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Memorial do Convento José Saramago

Terra solta, pedrisco, calhau que a pólvora ou o alvião arrancaram ao pedernal profundo, esse pouco o transportam por mão de homem os carrinhos, enchendo o vale com pó que se vai arrasando do monte ou extraindo dos novos caboucos. Para o entulho de maior porte e arrastado peso andam os carros grandes, chapeados de ferro, que os bois e as bestas puxam sem mais pausa que carregar e descarregar. Aos andaimes, pelas travejadas rampas de madeira, sobem homens as pedras suspensas do jugo que sobre os ombros e a nuca lhes assenta, para sempre seja louvado quem inventou o chinguiço, alguém a quem lhe doía. São trabalhos já ditos, que mais facilmente se recapitulam por serem de força bruta, porém, é causa da sua reiteração não consentir que esqueçamos o que, por tão comum é de tão mínima arte, se costuma olhar sem mais consideração que distraidamente vermos os nossos próprios dedos escrevendo, assim de um modo e outro ficando oculto aquele que faz sob aquilo que é feito. Muito melhor veríamos, e muito mais, se olhássemos de alto, por exemplo, pairando na máquina voadora sobre este lugar de Mafra, o passeado monte, o conhecido vale, a Ilha da Madeira que as estações escureceram de chuva e sol, e alguns tabuados apodrecem já, o derrubamento das árvores no pinhal de Leiria e nos termos de Torres Vedras e Lisboa, os fumos diurnos e nocturnos dos fornos de tijolo e cal que entre Mafra e Cascais são centenas, os barcos que outros tijolos trazem do Algarve e de Entre-Douro-e-Minho e os vão descarregar, Tejo adentro, por um canal aberto a braço, ao cais de Santo António do Tojal, os carros que por Monte Achique e Pinheiro de Loures trazem estas e outras matérias ao convento de sua majestade, e aqueles outros que carregam as pedras de Pêro Pinheiro, não há melhor miradouro que este onde estamos, não faríamos ideia da grandeza da obra se o padre Bartolomeu Lourenço não tivesse inventado a passarola, a nós nos sustentam no ar as vontades que Blimunda juntou dentro das esferas de metal, lá em baixo outras vontades andam, presas ao globo terra pela lei da gravidade e da necessidade, se pudéssemos contar os carros que se movem por estes caminhos de ir e voltar, próximos ou mais longe, chegaríamos aos dois mil e quinhentos, vistos daqui parece que estão parados, é por ser tão pesada a carga. Mas os homens, se os quisermos ver, tem de ser de mais perto.

Durante muitos meses, Baltasar puxou e empurrou carros de mão, até que um dia se achou cansado de ser mula de liteira, ora à frente, ora atrás, e, tendo prestado públicas e boas provas perante oficiais do ofício, passou a andar com uma junta de bois, das muitas que el-rei tinha comprado. Fora de boa ajuda na promoção o José Pequeno, a cuja corcundice o abegão achava sua graça, ao ponto de dizer que o boieiro ficava com a cara à altura do focinho dos bois, e era quase verdade, mas, se pensou que com isso o ofendeu, muito enganado estava, porque o José Pequeno, pela primeira vez, ganhou consciência do gosto que lhe dava poder olhar a direito com os seus olhos de homem os imensos olhos dos animais, imensos e mansos, onde via reflectida a sua própria cabeça, o tronco, e, lá para baixo, sumindo-se na fímbria inferior da pálpebra, as pernas, quando um homem cabe inteiro no olho de um boi, pode-se enfim reconhecer que o mundo está bem construído. Fora de boa ajuda o José Pequeno porque instou com o abegão que passasse Baltasar Sete-Sóis a boieiro, se já andava com os bois um aleijado, podiam andar dois, fazem companhia um ao outro, e se ele não se entender com o trabalho, não arrisca nada, volta para os carros de mão, em um dia se verá a habilidade do homem. De bois sabia Baltasar o bastante, mesmo não lidando com eles há tantos anos, e em dois trajectos logo se viu que o gancho não era defeito e que a mão direita não esquecera nenhuma cláusula da arte da aguilhada. Quando nessa noite chegou a casa, ia tão contente como quando, em garoto, descobrira o primeiro ovo num ninho, quando homem estivera com a primeira mulher, quando soldado ouvira o primeiro toque de trombeta, e de madrugada sonhou com os seus bois e a mão esquerda, nada lhe faltava, se até Blimunda ia montada num dos animais, entenda isto quem souber de sonhos sonhados.

