IV

IV

From
IV

Há várias motivações que levam pessoas a praticar a filantropia. Um das delas tem um caráter altruísta: fazer o bem a outrem. Outra apresenta uma dimensão egoísta: amenizar o sofrimento dos pobres para manter funcio-nando o sistema que beneficia quem pratica a doação. Altruísmo e egoísmo são conceitos desenvolvidos por Durkheim (2019). Ele também introduziu a ideia de solidariedade orgânica como o fundamento da sociedade moderna, já que estava preocupado com as bases morais da vida social (Durkheim 2015).


Altruísmo e egoísmo não são excludentes e tampouco constituem as únicas motivações da filantropia. Baseados em nossa pesquisa, gostaríamos de argumentar que a dimensão mais importante da filantropia é a obrigação moral: o filantropo se vê beneficiado por uma sociedade que lhe permitiu enriquecer e por conseguinte sente-se obrigado a retribuir os resultados de seu sucesso, ajudando àqueles que não tiveram a mesma possibilidade. A noção de obrigação moral aparece repetidamente na fala de nossos entre-vistados e na justificativa da filantropia ou da doação de recursos privados para o bem público.


O filósofo australiano Peter Singer, professor da Universidade de Prin-ceton, é um dos fundadores do movimento denominado Altruísmo Eficaz e defensor da obrigação moral em fazer filantropia. Para ele, não há indícios de que o capitalismo desapareça em um horizonte próximo e, portanto, o investimento filantrópico maximizando o bem comum seria uma das únicas formas de contornar seus inúmeros problemas éticos (Singer 1972, 2011, 2017). Na obra de Singer, o que é visto como moralmente condenável não é a desigualdade social, mas a pobreza e o sofrimento. Nessa perspectiva, os filantropos tendem a ser vistos como “os mais fortes” que têm a responsabilidade de zelar pelos “mais fracos”. Para que isso aconteça é preciso que haja a naturalização da importância da retribuição.


Embora a filantropia goste de ser encarada como uma prática moderna e “científica”, há obviamente algo “religioso” nessa perspectiva da obrigação moral. O primeiro elemento é o sentido de ajudar os fracos e assim praticar o bem, mesmo que o discurso seja diferente da caridade. O


segundo é o efeito da ética protestante no espírito capitalista (Weber 1970) que é forte nos Estados Unidos e que vê no trabalho uma forma e enaltecer a obra de Deus, enxergando no sucesso financeiro um sinal da salvação. Portanto, o dinheiro deixa de ser algo que pode ser gasto sem preocupações morais e a doação é uma forma de purificar o dinheiro.


Analisando a Holanda no século XVII, em sua assim chamada Idade de Ouro, Schama mostrou que “a riqueza causava desconforto e que a abastança convivia com a ansiedade”. Para ele,


(..) o credo oficial do calvinismo e do humanismo concordavam em que o lucro era algo sujo e que cultuá-lo constituía uma espécie de idolatria aviltante. Em suas formas extremas de avareza e cupidez, podia perturbar a consciência e a razão e transformar almas livres em escravos bajuladores. Essa forte concepção da natureza repreensível do enriquecimento persistiu mesmo enquanto os ho-landeses acumulavam suas fortunas individuais e coletivas. A estranha consequência dessa disparidade entre princípios e prática foi estimular os gastos de capital a fim de afastar a suspeita de avareza. As formas de tais gastos tinham de ser sancionadas coletivamente e consideradas impecáveis do ponto de vista moral tanto pelos clérigos quanto pelos leigos. Contudo podiam ir dos gastos virtuosos, como a filantropia, a gastos menos altruístas, como emprestar dinheiro a instituições públicas a juros baixos e prazos longos, ou mesmo à necessidade de criar um ambiente doméstico confortável, no qual uma patriótica família cristã pudesse viver (Schama 324, 330-332).


Nessa perspectiva, a filantropia transforma a obtenção de fortunas em algo que implica responsabilidade moral em relação aos menos afortunados.


Mas, é claro que a obrigação de doar não exclui uma competição entre filantropos. Assim, as motivações da filantropia podem também incluir a busca de prestígio e de poder. Isso coloca a questão de saber se a filantropia é algo desinteressado ou se há interesses nessa prática. Ao analisar sociedades contemporâneas, Bourdieu criou a expressão “interesse no desinteresse” e assinalou que as relações sociais ditam comportamentos que correspondem às posições dos atores sociais:


Os universos sociais nos quais o desinteresse é a norma oficial não são, sem dúvida, inteiramente regidos pelo desinteresse: por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados (...) não se vive im-punemente sob a invocação permanente da virtude, já que somos apanhados pelos mecanismos e pelas sanções que existem para relembrar a obrigação do desinteresse (Bourdieu, 2008: 152).


