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Memorial do Convento José Saramago

S.Pedro de Roma não tem saído muito das arcas nestes últimos anos. É que, ao contrário do que geralmente acredita o vulgo ignaro, os reis são tal e qual os homens comuns, crescem, amadurecem, variam-se-lhes os gostos com a idade, quando por comprazimento público se não ocultam de propósito, outros por necessidade política se vão às vezes fingindo. Além disso, é da sabedoria das nações e da experiência dos particulares que a repetição traz a saciedade. A basílica de S. Pedro já não tem segredos para D. João V. Poderia armá-la e desarmá-la de olhos fechados, sozinho ou com ajuda, começando pelo norte ou pelo sul, pela colunata ou pela abside, peça por peça ou em partes conjuntas, mas o resultado final é sempre o mesmo, uma construção de madeira, um legos, um meccano, um lugar de fingimento onde nunca serão rezadas missas verdadeiras, embora Deus esteja em todo o lado.

O que vale, ainda assim, é prolongar-se o homem nos filhos que tem, e se é certo que, por despeito de velho ou vizinhança desse estado, nem sempre estima ver continuados actos seus que tenham sido pedra de escândalo ou argueiro por de mais visível, igualmente sucede deleitar-se o homem quando persuade os filhos a repetirem alguns gestos seus, alguns passos de vida, palavras até, assim em aparência recuperando novo fundamento o que ele próprio foi e fez. Os filhos, claro está, fingem. Por outros dizeres, oxalá mais claros, não sentindo D. João V já gosto que valha o trabalho de armar a basílica de S. Pedro, ainda encontrou modo indirecto de o reaver, no mesmo movimento provando o seu amor paternal e real, ao chamar a virem auxiliá-lo seus filhos D. José e D. Maria Bárbara. De ambos se falou já, de ambos se tornará a falar, agora dela ficando apenas dito que, coitada, a desfiguraram muito as bexigas, mas têm as princesas tanta sorte que não perdem casamento por serem bexigosas e feias, assim convenha à coroa do senhor seu pai. Claro que nisto de armar S. Pedro de Roma não fazem os infantes muita força. Se D. João V tinha camaristas que o ajudavam a levantar e assentar acúpula de Miguel Ãngelo, a propósito se recordando como profeticamente ressoou a grande arquitectura na noite em que o rei foi ao quarto da rainha, maior ajuda necessitam as fracas crianças, ela de dezassete anos, ele de catorze. Porém, aqui, o que conta é o espectáculo, está meia corte reunida para assistir ao brinquedo dos infantes, suas majestades sentadas debaixo do dossel, os frades segredando satisfações conventuais, os fidalgos compondo a expressão para que ela exprima, ao mesmo tempo, o respeito devido a príncipes, o enternecimento pela pouca idade que é a sua, a devoção pelo santo lugar que em cópia ali se mostra, tudo isto numa cara só, e tudo isto concordando, não é para admirar que pareçam estar sofrendo duma dor oculta e talvez imprópria. Quando D. Maria Bárbara leva por suas próprias mãos uma das estatuazinhas que ornamentam a cimalha, a corte aplaude. Quando por suas mãos próprias colocar D. José a cruz cimeira do zimbório, pouco falta para que se ajoelhem todos quantos estão, que este infante é que é o herdeiro. Suas majestades sorriem, depois D. João V chama os filhos, louva-os pela habilidade e deita-lhes a bênção, que eles recebem de joelhos. O mundo está de uma tal harmonia, que parece, ao menos nesta sala, reflexo desse espelho de perfeição que é o céu. Cada gesto aqui feito é nobre, porventura divino na sua gravidade e pausa, e as palavras dizemse como partes duma frase que não tem pressa de acabar nem motivo para acabar-se. Assim falam e procedem os moradores das habitações celestes quando saem às diamantinas ruas, quando os recebe em audiência o pai dos universos no seu palácio dourado, quando em corte reunidos assistem ao brinquedo do filho, que faz, desfaz e torna a fazer uma cruz de pau.

Deu D. João V ordem para que não fosse desarmada a basílica, e assim inteira a deixaram ficar. A corte saiu, retirou-se a rainha, foram-se os infantes, os frades atrás ladainhando, agora está el-rei medindo gravemente com o olhar a construção, enquanto os fidalgos de semana fazem por imitar-lhe a gravidade, é sempre o mais seguro. Não menos que meia hora permaneceram rei e acompanhantes nesta contemplação. Dos pensamentos dos camaristas não cuidemos averiguar, sabe-se lá o que estará passando por aquelas cabeças, a impressão de cãibra numa perna, a lembrança da cadela preferida que deve parir amanhã, a abertura na alfândega dos fardos vindos de Goa, o súbito apetite de caramelos, a mãozinha macia da freira à grade do convento, a comichão por baixo da cabeleira, tudo quando se quiser, excepto a sublimidade do pensamento real, que era este, Quero ter uma basílica igual na minha corte, por esta não esperávamos nós.