Estava Baltasar há pouco tempo nesta sua nova vida, quando houve notícia de que era preciso ir a Pêro Pinheiro buscar uma pedra muito grande que lá estava, destinada à varanda que ficará sobre o pórtico da igreja tão excessiva a tal pedra que foram calculadas em duzentas as juntas de bois necessárias para trazê-la, e muitos os homens que tinham de ir também para as ajudas. Em Pêro Pinheiro se construíra o carro que haveriade carregar o calhau, espécie de nau da Índia com rodas, isto dizia quem já o tinha visto em acabamentos e igualmente pusera os olhos, alguma vez na nau da comparação. Exagero será, decerto, melhor é julgarmos pelos nossos próprios olhos, com todos estes homens que se estão levantando noite ainda e vão partir para Pêro Pinheiro, eles e os quatrocentos bois, e mais de vinte carros que levam os petrechos para a condução, convém a saber, cordas e calabres, cunhas, alavancas, rodas sobressalentes feitas pela medida das outras, eixos para o caso de se partirem alguns dos primitivos, escoras de vário tamanho, martelos, torqueses, chapas de ferro, gadanhas para quando for preciso cortar o feno dos animais, e vão também os mantimentos que os homens hão-de comer, fora o que puder ser comprado nos lugares, um tão numeroso mundo de coisas carregando os carros, que quem julgou fazer a cavalo a viagem para baixo, vai ter de fazê-la por seu pé, nem é muito, três léguas para lá, três para cá, é certo que os caminhos não são bons, mas tantas vezes já fizeram os bois e os homens esta jornada com outros carregos, que só de pôr no chão a pata e a sola logo vêem que estão em terra conhecida, ainda que custosa de subir e perigosa de descer. Daqueles homens que conhecemos no outro dia, vão na viagem José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é o nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão. De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vão a Pêro Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brás que é ruivo e camões do olho direito, não tardaria que se começasse a dizer que isto é uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heróis se deverão escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tínhamos querido, porém, verdades são verdades, antes se nos agradeça não termos consentido que viesse à história quanto há de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de zambros e epilépticos, de orelhudos e parvos, de albinos e de alvares, os da sarna e os da chaga, os da tinha e do tinhó, então sim, se veria o cortejo de lázaros e quasímodos que está saindo da vila de Mafra, ainda madrugada, o que vale é que de noite todos os gatos são pardos e vultos todos os homens, se Blimunda tivesse vindo à despedida sem ter comido o seu pão, que vontade veria em cada um, a de ser outra coisa.

Mal o sol nasceu, logo se pôs quente o dia, nem admira, se Julho é. Três léguas, para este povo de andarilhos, não é jornada de matar, tanto mais que o comum do pessoal regula o passo pela andadura dos bois, e estes não sabem de nenhum motivo para ir depressa. Soltos de carga, apenas jungidos aos pares, vão desconfiados da fartura e quase sentem inveja dos manos que vêm puxando os carros dos petrechos, é como estar na engorda antes do matadouro. Os homens, já se disse, vão devagar, calados uns, outros conversando, cada qual puxado aos amigos que tem, mas a um deles chegou-se-lhe o fogo ao rabo e, mal saiu de Mafra, largou num trote curto, parecia que ia a Cheleiros salvar o pai da forca, era o Francisco Marques que aproveitava a ocasião para ir enforcar-se entre as pernas da mulher, agora que ela já despejou, ou não será tal a ideia, talvez queira apenas estar com os filhos, dar uma palavra à esposa, cortejá-la somente, sem pensar em fornicações que teriam de ser apressadas porque os companheiros vêm aí atrás, e pelo menos a Pêro Pinheiro convém que chegue ao mesmo tempo que eles, já à nossa porta estão passando, afinal sempre me deitei contigo, o menino está a dormir, não dá por nada, os outros mandámo-los ver se está a chover, e eles entendem que o pai quer estar com a mãe que seria de nós se el-rei tem mandado fazer o convento no Algarve, e ela perguntou, Já te vais, e ele respondeu, Que remédio, mas na volta, acampando nós perto, fico toda a noite contigo.