Nesse sentido, fazer grandes doações significa, além de uma obrigação moral, a obtenção de reconhecimento entre os pares e a sociedade como um todo. Witkowski e Bauerkämper (2016: 2), associam a obrigação moral com a busca do reconhecimento social:


Doadores normalmente esperam alguma recompensa pelo seu apoio, como por exemplo reconhecimento, prestígio ou mesmo ganhos financeiros. Especialmente as elites em ascensão normalmente buscam converter o capital econômico em reconhecimento, status e prestígio (“capital social” e “cultural” de acordo com Pierre Bourdieu). Essas interpretações sugerem que doar é devido a motivos altruístas e interesses particulares.


A prática da filantropia coloca os doadores num circuito que cria rela-


ções interpessoais que são importantes no estabelecimento de conexões e redes sociais. De algum modo, não praticar filantropia exclui o magnata do círculo de seus pares. Nesse sentido, Adloff argumenta que os filantropos


“frequentemente se sentem conectados a outras pessoas e suas preocupações ou problemas, considerando a si mesmos como tendo uma ligação e uma obrigação com grupos específicos, ou mesmo estando envolvidos com eles num nível prático por meio de redes formais e informais” (Adloff 2016: 45). Neste artigo, examinamos as premissas que movem os agentes do filantrocapitalismo, baseadas em discursos e lógicas empresariais e visando manter e mesmo ampliar seus lucros via filantropia.


Da mesma forma, ana- lisamos a filantropia que se quer progressista e que desenvolve uma visão mais protagônica de movimentos sociais, propondo-se a fazer filantropia a partir de uma perspectiva de justiça social. Os discursos e as lógicas nas quais operam o filantrocapitalismo e a filantropia para a justiça social são bastante distintos. A premissa do desenvolvimento e do papel da elite em promovê-lo aparece como central no ethos filantrocapitalista, ao passo que a filantropia progressista tenta se distanciar dessa perspectiva, focando no papel dos movimentos sociais e na organização dos grupos populares. Em ambas as vertentes são recorrentes os argumentos de que a filantropia visa solucionar questões sociais, mas é complexa e requer expertise e aprendi-zados próprios ao campo.


Os filantrocapitalistas acreditam que o Estado e sua burocracia não conseguem promover de forma eficaz uma ação distributiva e que isso deve ser feito por fundações pensadas pelos ricos e praticado sob forma capitalista, já que o mercado funciona melhor que o Estado. Por sua vez, os adeptos da filantropia pela justiça social pensam que o capitalismo cria desigualdades que o sistema e o Estado não conseguem resolver e a filantropia pode ajudar a corrigir isso nos Estados Unidos e em países em desenvolvimento, a partir do protagonismo de movimentos sociais.


Seria a filantropia uma narrativa inerente ao capitalismo global para atenuar as desigualdades que ele causa ou poderia ela ser efetiva se pensada em termos de redistribuição de renda e poder e de reparação a grupos


e regiões historicamente explorados? A filantropia incorpora o paradoxo de querer equacionar problemas sociais causados muitas vezes por seus próprios doadores. Não são poucas as referências que demonstram que magnatas têm práticas de exploração e corrupção em suas empresas de um lado, e uma fundação filantrópica para servir à comunidade de outro. No entanto, existem também fundos que estão sendo geridos pelas comunidades de base e, como Odendahl (1990: 189) aponta, fundos de mulheres – muitas que herdaram suas fortunas – que constroem narrativas e trajetórias distintas acerca da redistribuição de renda e da desigualdade social.


Um pensamento dualista levaria a ver nos movimentos sociais alternativos a negação do pensamento colonialista e a tentativa de criação de um mundo não capitalista. No entanto, autoras como Gibson-Graham e interlocutores como Peter e Mariana advogam pela complexificação desse pensamento, descentrando as análises do capitalismo para abordar um conjunto de possibilidades dissidentes que atuam na esfera econômica em iniciativas diversas, a fim de poder se imaginar um outro mundo possível.


Independentemente de nos posicionarmos num polo mais negativo ou mais positivo em relação à filantropia, é fato que as regulações e isenções fiscais para a sua prática existem e governos, fundações privadas e o terceiro setor vêm operando de forma interligada com disputas constantes acerca dos focos de investimento e a forma de utilizá-los. A filantropia certamente é uma importante prática social que precisa ser levada em consideração quando pensamos o mundo moderno e as diferentes formas de lidar com suas desigualdades.