No dia seguinte, D. João V mandou chamar o arquitecto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, que é alemão escrito à portuguesa, edisse-lhe sem outros rodeios, É minha vontade que seja construída na corte uma igreja como a de S. Pedro de Roma, e, tendo assim dito olhou severamente o artista. Ora, a um rei nunca se diz não, e este Ludovice, que enquanto viveu em Itália se chamou Ludovisi, assim já por duas vezes abandonando o nome familiar de Ludwig, sabe que uma vida, para ser bem-sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem a viva entre os degraus do altar e os degraus do trono. Porém, há limites, este rei não sabe o que pede, é tolo, é néscio, se julga que a simples vontade, mesmo real, faz nascer um Bramante, um Rafael, um Sangallo, um Peruzzi, um Buonarroti, um Fontana, um Della Porta, um Maderno, se julga que basta vir dizer-me, a mim, Ludwig, ou Ludovisi, ou Ludovice, se é para orelhas portuguesas, Quero S. Pedro, e S. Pedro aparece feito, quando eu o que sei fazer é só Mafras, artista sou, é verdade, e muito vaidoso, como todos, mas conheço a medida do meu pé, e também o jeito desta terra, onde há vinte e oito anos vivo, muita rompança, pouca perseverança, o que é preciso é dar-lhe a boa resposta, aquele não que mais lisonjeia do que o sim lisonjearia, ainda por cima trabalhoso, que Deus me livre dessa, A vontade de vossa majestade é digna do grande rei que mandou edificar Mafra, porém, as vidas são breves, majestade, e S. Pedro, entre a bênção da primeira pedra e a consagração, consumiu cento e vinte anos de trabalhos e riquezas, vossa majestade, que eu saiba, nunca lá esteve, julga pelo modelo de armar que aí tem, talvez nem daqui a duzentos e quarenta anos o conseguíssemos, estaria vossa majestade morta, mortos estariam vossos filho, neto, bisneto, trineto e tetraneto, o que eu pergunto, com todo o respeito, é se vale a pena estar a construir uma basílica que só ficará terminada no ano dois mil, supondo que nessa altura ainda há mundo, no entanto vossa majestade decidirá. De haver ainda mundo, Não, majestade, de outra vez se fazer S. Pedro em Lisboa, embora a mim me pareça ser mais fácil chegar o mundo ao seu fim que repetir-se a basílica de Roma, Hei-de então não satisfazer esta minha vontade, Vossa majestade viverá eternamente na lembrança dos vossos súbditos, eternamente viverá na glória dos céus, mas a memória não é bom terreno para nela se abrirem alicerces, antes vão caindo aos poucos as paredes, e os céus são uma só igreja onde S. Pedro de Roma não faria mais vulto que um grão de areia, Se assim é, por que construímos nós igrejas e conventos na terra, Porque não compreendemos que a terra já era uma igreja e um convento, lugar de fé e de responsabilidade, lugar de clausura e de liberdade, Entendo mal o que estou a ouvir, E eu não entendo bem o que estou a dizer, mas, para voltar ao caso, se vossa majestade quer chegar ao fim da vida vendo ao menos levantado um palmo de parede, tem de dar já as necessárias ordens, senão nunca passará dos caboucos, Tão pouco assim viverei, A obra é longa, a vida é curta.

Podiam ficar a falar o resto do dia, mas D. João V, que em geral não admite resistências ao seu arbítrio, caiu em melancolia ao ver, na imaginação, o mortuário cortejo dos seus descendentes, filho, neto, bisneto, trineto, tetraneto, morrendo cada um deles sem ver a obra acabada, para isto nem vale a pena começar. João Frederico Ludovice disfarça o contentamento, já percebeu que não haverá S. Pedro de Lisboa, para trabalho bastam-lhe a capela-mor daSé de Évora e as obras de S. Vicente de Fora, que são coisas à escala portuguesa, tudo se quer na sua conta. Estão numa pausa, o rei não fala, o arquitecto não diz, desta maneira se desvanecem no ar os grandes sonhos, e nunca viríamos a saber que D. João V quis um dia construir S. Pedro de Roma no Parque Eduardo VII, se não fosse a inconfidência de Ludovice, que disse ao filho, e este em segredo o transmitiu a uma sua amiga freira de quem era visita, que disse ao confessor, que disse ao geral da ordem, que disse ao patriarca, que o foi perguntar ao rei, que respondeu que se alguém voltasse a falar no assunto incorreria na sua cólera, e assim aconteceu todos se calaram, e se hoje vem o projecto a lume foi porque a verdade caminha sempre por seu próprio pé na história, é só dar-lhe tempo, e um dia aparece e declara, Aqui estou, não temos outro remédio senão acreditar nela, vem nua e sai do poço como a música de Domenico Scarlatti, que ainda vive em Lisboa.

Enfim o rei bate na testa, resplandece-lhe a fronte, rodeia-a o nimbo da inspiração, E se aumentássemos para duzentos frades o convento de Mafra, quem diz duzentos, diz quinhentos, diz mil, estou que seria uma acção de não menor grandeza que a basílica que não pode haver. O arquitecto ponderou, Mil frades, quinhentos frades, é muito frade, majestade, acabávamos por ter de fazer uma igreja tão grande como a de Roma, para lá poderem caber todos, Então, quantos, Digamos trezentos, e mesmo assim já vai ser pequena para eles a basílica que desenhei e está a ser construída, com muitos vagares, se me é permitido o reparo, Sejam trezentos, não se discute mais, é esta a minha vontade, Assim se fará, dando vossa majestade as necessárias ordens.