Quando Francisco Marques chegou a Pêro Pinheiro a deitar os bofes pela boca, de perna fraca, já estava armado o arraial, enfim, não havia barracas, não havia tendas, os soldados eram apenas os da vigilância costumada, mas parecia aquilo uma feira de gado, mais de quatrocentas cabeças, e os homens andando pelo meio dos bois, apartando-os para um lado, e com isso espantavam-se alguns animais, davam grandes cabeçadas, aparatosas, mas sem malícia, depois acomodaram-se a comer o feno que estava a ser descarregado dos carros, iam ter muito que esperar, agora comiam rapidamente os homens da pá e da enxada, que esses eram precisos lá adiante. A manhã estava em meio, o sol batia já violento no chão duro e seco, coberto de miúdos fragmentos de mármore, lascas, esquírolas, e, a um lado e outro do rebaixo fundo da pedreira, grandes blocos esperavam a sua vez de ser levados a Mafra. Estava-lhes certa a viagem, mas hoje não. Alguns homens tinham-se juntado no meio do caminho, os de trás tentavam olhar por cima das cabeças dos outros, ou forcejavam por furar pelo meio deles, e Francisco Marques aproximou-se, compensando o atraso com o empenho de saber, Que é que estão a ver além, por acaso foi o ruivo que lhe respondeu, É a pedra, e outro acrescentou, Nunca vi uma coisa assim em dias da minha vida, e abanava a cabeça, abismado. Nisto vieram os soldados, e com ordens e empurrões afastaram o ajuntamento, Cheguem-se para lá, os homens são tão curiosos como os cachopos, e veio o oficial da vedoria que tinha encargo deste transporte, Apartem-se, dêem campo, lá se afastaram os homens atropelando-se, e ela apareceu, bem tinha dito o Brás ruivo e zarolho, A pedra.

Era uma laje rectangular enorme, uma brutidão de mármore rugoso que assentava sobre troncos de pinheiro, chegando mais perto sem dúvida ouviríamos o gemer da seiva, como ouvimos agora o gemido de espanto que saiu da boca dos homens, neste instante em que a pedra desafogada apareceu em seu real tamanho. Aproximou-se o oficial da vedoria e pôs-lhe a mão em cima, como se estivesse tomando posse dela em nome de sua majestade, mas se estes homens e estes bois não fizerem a força necessária, todo o poder de el-rei será vento, pó e coisa nenhuma. Porém, farão a força. Foi para isso que vieram, para isso deixaram terras e trabalhos seus, trabalhos que eram também de força em terras que a força mal amparava, pode o vedor estar sossegado que aqui ninguém se irá negar.

Os homens da pedreira aproximam-se, vão terminar e apurar o corte da pequena elevação para onde a pedra havia sido arrastada, em modos de fazer-lhe uma paredevertical, à face do lado mais estreito da laje. É aqui que virá acostar a nauda Índia, mas primeiro terão os homens vindos de Mafra de abrir uma larga avenida por onde baixará o carro, uma rampa que suavemente vá até à estrada, só depois a viagem poderá começar. Armados de alviões e pás, os homens de Mafra avançaram, já o oficial riscou no chão o traçado deste rebaixo, e Manuel Míllro, que estava ao lado do de Cheleiros, medindo-se com a laje agora tão próxima, disse, E a mãe da pedra, não disse que era o pai da pedra, sim a mãe, talvez porque viesse das profundas, ainda maculada pelo barro da matriz, mãe gigantesca sobre a qual poderiam deitar-se quantos homens, ou ela esmagá-los a eles, quantos, faça as contas quem quiser, que a laje tem de comprimento trinta e cinco palmos, de largura quinze, e a espessura é de quatro palmos, e, para ser completa a notícia, depois de lavrada e polida, lá em Mafra, ficará só um pouco mais pequena, trinta e dois palmos, catorze, três, pela mesma ordem e partes, e quando um dia se acabarem palmos e pés por se terem achado metros na terra, irão outros homens a tirar outras medidas e encontrarão sete metros, três metros, sessenta e quatro centímetros, tome nota, e porque também os pesos velhos levaram o caminho das medidas velhas, em vez de duas mil cento e doze arrobas, diremos que o peso da pedra da varanda da casa a que se chamará de Benedictione é de trinta e um mil e vinte e um quilos, trinta e uma toneladas em números redondos, senhoras e senhores visitantes, e agora passemos à sala seguinte, que ainda temos muito que andar.

