode ser, teoricamente, o que se quiser. Esta liberdade de tudo, de qualquer coisa, é a essência do “sonho americano”.

A Segunda Emenda da Constituição: defesa armada da liberdade e da dignidade

A “Heartland” americana possui mais do que apenas economia e sociologia. Ela possui a sua própria ideologia. Trata-se de uma ideologia nativa americana — mais de uma ideologia republicana —, parcialmente antieuropeia (especialmente antibritânica), reconhecendo a igualdade de direitos e a inviolabilidade das liberdades. E este individualismo legislativo se consubstancia no livre direito de possuir e transportar armas. A Segunda Emenda da Constituição é um resumo de toda a ideologia de uma certa América “vermelha” (no sentido da cor do Partido Republicano). “Eu não lanço mão do teu, mas tu também não tocas no meu”. Em resumo, pode se tratar de uma faca, uma pistola, uma arma, mas também de fuzil ou uma metralhadora. Não se trata apenas de coisas materiais, trata-se de crenças, forma de pensar, livre escolha política e autoestima.

Entretanto, as zonas costeiras, os territórios americanos da “Civilização do Mar”, os estados azuis, estão atacando justamente isso. Essa “antiga democracia”, esse “individualismo”, essa “liberdade” nada têm em comum com as normas do politicamente correto, cada vez mais intolerante e agressiva com sua cultura do cancelamento, com a demolição de monumentos de heróis da Guerra Civil ou beijando os pés de afro-americanos, transexuais e aberrações “body positive”. A “Civilização do Mar” enxerga a “antiga América” como um bando de deploráveis (nas palavras de Hillary Clinton), como uma espécie de “fascistoides” e “sub-humanos”. Em Nova Iorque, Seattle, Los Angeles e São Francisco lidamos com uma América diferente: uma América azul de liberais, globalistas, professores pós-modernos, defensores da perversão e do ateísmo prescritivo ofensivo, que afasta de si tudo que se assemelhe à religião, à família, à tradição fora da zona de tolerância.

A grande guerra dos continentes nos EUA: proximidade do fim

Estas duas Américas — a América da Terra e a América do Mar — uniram-se hoje numa luta irreconciliável pelo seu Presidente. Ademais, tanto os democratas como os republicanos, obviamente, não têm a intenção de reconhecer um vencedor se este vier do campo oposto. Biden está convencido de que Trump “já falsificou os resultados eleitorais”, e que o seu “amigo” Putin “já interferiu neles” com a ajuda da GRU, da “novitchók”, dos trolls de Olga e de outros ecossistemas multipolares de “propaganda russa”. Consequentemente, os democratas não têm qualquer intenção de reconhecer a vitória de Trump. Não será para eles uma vitória, mas sim uma fraude.

Quase o mesmo também considera os republicanos mais consistentes. Os democratas se utilizam de métodos ilegais na campanha eleitoral — de fato, uma “revolução colorida” está ocorrendo nos próprios EUA direcionada contra Trump e a sua administração.

E por trás dela, são absolutamente transparentes os vestígios dos seus organizadores, os principais globalistas e opositores de Trump — George Soros, Bill Gates e outros fanáticos da “nova democracia” —, os mais brilhantes e consistentes representantes da “Civilização do Mar” americana. É por isto que os republicanos estão prontos para ir até ao fim, especialmente porque a amargura dos democratas contra Trump e os seus nomeados nos últimos 4 anos é tão grande que se Biden se encontrar na Casa Branca, a repressão política contra parte do establishment americano — pelo menos contra todos os nomeados para Trump — terá uma escala sem precedentes.

É assim que uma barra de chocolate americano se parte diante dos nossos olhos — as linhas demarcadas de uma possível ruptura tornam-se as frentes da própria guerra real.

Já não se trata mais apenas de uma campanha eleitoral vitoriosa — esta é a primeira fase de uma guerra civil em plena iminência.

Nesta guerra, duas Américas se enfrentam — duas ideologias, duas democracias, duas liberdades, duas identidades, dois sistemas de valores mutuamente exclusivos, dois políticos, duas economias e duas geopolíticas.

Se compreendêssemos o quão importante é agora a “geopolítica das eleições americanas”, o mundo seguraria a respiração e não pensaria em mais nada — incluindo a pandemia da COVID-19 ou as guerras, os conflitos e as catástrofes locais. No centro da história mundial, no centro da determinação do destino do futuro da humanidade, está a “geopolítica das eleições americanas” — o cenário americano da “grande guerra dos continentes”, a Terra americana contra o Mar americano.

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