2067

2067

Haendel Motta

Frequento a ilusão digital desde que se tornou indiscernível da realidade, e me contenta apenas uma gélida floresta, um banco de tábuas longas e a lentidão de um rio. O relato que se segue ocorreu em 2067, mas só o escrevo agora, em 71, para que também me pareça um conto.

Descansava após horas escrevendo (a escrita nunca abandonou o homem, apesar de tudo) em meu santuário digital, quando senta ao meu lado um sujeito. Não recordo ter deixado autorizada a entrada de ninguém ali, mas aos 91 anos admito facilmente qualquer descuido.

Resolvo ignorá-lo. Ele me aborda sem cerimônia: — Não avisaram que haveria alguém aqui. Você é real ou robô?

Sua voz me inquieta. Realizo discretamente um gesto pré-definido que verifica a imagem de qualquer pessoa ali dentro. A resposta do sistema, também discreta, é aterradora: estou diante da forma original daquele homem, tal como se apresenta lá fora.

— Sou real – lhe respondo – e, como você, sem qualquer alteração da autoimagem.

Ele demonstra surpresa, só então me encara, depois sorri: — Um teste contra invasores. Interessante, mas numa versão mais velha de mim? – parece falar sozinho, seu rosto e gestos são incrivelmente os meus ali pelos 40 anos.

— Deixe-me adivinhar – assumo um tom professoral –, você é oficial da Marinha, mora no Rio de Janeiro e se chama Haendel.

Seu olhar assume um aspecto entediado: — Conforme consta em meus dados de acesso. Escuta, minha curiosidade é com essa experiência de cenário total, ainda longe de parecer real pra mim – examina a cena e o rio –, mas ficar de papo aqui com um bot não me interessa.

Admiro a perfeita emulação de minha impaciência de sempre, e sigo querendo entender aquilo tudo: — Isto aqui não te parece real? Em que ano pensa que está?

— 2023, claro – afirma.

— Estamos em 2067, meu jovem. E esse diálogo é ridículo. Ou o sistema me prega uma peça como você mesmo diz, ou adormeci dentro do aparelho, o que é comum quando se tem 91 anos, e agora sonho encontrar comigo aos 40...

— 47, e se alguém aqui está sonhando esse alguém sou eu – fala com certa aflição.

— Te provo que não minto. Posso falar de objetos que recordo nas gavetas do trabalho ou em casa, que nem o garimpo mais exaustivo de seus rastros digitais poderia te entregar.

— Nem comece – me interrompe –, se estou sonhando com você é natural que saiba tudo o que sei.

— Analítico como sempre... não mudei nada – olho para baixo e então para a perfeição do rio.

Uma pausa incômoda se instala. Ele decide continuar: — Se é mesmo quem diz, deve se lembrar do dia em que encontrou uma versão mais velha de você num cenário virtual total.

Penso para responder: — É provável que tenha considerado um truque do sistema, como agora você faz, e tentado de tudo para menosprezar o episódio.

Nova pausa.

— Quer tentar outra prova? Acho mesmo que isso está durando com coerência demais para um sonho.

— Me pergunte sobre o que virá.

Ele hesita um pouco: — A tal adolescência tecnológica, como escreveu Carl Sagan, parece agora superada?

Dou um pequeno sorriso: — Me agrada que a pergunta seja sobre o destino coletivo e não sobre o seu.

— Encontrar um velhinho tranquilo me basta – me devolve o sorriso, numa primeira e estranha cumplicidade.

— Bom, sua pergunta. Digamos que a sensação de que os acertos nunca superam os erros se mantém. E também a impressão de que o melhor do humano continua desperdiçado; talvez haja força nisso, é preciso estar oculto para ser revelado.

— Tudo isso pode ser dito por um homem em 2023.

— Sim. Provavelmente nunca entenderemos esse encontro aqui. – resolvo com isso retomar uma dúvida – Você disse que esse cenário não te parece real?

— Ainda vejo pixels ao invés de pedras.

— Espírito crítico, esse tipo de disposição encontrará valor. Não desanime dele – estranho-me falando bizarramente como um pai.

Não conseguimos trocar outra palavra depois daquela, o encontro termina de modo abrupto. Não sei dizer quem saiu primeiro. No dia seguinte, verifico que a capacidade do olho humano distinguir entre real e virtual foi superada ainda antes de 2030.

Revisitei muito a recordação daquele encontro, sem intuir a chave. Devo, jovem, ter conversado comigo em sonho, e por isso me esqueci. Já eu, atesta o sistema, vivi tudo em vigília.

Falei comigo em sonho, mas não alcancei o futuro rigorosamente. Sonhei, aí está a pista, a impossível paisagem em baixa resolução.

Baseado (quase um plágio, rs) no conto "O outro", de Jorge Luis Borges.

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