Entretanto, durante todo o dia, os homens cavaram a terra. Vieram os boieiros dar uma ajuda, Baltasar Sete-Sóis tornou ao carro de mão, sem desdouro, é bom que não esqueçamos os trabalhos pesados, ninguém está livre de voltar a precisar deles, imaginemos que amanhã se perde o sentido da alavanca, não haverá mais remédio que meter o ombro e o braço, até que ressuscite Arquimedes e diga, Dêem-me um ponto de apoio para vocês levantarem o mundo. Quando o sol se pôs, estava aberta a avenida, numa extensão de cem passos, até à estrada calcetada, que mais folgadamente fora andada durante a manhã. Cearam os homens e foram dormir, espalhados por estes campos, debaixo das árvores, ao abrigo dos blocos de pedra, alvíssimos, que se tornaram fulgurantes quando a lua nasceu. A noite estava quente. Se algumas fogueiras ardiam, era apenas para companhia dos homens. Os bois ruminavam, deixando coar o fio de baba que devolvia à terra os sucos da terra, aquela aonde tudo volta, até as pedras com tanto trabalho alçadas, os homens que as erguem, as alavancas que as suportam, os calços que as amparam, nem os senhores imaginam a soma de trabalho que está neste convento.

Escuro ainda, tocou a corneta. Os homens levantaram-se, enrolaram as mantas, os boieiros foram jungir os bois, e da casa onde dormira desceu o vedor à pedreira com os seus ajudantes, mais os olheiros, para saberem estes que ordens haveriam de dar e para quê. Descarregaram-se dos carros as cordas e os calabres, dispuseram-se as juntas de bois pelo caminho acima, em dois cordões. Mas ainda faltavavir a nau da Índia. Era uma plataforma de grossos madeiros assente sobre seis rodas maciças, de eixos rígidos, no tamanho um pouco maior que a laje que teria de transportar. Vinha puxada a braço, em grande alarido de quem fazia a força e de quem a mandava fazer, um homem distraiu-se, deixou ficar um pé debaixo da roda, ouviu-se um berro, um grito de dor insuportada, a viagem começa mal. Baltasar estava perto com os seus bois, viu o sangue esguichar, e num repente achou-se em Jerez de los Caballeros, quinze anos atrás, como o tempo passa. Com ele costumam passar as dores, mas para passarem estas é cedo ainda, o homem já lá vai, gritando sempre, levam-no num esquife para Morelena onde há uma enfermaria, talvez escape com menos um bocado da perna, merda. Também em Mórelena dormiu Baltasar uma noite com Blimunda, é assim o mundo, junta no mesmo lugar o grande gosto e a grande dor, o bom cheiro dos humores sadios e o podre fétido da ferida gangrenada, para inventar céu e inferno não seria preciso mais que conhecer o corpo humano. Já não se vê sinal do sangue que ficou no chão, passaram as rodas do carro, pisaram os pés dos homens, as patas patudas dos bois, a terra sugou e confundiu o resto, só um calhau que foi arredado para o lado ainda conserva alguma cor.