Foram dadas. Mas primeiro se juntaram, em outro dia, o rei com o provincial dos franciscanos da Arrábida, o almoxarife, e novamente o arquitecto. Ludovice levou os seus desenhos, estendeu-os sobre a mesa, explicou a planta, Aqui é a igreja, para norte e sul estas galerias e estes torreões são o palácio real, da parte de trás ficam as dependências do convento, ora, para satisfazer as ordens de sua majestade teremos de construir, ainda mais atrás, outros corpos, há aqui um monte de pedra rija que vai ser o cabo dos trabalhos minar e rebentar, tanto nos custou já morder a falda dele para endireitar o chão. Ao ouvir que queria el-rei ampliar o convento para tão grande número de frades, de oitenta para trezentos, imagine-se, o provincial, que fora ali sem ainda saber da novidade, derrubou-se no chão dramaticamente, beijou com abundância as mãos da majestade, e enfim declarou, com a voz estrangulada, Senhor, ficai seguro de que neste mesmo momento está Deus mandando preparar novos e mais sumptuosos aposentos no seu paraíso para premiar quem na terra o engrandece e louva em pedras vivas, ficai seguro de que por cada novo tijolo que for colocado no convento de Mafra, uma oração será dita em vossa intenção, não pela salvação da alma, que vos está garantidíssima pelas obras, mas sim como flores da coroa com que haveis de apresentarvos perante o supremo juiz, queira Deus que só daqui por muitos anos, para que não esmoreça a felicidade dos vossos súbditos e perdure a gratidão da igreja e ordem que sirvo e represento. D. João V levantou-se da sua cadeira, beijou a mão do provincial, humildando o poder da terra ao poder do céu, e quando se tornou a sentar repetiu-se-lhe o halo em redor da cabeça, se este rei não se acautela acaba santo. O almoxarife enxuga os olhos húmidos de boa lágrima, Ludovice conserva a ponta do dedo indicador da mão direita sobre o lugar da planta que figura o tal monte que tanto vai custar a arrasar, o provincial levanta os olhos ao tecto, suposto representar aqui o empíreo, e a todos os três o rei olha sucessivamente, grande, pio, fidelíssimo que há-de ser, isto é o que se lê no rosto magnânimo, não é todos os dias que se ordena a ampliação de um convento de oitenta frades para trezentos, o mal e o bem à face vem, diz o povo, neste caso de hoje veio o melhor.

Retirou-se rasando vénias João Frederico Ludovice para ir reformar os desenhos, recolheu-se o provincial à província para ordenar os actos congratulatórios adequados e dar a boa nova, ficou o rei, que está em sua casa, agora esperando que regresse o almoxarife que foi pelos livros da escrituração, e quando ele volta pergunta-lhe, depois de colocados sobre a mesa os enormes infólios, Então diz-me lá como estamos de. deve e haver. O guarda-livros leva a mão ao queixo parecendo que vai entrar em meditação profunda, abre um dos livros como para citar uma decisiva verba, mas emenda ambos os movimentos e contenta-se com dizer, Saiba vossa majestade que, haver, havemos cada vez menos, e dever, devemos cada vez mais, Já o mês passado me disseste o mesmo, E também o outro mês, e o ano que lá vai, por este andar ainda acabamos por ver o fundo ao saco, majestade, Está longe daqui o fundo dos nossos sacos, um no Brasil,outro na Índia, quando se esgotarem vamos sabê-lo com tão grande atraso que poderemos então dizer, afinal estávamos pobres e não sabíamos, Se vossa majestade me perdoa o atrevimento, eu ousaria dizer que estamos pobres e sabemos, Mas graças sejam dadas a Deus, o dinheiro não tem faltado, Pois não, e a minha experiência contabilística lembra-me todos os dias que o pior pobre é aquele a quem o dinheiro não falta, isso se passa em Portugal, que é um saco sem fundo, entra-lhe o dinheiro pela boca e sai-lhe pelo cu, com perdão de vossa majestade, Ah, ah, ah, riu o rei, essa tem muita graça, sim senhor, queres tu dizer na tua que a merda é dinheiro, Não, majestade, é o dinheiro que é merda, e eu estou em muito boa posição para o saber, de cócoras que é como sempre deve estar quem faz as contas do dinheiro dos outros. Este diálogo é falso, apócrifo, calunioso, e também profundamente imoral, não respeita o trono nem o altar, põe um rei e um tesoureiro a falar como arrieiros em taberna, só faltava que os rodeassem inflamâncias de maritornes, seria um desbocamento completo, porém, isto que se leu é somente a tradução moderna do português de sempre, posto o que disse o rei, A partir de hoje, passas a receber vencimento dobrado para que te não custe tanto fazer força, Beijo as mãos de vossa majestade, respondeu o guarda-livros.

