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Acerca do fundo no qual atua, Mariana explicou financiarem defensores dos direitos humanos das mulheres “para que tenham liderança nas ações que querem tomar para transformar situações de opressão, exploração ou discriminação”:


Nós somos um fundo feminista. Sim, há muitos tipos diferentes de feminismo, mas nosso feminismo é progressista, não liberal. Não queremos apenas mudanças na legislação, nós queremos mudanças estruturais...


Então lidamos com as múltiplas questões que tem a ver com as identidades das mulheres, suas sexualidades, idades, capacidades e deficiências... Ser uma mulher é uma coisa, ser uma mulher negra que é pobre ou marginalizada é totalmente diferente e se você tem uma orientação sexual que é diferente da matriz heterossexual também é completamente diferente, então todos esses elementos jogam quando se trata de transformar a situação das mulheres e dos movimentos sociais em geral... Feminismo para mim não é apenas uma teoria, é também uma prática, uma ética, implica cuidado. nós não rece-bemos dinheiro de quem explora aquelas que defendemos. Não aceitamos dinheiro de corporações, por exemplo.


Mariana indicou então a centralidade de uma ética do cuidado12 que perpassa seu trabalho prático e acadêmico. O foco de ação dessa rede de financiadores que busca colocar a justiça de gênero e direito das mulheres em uma perspectiva interseccional dentro da pauta da filantropia e de diversos movimentos sociais está alinhado com as elaborações da teoria engajada de Gibson-Graham que aposta na diversidade e nas iniciativas de âmbito local, conectadas em rede, para alcançar potencialmente mudanças sistêmicas.


Mariana explica:


Eu acho que precisamos aprender que essa questão do mundo ocidental é abso- lutamente crítica. Eu acho que a América Latina está sendo ensinada e lembrada por descendentes afro e por povos indígenas que existem outras formas de viver, que existem outras formas de entender a vida e formas de bem viver com seres humanos e outros seres que são outras formas de vida. Por outro lado, estamos sendo ensinados pelos movimentos que uma política de identidade não é o que vai mudar o mundo; por exemplo, no Chile mulheres lésbicas estão apoiando a luta do povo Mapuche. Então elas não precisam imputar o ser lésbica para lutar por uma causa, elas estão apoiando a causa de outros, de mulheres indígenas e é uma forma de relação muito única, uma rede e dificuldades comuns. eu


acho que um entendimento complexo da realidade, uma abordagem mais di-nâmica e não-ocidental são necessários, porque não é somente o capitalismo, é o entendimento ocidental do norte, a mente racional linear que realmente orientou paradigmas de desenvolvimento e direitos humanos e isto está sendo questionado e já não é mais sustentável, o que eu acho ótimo, mas nós precisamos sacudir as estruturas não apenas dos sistemas econômicos mas também dos sistemas de pensamento, como as pessoas pensam, nós precisamos questionar isso, nós precisamos questionar a filantropia, as relações de poder entre norte e sul mesmo que sejam progressistas.


Lembrando os dados apontados por Gibson-Graham de que a atividade não-remunerada dos trabalhos considerados “femininos” como o cuidado, o trabalho doméstico e o trabalho emocional seriam responsáveis por metade da economia mundial, Mariana destacou que não há sentido em fazer qualquer forma de filantropia visando acabar com a pobreza e encarar a desigualdade social sem que se coloque a questão interseccional da justiça de gênero como seu fio condutor:


Eu acho que é mais do que isso. Não é apenas deslocar o poder dos homens para as mulheres. Eu acho que é importante ter práticas mais democráticas entre homens e mulheres em geral, embora eu saiba que “democracia” é um termo que também está sendo questionado… Eu acho que é sobre justiça… em termos de mudanças nós, humanos, homens e mulheres de qualquer orientação sexual ou identidade de gênero ou raça precisamos pensar sobre como nos relacionamos com o meio ambiente e todos os outros viventes…. Qualquer nova sociedade não pode ser construída se não agirmos em relação ao racismo histórico, estrutural, se não agirmos contra a perversidade de impor uma matriz heteronormativa e também contra a desigualdade econômica entre seres humanos. Por exemplo, na matriz da transição justa, a espiritualidade foi um item colocado, trazida por alguns de nós, por fundos que trabalham com indígenas, mas acho que também tem vindo de outros movimentos… eu acho que na América Latina para povos indígenas e para pessoas de ascendência africana a espiritualidade está no centro das mudanças e isso pode não ser entendido no Ocidente. Vemos Beta Cáceres [líder indígena de Honduras assassinada em 2016 e homenageada pela rede no seu congresso do mesmo ano] dizendo “eu estou aqui para lembrar a humanidade, por favor, parem. Eu estou defendendo o rio Gualcarque que é o espírito das mulheres e as guardiãs desse rio são as meninas na cultura Lenca”. Então eu acho que isso precisa ser repensado e o feminismo tem potencial para isto. Não se trata apenas o capitalismo, mas do patriarcado, da abordagem oci- dental à vida. Você precisa ver o trabalho desde uma perspectiva descolonial, porque é disso que eu estou falando….