A plataforma desceu muito devagar, amparada no declive pelos homens que prudentemente iam folgando as cordas, até finalmente entestar com a parede de terra que os pedreiros tinham alisado. Agora sim, se veriam ciência e arte. Com grandes pedras foram calçadas as rodas todas do carro, para que não se afastasse da parede quando a laje fosse puxada de cima dos troncos e descaísse e deslizasse sobre a plataforma. Toda a superfície desta foi coberta de barro para reduzir o atrito da pedra contra a madeira, e enfim começaram a ser passados os calabres, de modo a abraçarem a laje no sentido do comprimento, um de cada lado, por fora dos troncos, outro que a cingia em toda a sua largura, assim se formando seis pontas que na dianteira do carro se juntaram e ataram a um rijo madeiro reforçado de cintas de ferro, donde nasciam dois outros calabres, mais grossos, que eram os tirantes principais, sucessivamente acrescentados com ramos de menor grossura, a que deviam puxar os bois. Não é este, aqui, o caso de levar menos tempo a fazer do que a explicar, pelo contrário, o sol já nasceu, já se levantou por cima daqueles montes que além vemos, e ainda agora estão a ser reforçados os últimos nós, deitou-se água para cima do barro que entretanto secara, mas primeiro é preciso dispor as juntas de bois a boa distância, tensas todas as cordas o bastante para que não se perca a força de arrastamento por causa dos desencontros, puxo eu, puxas tu, tanto mais que, afinal, não há espaço que chegue para as duzentas juntas e a tracção tem de ser exercida a direito, emfrente e para cima, É um bico-de-obra, disse o José Pequeno, que era o primeiro do cordão da esquerda, se de Baltasar veio alguma opinião, não chegou a ser ouvida porque está mais longe. Lá no alto, o mestre da manobra vai dar a voz, um grito que começa arrastado e depois acaba secamente como um tiro de pólvora, sem ecos, Êeeeeeüi-ô, se os bois puxarem mais de um lado que do outro, estamosmal aviados, Êeeeeeüi-ô, agora saiu o grito, duzentos bois agitaram-se, puxaram, primeiro de esticão, depois com uma força contínua, logo interrompida, porque há os que escorregam, outros inclinam para fora ou para dentro, questão de ciência do boieiro, as cordas roçam asperamente os costados, enfim, entre clamores, insultos, incitamentos, acertou-se a tracção por alguns segundos e a laje avançou um palmo, trilhando debaixo de si os troncos. O primeiro puxão foi certo, o segundo errou, o terceiro teve de ajustar os dois, agora só puxam estes, aqueles aguentam, finalmente a laje começou a avançar sobre a plataforma, ainda mantida acima dela pela altura dos troncos, até que se desequilibrou, desceu bruscamente e caiu para. o carro, tumba, a aresta rugosa mordeu os madeiros e aí se imobilizou a pedra, ter ou não ter estendido ali o barro seria o mesmo que nada, se não aparecessem outras providências. Subiram homens à plataforma com longas e fortíssimas alavancas, esforçadamente soergueram a pedra ainda instável, e outros homens introduziram-lhe debaixo calços com o rasto de ferro, que puderam deslizar sobre o barro,agora vai ser fácil, Êeeeeeüi-ô, Êeeeeeüi-ô, Êeeeeeüi-ôô, todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no alto da subida, não há povo que puxe melhor que este. Já os calabres laterais foram largados, toda a tracção se exerce naquele que abraça a pedra no sentido da largura, é quanto basta, parece a laje leve, tão facilmente escorrega sobre a plataforma, só quando enfim descai por inteiro se ouve retumbar o peso, todo o arcaboiço do carro range, se não fosse estar o chão naturalmente calcetado, calhaus sobre calhaus, enterrar-se-iam as rodas até aos cubos. Foram retirados os grandes blocos de mármore que serviam de calços, já não há perigo que o carro fuja. Agora avançam os carpinteiros, com maços, trados e formões abrem, a espaços, na espessa plataforma, ao rente da laje, janelas rectangulares onde vão encaixando e batendo cunhas, depois fixam-nas com pregos grossos, é um trabalho que leva o seu tempo, o resto do pessoal está por aí, descansando pelas sombras, os bois ruminam e sacodem os moscardos, o calor é muito. Tocara para o jantar quando os carpinteiros acabaram a tarefa, e o vedor vem dar ordens para se atar a laje ao carro, é operação que está a cargo dos soldados, talvez por causa da disciplina e da responsabilidade, talvez por estarem habituados com a artilharia, em menos de meia hora a pedra fica solidamente atada, cordas e mais cordas, como se fizesse corpo com a plataforma, aonde uma for, vai a outra. Não há nada a emendar, é obra asseada. Visto de largo, o carro é um bicho de carapaça, um cágado atarracado, sobre pernas curtas, e como está sujo de barro, parece ter acabado de sair da terra funda, é ele próprio terra que prolonga a elevação a que ainda está encostado. Os homens e os bois já estão no seu jantar, depois será a hora da sesta, se a vida não tivesse tão boas coisas como comer e descansar, não valia a pena construir conventos. Diz-se que o mal não atura, embora, pela fadiga que traz consigo, pareça às vezes que sim, mas o que nenhuma dúvida tem, é não durar o bem sempre. Está um homem em suavíssimo torpor, ouvindo as cigarras, não foi a comida fartura, mas um estômago avisado sabe encontrar muito no pouco, e além disso temos o sol, que também alimenta, eis senão quando ressoa a corneta, se estivéssemos no vale de Josafá mandávamos acordar os mortos, assim não há outro remédio que levantarem-se os vivos. Recolhem-se aos carros os petrechos diversos, que de tudo é preciso dar contas no inventário, verificam-se os nós, faz-se a ligação dos calabres ao carro, e, à nova voz de Eeeeeeüi-ô, os bois, em desencontrada agitação, começam a puxar, fincam os cascos no solo irregular da pedreira, as aguilhadas picam os cachaços, e o carro, como se estivesse a ser arrancado do forno da terra, move-se devagar, as rodas trituram os fragmentos de mármore que juncam o chão, pedra como esta de hoje é que nunca daqui saiu. O vedor e certos seus auxiliares graduados já montaram nas mulas, outros deles farão o caminho a pé por necessidade da obrigação, são subalternos, mas todos têm uma parte de ciência e outra de mando, a ciência por causa do mando, o mando por causa da ciência, não é o caso deste arraial de homens e bois, que são mandados só, uns e outros, e o melhor é sempre o que mais força for capaz de fazer. Aos homens pede-se, por acrescentamento, algum jeito, não puxar ao contrário, meter a tempo o calço à roda, dizer as palavras que estimulam os animais, saber juntar a força à força e multiplicar ambas, o que, enfim, não é despecienda ciência. O carro já subiu até meio da rampa, cinquenta passos, se tanto, e continua, oscilando duramente nos ressaltos das pedras, que isto não é coche de alteza nem sege de eclesiástico, esses molejam como Deus manda. Aqui os eixos são rígidos, as rodas trambolhos, não luzem arreios nas lombeiras dos bois nem os homens apuram librés nos encontros, é uma tropa-fandanga que não irá aos triunfais cortejos nem seria admitida na procissão do Corpus Christi. Uma coisa é transportar a pedra para a varanda donde o patriarca, daqui por uns anos, nos há-de abençoar a todos, outra e melhor seria sermos nós a bênção e o abençoador, assim como semear pão e comê-lo.