Mesmo ainda antes de terminar João Frederico Ludovice os desenhos do convento acrescentado, galopou um correio real para Mafra com ordens imperiosas de que imediatamente se começasse a arrasar o monte, assim se ganhando algum tempo. Apeou-se o correio à porta da vedoria-geral, mais a escolta, sacudiu-se da poeira, subiu a escada, entrou pelo salão, O doutor Leandro de Melo, era este o nome do vedor, Eu sou, lhe diz o tal senhor, Trago cartas de sua majestade em grande velocidade, aqui estão, e passe-me vossa mercê recibo e quitação, que à corte volto logo, não me tarde. Assim se fez, foram-se o correio e a escolta, agora a passo, e o vedor abriu as suas ordens, depois de reverentemente ter beijado o selo, mas quando acabou de as ler empalideceu, tanto que o subvedor julgou que vinha ali destituição de cargo, com o que talvez pudesse aproveitar a sua própria carreira, mas logo se desenganou, já o doutor Leandro de Melo se levantava, já dizia, Vamos à obra, vamos à obra, e em poucos minutos se reuniram o tesoureiro, o mestre dos carpinteiros, o mestre dos alvenéus, o mestre dos canteiros, o abegão-mor, o engenheiro das minas, o capitão da tropa, todos quantos em Mafra tinham vara de mando, e estando reunidos falou-lhes o vedor-geral, Senhores, sua majestade determinou, em sua piedade e alargada sabedoria, que seja aumentada a lotação do convento para trezentos frades e que desde logo se comecem as obras de arrasamento do monte que está a nascente, por ser aí que se levantará o novo corpo de construção, consoante medidas aproximadas que vêm nestas cartas, e como as ordens de sua majestade são para se cumprir, vamos todos à obra ver como se há-de pôr mão na empresa. Disse o tesoureiro que para pagar as despesas subseqùentes não precisava avaliar o monte, disse o mestre dos carpinteiros que o seu ofício era madeira, apara e serradura, disse o mestre dos alvenéus que para levantar paredes e assentar pavimentos o chamassem, disse o mestre dos canteiros que só lidava com pedra arrancada, não por arrancar, disse o abegão-mor que os bois e as bestas lá iriam em sendo precisos, e estas respostas, que parecem de gente indisciplinada, são só de gente sensata, de que serviria ir todo este pessoal olhar um monte, quando bem sabiam qual, e quanto ia custar a arrancar de lá. Tomou o vedor por muito boas as explicações, e enfim saiu levando consigo o engenheiro das minas, que era o da responsabilidade, e o capitão da tropa, por ser o desmonte, principalmente, tarefa dos soldados.

Numa parte do terreno por trás das paredes levantadas do lado nascente, já o frade hortelão do hospício plantara árvores de fruto, e havia canteiros vários, uns legumes, umas bordaduras de flores, por enquanto apenas promessa de pomar e horta, suspiro de jardim. Tudo isto iria ser arrancado. Os trabalhadores viram passar o vedor-geral e o espanhol das minas, depois olharam a avantesma do monte, pois logo havia corrido a notícia de que o convento ia ser aumentado para aquela banda, parece impossível a rapidez com que se divulgam ordens que deviam ser de alguma confidência, pelo menos enquanto o destinatário delas as não publicasse. Quase se acredita que, antes de escrever ao doutor Leandro de Melo, mandou D. João V aviso a Sete-Sóis, ou ao José Pequeno, dizendo, Tenham lá paciência, veio-me esta ideia de pôr aí trezentos frades em vez dos oitenta combinados, por outra parte é bom para todos quantos trabalham na obra, ficam com o emprego garantido por mais tempo, que o dinheiro, ainda há dias mo disse o meu almoxarife, que é de confiança, esse não falta, fiquem sabendo que somos a nação mais rica da Europa, não devemos nada a ninguém e pagamos a todos, e com isto não enfado mais, dá lembranças aos meus queridos trinta mil portugueses que aí andam a fazer pela vida, tanto se esforçando por dar ao seu rei o supremo gosto de ver alçado aos ares e tempos o maior e mais formoso monumento sacro da história, que até me disseram já que comparado com isso S. Pedro de Roma é uma capela, adeus, até qualquer dia, saudades à Blimunda, da máquina voadora do padre Bartolomeu Lourenço é que nunca mais soube nada, tanta protecção lhe dei, tanto dinheiro gasto, o mundo anda cheio de gente ingrata, agora é que é certo, adeus.

O doutor Leandro de Melo está sucumbido ao pé do monte, desmarcado acidente que se empina mais alto que as paredes que ainda hão-de ser, e sendo de seu ofício apenas corregedor de Torres Vedras, acolhe-se ao amparo do engenheiro das minas, que, por ser andaluz e hiperbólico, fala claro, Aún que fuera la Sierra Morena, yo la arrancaria com mis brazos y la precipitaria en la mar, traduzindo, Deixem o caso comigo, que em pouco tempo se abrirá neste lugar um rossio que fará inveja ao de Lisboa. Durante todos estes anos, onze já vão vencidos, se têm sobressaltado os ecos das quebradas de Mafra com os continuados tiros de pólvora, espaçadamente nos últimos tempos, só quando renitente esporão de pedra se interpõe no solo já rendido. Um homem nunca sabe quando a guerra acaba. Diz, Olha, acabou, e de repente não se acabou, recomeça, e vem diferente, a puta, ainda ontem eram floreios de espada e hoje são arrombações de pelouro, ainda ontem se derrubavam muralhas e hoje se desmoronam cidades, ainda ontem se exterminavam países e hoje se rebentam mundos, ainda ontem morrer um era uma tragédia e hoje é banalidade evaporar-se um milhão, não será bem o caso de Mafra, onde nunca veremos reunida tanta gente, apesar de muita, mas, para quem se habituara a ouvir uns cinquenta, cem estoiros por dia, parecia agora o fim do mundo a atroação tremebunda dos mil tiros. Que se davam entre o nascer do sol e a noitinha, em rosários de vinte, com tal violência atirando terras e pedras ao ar que tinham os trabalhadores da obra que abrigar-se na revessa das paredes ou acolher-se à protecção dos andaimes, e mesmo assim alguns ficaram feridos, para não falar daquelas cinco minas que rebentaram inesperadamente e fizeram em pedaços três homens inteiros.