A filantropia é uma prática de sociedades complexas, nas quais a desigualdade e a pobreza constituem uma preocupação moral de elites. Ela movimenta grandes somas de dinheiro e cria um mercado de doações através do qual várias organizações, mesmo as que criticam a sociedade capitalista, disputam recursos. Essas organizações desenvolvem diferentes perspectivas e estratégias a respeito de como atuar. Apesar de envolver a doação de vastas somas de dinheiro, a filantropia não é uma dádiva semelhante àquela presente em sociedades arcaicas, como as analisadas por Mauss no célebre ensaio em que ele examinou o potlatch como um sistema de prestações totais. As sociedades complexas têm outra escala, estão divididas em classes sociais e são marcadas pelas desigualdades, apesar de frequentemente professarem um ideário de que todos os cidadãos são iguais. Por isso, a filantropia pro- cura responder a uma questão moral que tem a ver com o fato de a riqueza de uns contrasta com a pobreza de outros. A filantropia é simultaneamente um mercado, uma obrigação moral, uma forma de interesse e uma maneira de os membros de elites estabelecerem redes entre eles.


Recebido em: 22 de novembro de 2019


Aprovado em: 03 de fevereiro de 2020


Patricia Kunrath Silva


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é professora da Escola Superior de Marketing e Propaganda em Porto Alegre. É membro do Núcleo de Pesquisas sobre Culturas Contemporâneas da UFRGS, do Grupo de Estudos em Antropologia da Economia e da Política da UFRGS e do Grupo de Estudos de Empresas e Organizações da PUCRS. Entre seus interesses de pesquisa estão: desigualdade e justiça social, cidadania, governança, elites, filantropia, feminismos, mercados e consumo.


Filiação Institucional: Escola Superior de Marketing e Propaganda, Porto Alegre.


https://orcid.org/0000-0002-4821-5508


E-mail: p


atrícia.k u


nrath@gmail.com


Ruben George Oliven


Doutor pela Universidade de Londres, é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Foi professor visitante em várias universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de Londres, a Universidade de Paris, a Universidade de Leiden e a Universidade da Califórnia, Berkeley. Entre suas publicações está A Parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil-nação, livro agraciado com o Prêmio Melhor Obra Científica de Ciências Sociais do Ano e traduzido para o inglês e o espanhol. Recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes por sua contribuição ao estudo da Cultura Brasileira e o Prêmio ANPOCS de Excelência Acadêmica Gilberto Velho em Antropologia. Em 2018 foi agra- ciado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico.


Filiação institucional: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS


https://orcid.org/0000-0003-3556-6955 E-


mail: r u


ben.oliven@gmail.com



|


Page 2

Page 6 Notas

1


A pesquisa que deu origem a este artigo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.


2


Acessível em: https://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/bil -gates-faz-


-maior-doacao-de-sua-fortuna-desde-2000.ghtml 3


Luciano Andolini. “Bil Gates e 40 bilionários tentam mudar o mundo”. Papo de Homem. Trabalho e negócios, Mundo. Acessível em https://papodehomem.com.br/ bil -


gates-e-40-bilionarios-tentam-mudar-o-mundo/


4


Para ver as concessões tributárias norte-americanas acessar w ww.irs.gov/charities-non-profits/charitable-organizations/charitable-contribution-deductions Acessado em 16 de dezembro de 2017.


5


Ver https://www.al iancemagazine.org/feature/philanthrocapitalism-goes-global/


6


Ver http://www.worldaffairs.org/


7


Ver h


ttps://www.philanthropyfor u


m.org/


8


Os nomes das pessoas entrevistadas nesta pesquisa foram mudados para preservar sua privacidade.


9


Advocacy é um termo que designa iniciativas que se envolvem com a defesa de causas ou de propostas de interesse público. As ações de advocacy procuram inter- vir na elaboração de políticas públicas, influenciando, por exemplo, os responsáveis por tomadas de decisões e elaboração de leis.


10 Essas duas autoras compartilham o nome autoral singular Graham-Gibson.


11 Disponível em https://edgefunders.org/about-us/


12 De acordo com Zirbel (2016): “A Ética do Cuidado pode ser dividida em duas fases ou gerações de pensadoras. A primeira delas foi dedicada a descrever os dispositivos e atitudes do cuidado associando-os a certas emoções e virtudes, buscan- do demonstrar os limites de uma visão racionalista para questões morais, de justiça e direitos. A segunda geração tem enfatizado a vulnerabilidade e as necessidades humanas como aspectos relevantes para a moralidade e a política. Em comum, ambas as gerações defendem o cuidado como uma responsabilidade individual e coletiva e um bem público”. Ver também Cordero Velásquez e Ilyas.


Disponível em: h


ttps:// w


ww.opendemocracy.net/openglobalrights/meerim-ilyas-tatiana-c ordero-vel-squez/ e


l-cuidado-colectivo-en-la-financiaci-n-de-l



|

Report Page