Vai ser uma grande jornada. Daqui a Mafra, mesmo tendo el-rei mandado consertar as calçadas, o caminho é custoso, sempre a subir e a descer, ora ladeando os vales, ora empinando-se para as alturas, ora mergulhando a fundo, quem fez as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, se as errou, foi na falta, não que estejam de sobra. Os moradores de Pêro Pinheiro desceram à estrada para admirar o aparato, nunca se viu tanta junta de bois desde que começou a obra, nunca se ouviu tão alto vozear, e há quem comece a ter saudades de ver partir aquela tão formosa pedra, criada aqui nesta nossa terra de Pêro Pinheiro, oxalá não se parta pelo caminho, para isso não valia a pena ter nascido. O vedor já seguiu à frente, é como um general de batalha com o seu estadomaior, os seus ajudantes-de-campo, os seus ordenanças, vão reconhecer o terreno, medir a curva, calcular o declive, prever o acampamento. Depois regressam ao encontro do carro, quanto andou, se de Pêro Pinheiro saiu, em Pêro Pinheiro ainda está. Neste primeiro dia, que foi só a tarde, não avançaram mais que quinhentos passos. A estrada era estreita, atropelavam-se nela as juntas de bois, um cordão de cada lado, sem espaço de manobra, metade da força de tracção perdia-se por não haver igualdadeno arranque, as ordens ouviam-se mal. É lá estava o peso assombroso da pedra. Quando o carro tinha de parar, ou porque uma roda se metesse numa cova do caminho, ou porque o esforço compassado dos bois se medisse de repente com uma subida e obrigasse a uma pausa, parecia que já não seria possível movê-lo mais. E quando, finalmente, avançava, todos os madeiros rangiam como se fossem libertar-se das cintas e dos grampos de ferro. E esta ainda era a parte mais fácil da viagem.