Sete-Sóis ainda não respondeu ao rei, vai adiando sempre, acanha-se de pedir a alguém que lhe escreva a missiva, mas, se um dia vence a vergonha, assim é que notará, Meu querido rei, cá recebi a sua carta e nela vi tudo quanto tinha para me dizer, o trabalho aqui não tem faltado, só paramos quando chove tanto que até os patos diriam basta, ou quando se atrasou a pedra no caminho, ou quando os tijolos saíram de má qualidade e ficamos à espera que venham outros, agora anda tudo aqui em grande confusão com a tal ideia de alargar o convento, é que o meu querido rei nem imagina o tamanho daquele monte e a soma de homens que requer, tiveram de largar a obra da igreja e do palácio, vai ser um atraso, até canteiros e carpinteiros andam a acarretar pedra, eu umas vezes com os bois, outras vezes com o carro de mão, tive foi pena dos limoeiros e dos pessegueiros que foram arrancados, os amores-perfeitos foi um ar que lhes deu, não valia a pena ter semeado flores para depois as tratar com tanta crueldade, mas enfim, como o meu querido rei diz que não devemos nada a ninguém, sempre é uma satisfação, é como a minha mãe que dizia, paga a dívida bem, não olhes a quem, coitada, já morreu, e não verá o maior e mais formoso monumento sacro da história, como me disse na sua carta, ainda que, para ser-lhe franco, nas histórias que conheço nunca se fala de monumentos sacros, só de mouras encantadas e tesouros escondidos e por falar em tesouros e mouras, a Blimunda está bem, muito obrigado, já não é tão bonita como foi, mas quem dera a muitas novas estarem como ela, o José Pequeno manda perguntar quando é o casamento do infante D. José, que lhe quer mandar um presente, se calhar é por terem ambos o mesmo nome, e os trinta mil portugueses recomendam-se muito e agradecem, a saúde deles vai assim assim, no outro dia houve aí uma caganeira tão geral que Mafra fedia três léguas em redor, alguma coisa que comemos e nos assentou mal, eram os gorgulhos mais que a farinha, ou as varejeiras mais que a carne, mas teve graça, ver um ror de gente de rabo à vela, com a frescura que vinha do mar, muito aliviadora, e quando uns acabavam havia logo outros tantos, às vezes era tal a urgência que onde estavam ali davam de corpo, ah, é verdade, ia-me esquecendo, também nunca mais ouvi falar da máquina voadora, talvez a tenha levado o padre Bartolomeu Lourenço para Espanha, quem sabe se a tem agora o rei de lá, que, segundo ouço dizer, vai ser seu compadre, acautele-se, com isto não enfado mais, lembranças à rainha, adeus, meu querido rei, adeus.

Esta carta nunca foi escrita, mas os caminhos da comunicação das almas são muitos, quantos ainda misteriosos, e de tantas palavras que Sete-Sóis não chegou a ditar, algumas foram ferir o coração do rei, tal como aquela fatal sentença que, para aviso de Baltasar, apareceu gravada a lume numa parede, pesado, contado, dividido, esse Baltasar não é o Mateus que conhecemos, mas sim aquele outro que foi rei de Babilónia, e que, tendo profanado, num festim, os vasos sagrados do templo de Jerusalém, por isso veio a ser punido, morto às mãos de Ciro, que para a execução dessa divina sentença tinha nascido. As culpas de D. João V são outras, se a alguns vasos profana são os das esposas do Senhor, mas elas gostam e Deus não se importa, adiante. Aos ouvidos de D. João V, o que soou como um dobre foi aquela passagem, quando Baltasar, falando da mãe, muito a lastima por já não poder ver o maior e mais formoso dos monumentos sacros, Mafra. Subitamente, el-rei compreende que a sua vida será curta, que curtas são todas as vidas, que muita gente morreu e morrerá antes que se acabe de construir Mafra, que ele próprio poderá amanhã fechar os olhos para todo o sempre. Recorda-se de que desistiu de edificar S. Pedro de Roma justamente por tê-lo convencido Ludovice dessa mesma curteza das vidas, e que o mesmo S. Pedro, palavras ditas, entre a bênção da primeira pedra e a consagração consumiu nada menos que cento e vinte anos de trabalhos e riquezas. Ora, Mafra já engoliu. onze anos de trabalho, das riquezas nem se deve falar, Quem me garante que estarei vivo quando se fizer a sagração, se ainda aqui há uns poucos anos ninguém dava nada por mim, com aquela melancolia que me ia levando antes de tempo, o caso é que a mãe do Sete-Sóis, coitada, viu o princípio, mas não verá o fim, um rei não se livra de lhe suceder o mesmo.