A partir da fala de Jennifer, Karen, Peter e Mariana podemos perceber a coexistência de duas narrativas no campo filantrópico norte-americano: a da manutenção e aprimoramento de uma ordem social vigente com foco nos negócios, no empreendedorismo e no capitalismo, e a narrativa da transição para uma economia considerada mais justa. Apesar disso, também identificamos similaridades como o intuito de influenciar políticas públicas, a gestão de populações com o estabelecimento de laços sociais, e o protagonismo de atores sociais, sejam eles experts, intelectuais ou líderes de movimentos sociais.



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IV

Há várias motivações que levam pessoas a praticar a filantropia. Um das delas tem um caráter altruísta: fazer o bem a outrem. Outra apresenta uma dimensão egoísta: amenizar o sofrimento dos pobres para manter funcio-nando o sistema que beneficia quem pratica a doação. Altruísmo e egoísmo são conceitos desenvolvidos por Durkheim (2019). Ele também introduziu a ideia de solidariedade orgânica como o fundamento da sociedade moderna, já que estava preocupado com as bases morais da vida social (Durkheim 2015).


Altruísmo e egoísmo não são excludentes e tampouco constituem as únicas motivações da filantropia. Baseados em nossa pesquisa, gostaríamos de argumentar que a dimensão mais importante da filantropia é a obrigação moral: o filantropo se vê beneficiado por uma sociedade que lhe permitiu enriquecer e por conseguinte sente-se obrigado a retribuir os resultados de seu sucesso, ajudando àqueles que não tiveram a mesma possibilidade. A noção de obrigação moral aparece repetidamente na fala de nossos entre-vistados e na justificativa da filantropia ou da doação de recursos privados para o bem público.


O filósofo australiano Peter Singer, professor da Universidade de Prin-ceton, é um dos fundadores do movimento denominado Altruísmo Eficaz e defensor da obrigação moral em fazer filantropia. Para ele, não há indícios de que o capitalismo desapareça em um horizonte próximo e, portanto, o investimento filantrópico maximizando o bem comum seria uma das únicas formas de contornar seus inúmeros problemas éticos (Singer 1972, 2011, 2017). Na obra de Singer, o que é visto como moralmente condenável não é a desigualdade social, mas a pobreza e o sofrimento. Nessa perspectiva, os filantropos tendem a ser vistos como “os mais fortes” que têm a responsabilidade de zelar pelos “mais fracos”. Para que isso aconteça é preciso que haja a naturalização da importância da retribuição.


Embora a filantropia goste de ser encarada como uma prática moderna e “científica”, há obviamente algo “religioso” nessa perspectiva da obrigação moral. O primeiro elemento é o sentido de ajudar os fracos e assim praticar o bem, mesmo que o discurso seja diferente da caridade. O


segundo é o efeito da ética protestante no espírito capitalista (Weber 1970) que é forte nos Estados Unidos e que vê no trabalho uma forma e enaltecer a obra de Deus, enxergando no sucesso financeiro um sinal da salvação. Portanto, o dinheiro deixa de ser algo que pode ser gasto sem preocupações morais e a doação é uma forma de purificar o dinheiro.