D. João V está numa sala do torreão, virada ao rio. Mandou sair os camaristas, os secretários, os frades, uma cantarina da comédia, não quer ver ninguém. Tem desenhado na cara o medo de morrer, vergonha suprema em monarca tão poderoso. Mas esse medo de morrer não é o de se lhe abater de vez o corpo e ir-se embora a alma, é sim o de que não estejam abertos e luzentes os seus próprios olhos quando, sagradas, se alçarem as torres e a cúpula de Mafra, é o de que não sejam já sensíveis e sonoros os seus próprios ouvidos quando soarem gloriosamente os carrilhões e as solfas, é o de não palpar com as suas mãos os paramentos ricos e os panos da festa, é o de não cheirar o seu nariz o incenso dos turíbulos de prata, é o de ser apenas o rei que mandou fazer e não o que vê feito. Vai além um barco, quem sabe se chegará a porto, Passa uma nuvem no céu, porventura não a veremos em chuva derramada, Sob aquelas águas, o cardume nada ao encontro da rede. Vaidade das vaidades, disse Salomão, e D. João V repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade.

Mas o vencimento da vaidade não é a modéstia, menos ainda a humildáde, é antes o seu excesso. Desta meditação e agonia não saiu el-rei para vestir o burel da penitência e da renúncia, mas para fazer voltar os camaristas, os secretários e os frades, a cantarina viria mais tarde, a estes perguntando se era realmente verdade, consoante julgava saber, que a sagração das basílicas se deve fazer aos domingos, e eles responderam que sim, segundo o Ritual, e então el-rei mandou apurar quando cairia o dia do seu aniversário, vinte e dois de Outubro, a um domingo, tendo os secretários respondido, após cuidadosa verificação do calendário, que tal coincidência se daria daí a dois anos, em mil setecentos e trinta, Então é nesse dia que se fará a sagração da basílica de Mafra, assim o quero, ordeno e determino, e quando isto ouviram foram os camaristas beijar a mão do seu senhor., vós me direis qual é mais excelente, se ser do mundo rei, se desta gente.

Deitaram reverentemente alguma água na fervura João Frederico Ludovice e o doutor Leandro de Melo, chamados à pressa de Mafra, aonde o primeiro tinha ido e onde o segundo assistia, os quais, com a memória fresca do que lá viam, disseram que o estado da obra não consentia tão feliz previsão, tanto no que tocava ao convento, cujo segundo corpo se ia levantando lentamente de paredes, como à igreja, por sua natureza de delicada construção, um assembramento de pedras que não poderia ser feito à ligeira, vossa majestade o sabe melhor que ninguém, se tão harmoniosamente concilia e equilibra as partes de que se forma a nação. Carregou-se o sobrecenho de D. João V, porque a cansada lisonja em nada o aliviara, e indo abrir a boca para responder com secura, preferiu chamar outra vez os secretários e perguntar-lhes em que data voltaria a cair a um domingo o seu aniversário, passada esta de mil setecentos e trinta, pelos vistos não bastante prazo. Trabalharam eles afanosamente as suas aritméticas e com alguma dúvida responderam que o acontecimento tornaria a dar-se dez anos depois, em mil setecentos e quarenta.

Estavam ali oito ou dez pessoas, entre rei, Ludovice, Leandro, secretários e fidalgos de semana, e todos acenaram gravemente a cabeça, como se o próprio Hallev tivesse acabado de explicar a periodicidade dos cometas, as coisas que os homens são capazes de descobrir. Porém, D. João V teve um pensamento negro, viuse-lhe na cara, e faz rápidas contas, mentais, com ajuda dos dedos, Em mil setecentos e quarenta terei cinquenta e um anos, e acrescentou lugubremente, Se ainda for vivo. E por alguns terríveis minutos tornou a subir este rei ao Monte das Oliveiras, ali se agoniou com o medo da morte e o pavor do roubo que lhe seria feito, agora acrescentando um sentimento de inveja, imaginar seu filho já rei, com a rainha nova que está para vir de Espanha, gozando ambos as delícias de inaugurar e ver sagrar Mafra, enquanto ele estaria apodrecendo em S. Vicente de Fora, perto do infantezinho D. Pedro, morto tão pequenino da brutalidade do desmame. Estavam os circunstantes olhando o rei, Ludovice com alguma curiosidade científica, Leandro de Melo indignado contra a severidade da lei do tempo que nem as majestades respeita, os secretários duvidando de terem acertado nos bissextos, os camaristas avaliando as suas próprias probabilidades de sobrevivência. Todos esperavam. E então D. João V disse, A sagração da basílica de Mafra será feita no dia vinte e dois de Outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe dê o tranglomango.

Tirando as expressões enfáticas, esta mesma ordem já fora dada antes, parece não ser mais que uma declaração solene para a história, como aquela, tão conhecida, Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, ora toma, afinal Deus não é maneta, não senhor, andou aí o padre Bartolomeu Lourenço em domésticos sacrilégios afastando Baltasar Sete-Sóis do recto caminho, quando bastaria ter ido perguntar ao Filho, que tem obrigação de saber quantas mãos o Pai tem, mas, ao que D. João V já disse, se deverá acrescentar agora o que vem de sabermos nós quantas mãos os filhos sujeitos têm e para que servem eles e elas, Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrarem nas suas jurisdições, sejam eles carpinteiros, pedreiros ou braçais, retirando-os, ainda que por violência, dos seus mesteres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar, não lhes valendo considerações de família, dependência ou anterior obrigação, porque nada está acima da vontade real, salvo a vontade divina, e a esta ninguém poderá invocar, que o fará em vão, porque precisamente para serviço dela se ordena esta providência, tenho dito. Ludovice acenou a cabeça gravemente, como quem acabasse de verificar a regularidade duma reacção química, os secretários escrituraram velocíssimas notas, os camaristas entreolharam-se e sorriram, isto é que é um rei, o doutor Leandro de Melo estava a salvo desta nova obrigação porque na sua comarca já não havia quem trabalhasse em ofícios que não servissem o convento, por via directa ou indirecta.

Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns, aliciados pela promessa de bom salário, por gosto de aventura outros, por desprendimento de afectos também, à força quase todos. Deitava-se o pregão nas praças, e, sendo escasso o número de voluntários, ia o corregedor pelas ruas, acompanhado dos quadrilheiros, entrava nas casas, empurrava os cancelos dos quintais, saía ao campo a ver onde se escondiam os relapsos, ao fim do dia juntava dez, vinte, trinta homens, e quando eram mais que os carcereiros atavamnos com cordas, variando o modo, ora presos pela cintura uns aos outros, ora com improvisada pescoceira, ora ligados pelos tornozelos, como galés ou escravos. Em todos os lugares se repetia a cena, Por ordem de sua majestade, vais trabalhar na obra do convento de Mafra, e se o corregedor era zeloso, tanto fazia que estivesse o requisitado na força da vida como já lhe escorregasse o rabo da tripeça, ou pouco mais fosse que menino. Recusava-se u homem primeiro, fazia menção de escapar, apresentava pretextos, a mulher no fim do tempo, a mãe velha, um rancho de filhos, a parede em meio, a arca por confortar, o alqueive necessário, e se começava a dizer as suas razões não as acabava, deitavam-lhe a mão os quadrilheiros, batiam-lhe se resistia, muitos eram metidos ao caminho a sangrar.

Corriam as mulheres, choravam, e as crianças acresciam o alarido, era como se andassem os corregedores a prender para a tropa ou para a Índia. Reunidos na praça de Celorico da Beira, ou de Tomar, ou em Leiria, em Vila Pouca ou Vila Muita na aldeia sem mais nome que saberem-no os moradores de lá, nas terras da raia ou da borda do mar, ao redor dos pelourinhos, no adro das igrejas, em Santarém e Beja, em Faro e Portimão,em Portalegre e Setúbal, em Évora e Montemor, nas montanhas e na planície, e em Viseu e Guarda, em Bragança e Vila Real, em Miranda, Chaves e Amarante, em Vianas e Póvoas, em todos os lugares aonde pôde chegar a justiça de sua majestade, os homens, atados como reses, folgados apenas quanto bastasse para não se atropelarem, viam as mulheres e os filhos implorando o corregedor, procurando subornar os quadrilheiros com alguns ovos, uma galinha, míseros expedientes que de nada serviam, pois a moeda com que el-rei de Portugal cobra os seus tributos é o ouro, é a esmeralda, é o diamante, é a pimenta e a canela, é o marfim e o tabaco, é o açúcar e a sucupira, lágrimas não correm na alfândega. E se para isso tiveram tempo, quadrilheiros houve que se gozaram das mulheres dos presos, que a tanto se sujeitaram as pobres para não perder os seus maridos, porém desesperadas os viam depois partir, enquanto os aproveitadores se riam delas Maldito sejas até à quinta geração, de lepra se te cubra o corpo todo, puta vejas a tua mãe, puta a tua mulher, puta a tua filha, empalado sejas do cu até à boca, maldito, maldito, maldito. Já vai andando a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, ó doce e amado esposo, e outra protestando, ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os olhos, em bagadas caíndo aos mais sensíveis e então uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subido a um valado que é púlpito derústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto.

Quanto pode um rei. Está sentado em seu trono, alivia-se consoante a necessidade, na peniqueira ou no ventre das madres, e daí daqui ou dacolá, se o requerem os interesses do Estado, cujo ele é, despacha ordens para que de Penamacor venham os homens válidos, ou nem tanto, a trabalhar neste meu convento de Mafra, levantado porque o reclamavam os franciscanos desde mil seiscentos e vinte e quatro, e por enfim ter ocupado a rainha duma filha, que nem rainha de Portugal vai ser, mas de Espanha, por interesses dinásticos e particulares. E os homens, que nunca viram o rei, os homens que o rei nunca viu, os homens, mesmo não o querendo vêm, entre soldados e quadrilheiros, soltos se são de ânimo pacífico ou já se resignaram, atados como foi explicado, se rebeldes atados sempre se por malícia viloa mostraram ir de vontade e depois tentaram fugir, pior ainda se algum conseguiu escapar-se. Atravessam os campos, de terra em terra, pelas poucas estradas reais, às vezes por aquelas que os romanos fizeram construir, quase sempre por carreiros de pé posto, e o tempo é o variável, sol de estarrecer, chuva de alagar, frio que gela, em Lisboa sua majestade espera que cada um cumpra o seu dever.