Analisando a Holanda no século XVII, em sua assim chamada Idade de Ouro, Schama mostrou que “a riqueza causava desconforto e que a abastança convivia com a ansiedade”. Para ele,


(..) o credo oficial do calvinismo e do humanismo concordavam em que o lucro era algo sujo e que cultuá-lo constituía uma espécie de idolatria aviltante. Em suas formas extremas de avareza e cupidez, podia perturbar a consciência e a razão e transformar almas livres em escravos bajuladores. Essa forte concepção da natureza repreensível do enriquecimento persistiu mesmo enquanto os ho-landeses acumulavam suas fortunas individuais e coletivas. A estranha consequência dessa disparidade entre princípios e prática foi estimular os gastos de capital a fim de afastar a suspeita de avareza. As formas de tais gastos tinham de ser sancionadas coletivamente e consideradas impecáveis do ponto de vista moral tanto pelos clérigos quanto pelos leigos. Contudo podiam ir dos gastos virtuosos, como a filantropia, a gastos menos altruístas, como emprestar dinheiro a instituições públicas a juros baixos e prazos longos, ou mesmo à necessidade de criar um ambiente doméstico confortável, no qual uma patriótica família cristã pudesse viver (Schama 324, 330-332).


Nessa perspectiva, a filantropia transforma a obtenção de fortunas em algo que implica responsabilidade moral em relação aos menos afortunados.


Mas, é claro que a obrigação de doar não exclui uma competição entre filantropos. Assim, as motivações da filantropia podem também incluir a busca de prestígio e de poder. Isso coloca a questão de saber se a filantropia é algo desinteressado ou se há interesses nessa prática. Ao analisar sociedades contemporâneas, Bourdieu criou a expressão “interesse no desinteresse” e assinalou que as relações sociais ditam comportamentos que correspondem às posições dos atores sociais:


Os universos sociais nos quais o desinteresse é a norma oficial não são, sem dúvida, inteiramente regidos pelo desinteresse: por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados (...) não se vive im-punemente sob a invocação permanente da virtude, já que somos apanhados pelos mecanismos e pelas sanções que existem para relembrar a obrigação do desinteresse (Bourdieu, 2008: 152).


Nesse sentido, fazer grandes doações significa, além de uma obrigação moral, a obtenção de reconhecimento entre os pares e a sociedade como um todo. Witkowski e Bauerkämper (2016: 2), associam a obrigação moral com a busca do reconhecimento social:


Doadores normalmente esperam alguma recompensa pelo seu apoio, como por exemplo reconhecimento, prestígio ou mesmo ganhos financeiros. Especialmente as elites em ascensão normalmente buscam converter o capital econômico em reconhecimento, status e prestígio (“capital social” e “cultural” de acordo com Pierre Bourdieu). Essas interpretações sugerem que doar é devido a motivos altruístas e interesses particulares.


A prática da filantropia coloca os doadores num circuito que cria rela-


ções interpessoais que são importantes no estabelecimento de conexões e redes sociais. De algum modo, não praticar filantropia exclui o magnata do círculo de seus pares. Nesse sentido, Adloff argumenta que os filantropos


“frequentemente se sentem conectados a outras pessoas e suas preocupações ou problemas, considerando a si mesmos como tendo uma ligação e uma obrigação com grupos específicos, ou mesmo estando envolvidos com eles num nível prático por meio de redes formais e informais” (Adloff 2016: 45). Neste artigo, examinamos as premissas que movem os agentes do filantrocapitalismo, baseadas em discursos e lógicas empresariais e visando manter e mesmo ampliar seus lucros via filantropia.


Da mesma forma, ana- lisamos a filantropia que se quer progressista e que desenvolve uma visão mais protagônica de movimentos sociais, propondo-se a fazer filantropia a partir de uma perspectiva de justiça social. Os discursos e as lógicas nas quais operam o filantrocapitalismo e a filantropia para a justiça social são bastante distintos. A premissa do desenvolvimento e do papel da elite em promovê-lo aparece como central no ethos filantrocapitalista, ao passo que a filantropia progressista tenta se distanciar dessa perspectiva, focando no papel dos movimentos sociais e na organização dos grupos populares. Em ambas as vertentes são recorrentes os argumentos de que a filantropia visa solucionar questões sociais, mas é complexa e requer expertise e aprendi-zados próprios ao campo.


Os filantrocapitalistas acreditam que o Estado e sua burocracia não conseguem promover de forma eficaz uma ação distributiva e que isso deve ser feito por fundações pensadas pelos ricos e praticado sob forma capitalista, já que o mercado funciona melhor que o Estado. Por sua vez, os adeptos da filantropia pela justiça social pensam que o capitalismo cria desigualdades que o sistema e o Estado não conseguem resolver e a filantropia pode ajudar a corrigir isso nos Estados Unidos e em países em desenvolvimento, a partir do protagonismo de movimentos sociais.


Seria a filantropia uma narrativa inerente ao capitalismo global para atenuar as desigualdades que ele causa ou poderia ela ser efetiva se pensada em termos de redistribuição de renda e poder e de reparação a grupos


e regiões historicamente explorados? A filantropia incorpora o paradoxo de querer equacionar problemas sociais causados muitas vezes por seus próprios doadores. Não são poucas as referências que demonstram que magnatas têm práticas de exploração e corrupção em suas empresas de um lado, e uma fundação filantrópica para servir à comunidade de outro. No entanto, existem também fundos que estão sendo geridos pelas comunidades de base e, como Odendahl (1990: 189) aponta, fundos de mulheres – muitas que herdaram suas fortunas – que constroem narrativas e trajetórias distintas acerca da redistribuição de renda e da desigualdade social.


Um pensamento dualista levaria a ver nos movimentos sociais alternativos a negação do pensamento colonialista e a tentativa de criação de um mundo não capitalista. No entanto, autoras como Gibson-Graham e interlocutores como Peter e Mariana advogam pela complexificação desse pensamento, descentrando as análises do capitalismo para abordar um conjunto de possibilidades dissidentes que atuam na esfera econômica em iniciativas diversas, a fim de poder se imaginar um outro mundo possível.


Independentemente de nos posicionarmos num polo mais negativo ou mais positivo em relação à filantropia, é fato que as regulações e isenções fiscais para a sua prática existem e governos, fundações privadas e o terceiro setor vêm operando de forma interligada com disputas constantes acerca dos focos de investimento e a forma de utilizá-los. A filantropia certamente é uma importante prática social que precisa ser levada em consideração quando pensamos o mundo moderno e as diferentes formas de lidar com suas desigualdades.


A filantropia é uma prática de sociedades complexas, nas quais a desigualdade e a pobreza constituem uma preocupação moral de elites. Ela movimenta grandes somas de dinheiro e cria um mercado de doações através do qual várias organizações, mesmo as que criticam a sociedade capitalista, disputam recursos. Essas organizações desenvolvem diferentes perspectivas e estratégias a respeito de como atuar. Apesar de envolver a doação de vastas somas de dinheiro, a filantropia não é uma dádiva semelhante àquela presente em sociedades arcaicas, como as analisadas por Mauss no célebre ensaio em que ele examinou o potlatch como um sistema de prestações totais. As sociedades complexas têm outra escala, estão divididas em classes sociais e são marcadas pelas desigualdades, apesar de frequentemente professarem um ideário de que todos os cidadãos são iguais. Por isso, a filantropia pro- cura responder a uma questão moral que tem a ver com o fato de a riqueza de uns contrasta com a pobreza de outros. A filantropia é simultaneamente um mercado, uma obrigação moral, uma forma de interesse e uma maneira de os membros de elites estabelecerem redes entre eles.


Recebido em: 22 de novembro de 2019


Aprovado em: 03 de fevereiro de 2020


Patricia Kunrath Silva


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é professora da Escola Superior de Marketing e Propaganda em Porto Alegre. É membro do Núcleo de Pesquisas sobre Culturas Contemporâneas da UFRGS, do Grupo de Estudos em Antropologia da Economia e da Política da UFRGS e do Grupo de Estudos de Empresas e Organizações da PUCRS. Entre seus interesses de pesquisa estão: desigualdade e justiça social, cidadania, governança, elites, filantropia, feminismos, mercados e consumo.


Filiação Institucional: Escola Superior de Marketing e Propaganda, Porto Alegre.


https://orcid.org/0000-0002-4821-5508


E-mail: p


atrícia.k u


nrath@gmail.com


Ruben George Oliven


Doutor pela Universidade de Londres, é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisador 1A do CNPq e membro da Academia Brasileira de Ciências. Foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Foi professor visitante em várias universidades estrangeiras, entre elas a Universidade de Londres, a Universidade de Paris, a Universidade de Leiden e a Universidade da Califórnia, Berkeley. Entre suas publicações está A Parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil-nação, livro agraciado com o Prêmio Melhor Obra Científica de Ciências Sociais do Ano e traduzido para o inglês e o espanhol. Recebeu o Prêmio Érico Vannucci Mendes por sua contribuição ao estudo da Cultura Brasileira e o Prêmio ANPOCS de Excelência Acadêmica Gilberto Velho em Antropologia. Em 2018 foi agra- ciado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico.


Filiação institucional: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS


https://orcid.org/0000-0003-3556-6955 E-


mail: r u


ben.oliven@gmail.com



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