Às vezes, há encontros. Vinham uns mais do Norte, outros mais do Nascente, aqueles de Penela, esses de Proença-a-Nova, juntaramse em Porto de Mós, nenhum deles sabe que lugares são estes no mapa, nem que forma tem Portugal, se é quadrado, ou redondo, ou aos bicos, se é ponte de passar ou corda de enforcar, se grita quando lhe batem ou se se esconde pelos cantos. Das duas levas se faz uma, e tendo já seus requintes a arte carcereira, emparelharam-se os homens de modo místico, um de Proença, outro de Penela, assim se dificultando as subversões, com o evidente benefício de dar Portugal a conhecer aos portugueses, Então como é a tua terra, e enquanto falam disto não pensam noutra coisa. A não ser que morra algum pelo caminho. Pode cair fulminado por um ataque, espumando pela boca, ou nem isso, apenas derrubando-se e arrastando na queda o companheiro da frente e o companheiro de trás, subitamente e em pânico atados a um morto, pode adoecer no descampado e vai de charola, trangalhando pernas e braços, até morrer adiante e ser enterrado à beira do caminho, com uma cruz de pau espetada do lado da cabeça, ou afortunadamente recebe em povoado os últimos sacramentos, enquanto os degredados esperam sentados no chão que o caso se deslinde, Hoc est enim corpus meum, este corpo cansado de tantas léguas andadas, este corpo esfolado dos atritos da corda, este corpo gastado da comida ainda menos que a pouca costumada. As noites são dormidas em palheiros, em portarias de conventos, em tercenas despejadas, e, querendo Deus e o bom tempo, ao ar livre, assim se juntando a liberdade do ar e a prisão dos homens, extensas filosofias aqui se debateriam se tivéssemos tempo para isso. De madrugada, muito antes de nascer o sol, e ainda bem, porque estas horas são sempre as mais frias, levantam-se os trabalhadores de sua majestade, enregelados e famintos, felizmente os libertaram das cordas os quadrilheiros, porque hoje entraremos em Mafra e causaria péssimo efeito o cortejo de maltrapilhos, atados como escravos do Brasil ou récua de cavalgaduras. Quando de longe avistam os muros brancos da basílica, não gritam, Jerusalém, Jerusalém, por isso é mentira o que disse aquele frade que pregou quando foi levada de Pêro Pinheiro a pedra a Mafra, que todos estes homens são cruzados duma nova cruzada, que cruzados são estes que tão pouco sabem da sua cruzadia. Fazem alto os quadrilheiros, para que desta eminência possam os trazidos apreciar o amplo panorama no meio do qual vão viver, à direita o mar onde navegam as nossas naus, senhoras do líquido elemento, em frente, para o Sul, está a famosíssima serra de Sintra, orgulho de nacionais, inveja de estrangeiros, que daria um bom paraíso no caso de Deus fazer outra tentativa, e a vila, lá em baixo na cova, é Mafra, que dizem os eruditos ser isso mesmo o que quer dizer, mas um dia se hão-de rectificar os sentidos e naquele nome será lido, letra por letra, mortos, assados, fundidos, roubados, arrastados, e não sou eu, simples quadrilheiro às ordens, quem a tal leitura se vai atrever, mas sim um abade beneditino a seu tempo, e essa será a razão que tem para não vir assistir à sagração da bisarma, porém, não antecipemos, ainda há muito trabalho para acabar, por causa dele é que vocês vieram das longes terras onde vivíeis, não façam caso da falta de concordância, que a nós ninguém nos ensinou a falar, aprendemos com os erros dos nossos pais, e, além disso, estamos em tempo de transição, e agora que já viram o que vos espera, sigam lá para adiante, que nós, ficando vocês entregues, vamos buscar mais.

Para chegarem à obra, vindos donde vêm, têm de atravessar a vila, passam à sombra do palácio do visconde, rasam a soleira dos Sete-Sóis, e tanto sabem de uns como sabem dos outros, apesar de genealogias e memoriais, Tomás da Silva Teles, bisconde de Vila nova da Cerveira, Baltasar Mateus, fabricante de aviões, com o rodar dos tempos veremos quem vai ganhar esta Querra. As janelas do palácio não se abrem para ver passar o cortejo dos miseráveis, só o cheiro que deitam, senhora biscondessa. Abriu-se, sim, o postigo da casa dos Sete-Sóis e veio Blimunda olhar, não é nenhuma novidade, quantas levas já por aqui passaram, mas, estando em casa, sempre vem ver, é uma maneira de receber quem chegou, e quando à noite Baltasar regressa, ela diz, Por aqui passaram hoje mais de cem, perdoe-se a imprecisão de quem não aprendeu a contar rigoroso foram muitos, foram poucos, é como quando se fala de anos, já passei dos trinta, e Baltasar diz, Ao todo ouvi dizer que chegaram quinhentos, Tantos, espanta-se Blimunda, e nem um nem outro sabem exactamente quantos são quinhentos, sem falar que o número é de todas as coisas que há no mundo a menos exacta, diz-se quinhentos tijolos, diz-se quinhentos homens, e a diferença que há entre tijolo e homem é a diferença que se julga não haver entre quinhentos e quinhentos, quem isto não entender à primeira vez não merece que lho expliquem segunda.

Juntam-se os homens que entraram hoje, dormem onde calhar, amanhã serão escolhidos. Como os tijolos. Os que não prestarem, se foi de tijolos a carga, ficam por aí, acabarão por servir a obras de menos calado, não faltará quem os aproveite, mas, se foram homens, mandam-nos embora, em hora boa ou hora má, Não serves, volta para a tua terra, e eles vão, por caminhos que não conhecem, perdem-se, fazem-se vadios, morrem na estrada, às vezes roubam, às vezes matam, às vezes chegam.

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