Nessa noite, os bois foram descangados, mas deixaram-nos na estrada, não os reuniram em malhada. A lua nasceu mais tarde, muitos homens já dormiam, com a cabeça em cima das botas, os que as tinham. A alguns chamava-os a luz fantasmal, ficavam a olhar o astro, e nele viam distintamente o vulto do homem que foi cortar silvas em dia de domingo e a quem o Senhor castigou obrigando-o a carregar por toda a eternidade o molho que juntara antes que o fulminasse a sentença, assim ficando, em desterro lunar, a servir de emblema visível da justiça divina, para escarmento de irreverentes. Baltasar fora à procura de José Pequeno, os dois encontraram Francisco Marques, e, com mais alguns, arrumaram-se em redor duma fogueira, que a noite arrefecia. Mais tarde chegou-se-lhes Manuel Milho que contou uma história, Era uma vez uma rainha que vivia com o seu real marido em palácio, mais os filhos, que eram um infante e uma infanta assim deste tamanho, e então diz-se que o rei gostava muito de ser rei, mas a rainha é que não sabia se gostava, ou não, de ser o que era, porque nunca lhe tinham ensinado a ser outra coisa, por isso não podia escolher e dizer, gosto mais de ser rainha, ainda se ela fosse como o rei, que esse gostava de ser o que era porque outra coisa também lhe não tinham ensinado, mas a rainha era diferente, se fosse igual não haveria história, então aconteceu que lá no reino havia um ermitão que correra muitas aventuras e, depois de levar anos e anos a corrê-las, foi meter-se naquela cova, ele vivia numa cova do monte, não sei se já tinha dito, e não era ermitão desses de reza e penitência, chamavam-lhe ermitão porque vivia sozinho, a comida dele era o que apanhava, se lhe davam outra não recusava, mas pedir nunca pediu, ora uma vez a rainha foi passear ao monte com o seu séquito e disse à aia mais velha que queria falar ao ermitão para lhe fazer uma pergunta, e a aia respondeu, saiba vossa majestade que este ermitão não é de igreja, é homem como os outros, a diferença é que vive sozinho num buraco, isto disse a aia, mas nós já sabíamos, e a rainha respondeu, a pergunta que quero fazer não é de religião; e então foram andando e quando chegaram à boca da cova um pajem gritou para dentro e o ermitão apareceu, era um homem já avançado na idade, mas robusto, assim como uma árvore de encruzilhada, e quando apareceu perguntou, quem me chama, e o pajem disse, sua majestade a rainha, e pronto, por hoje acabou-se a história, vamos dormir. Protestaram os outros, queriam saber o resto do conto da rainha e do ermitão, porém Manuel Milho não se deixou convencer, que amanhã também era dia, tiveram de conformar-se, foi cada qual ao seu sono, cada qual pensando, antes que ele chegasse, consoante as suas conhecidas inclinações, José Pequeno que o rei se calhar já não se atrevia com a rainha, mas se o ermitão é velho, como é que vai ser, Baltasar que a rainha é Blimunda e ele próprio o ermitão, nisto se confirma por ser a história de homem e mulher, embora as diferenças sejam tantas, Francisco Marques que como esta história vai acabar sei eu, em chegando a Cheleiros explico. A lua já acolá vai, não é que pese muito um molho de silvas, o pior são os espinhos, mal parece vingar-se Cristo da coroa que lhe puseram.

O dia seguinte foi de grandes aflições. A estrada alargava-se um pouco, podiam portanto as juntas de bois manobrar mais à vontade, sem atropelos, mas o carro, pelo seu tamanho, pela rigidez dos eixos, e também pela carga que suportava, virava dificultosamente nas curvas, por isso tinham de arrastá-lo lateralmente, primeiro à frente, depois atrás, as rodas resistiam, empeçavam nas pedras, que era preciso desfazer a malho, e ainda assim não se queixavam os homens se havia espaço para desatrelar e tornar a atrelar os bois suficientes para deslocar o carro, de modo a entestálo novamente com o caminho. As subidas, se não havia curvas, resolvia-as a força bruta, tudo a puxar, os bois esticando as cabeças para diante, quase a tocarem com os focinhos os quartos traseiros dos da frente, resvalando às vezes na bosta e na urina que faziam regueiros em valetas abertas aos poucos pelo calcar das patas e pelo trilhar das rodas. A cada duas juntas de bois ia um homem, viam-se-lhes as cabeças e as aguilhadas até longe, entre as armações dos animais, por sobre os dorsos fulvos, só do José Pequeno se não distinguia o vulto, nem admira, estaria falando à orelha dos seus bois, manos na altura, Puxem, boizinhos, puxem.

Mas a aflição tornava-se agonia se o caminho era a descer. A todo o momento o carro se escapava, era preciso meter-lhe logo os calços, desatrelar as juntas quase todas, três ou quatro de cada lado chegavam para mover a pedra, mas então tinham os homens de pegar às cordas da traseira da plataforma, centenas de homens como formigas, de pés fincados no chão, corpos inclinados para trás, músculos retensos, sustentando o carro que ameaçava arrastá-los para o vale, lançá-los para fora da curva como uma chicotada. Os bois, mais acima ou mais abaixo, ruminavam sossegadamente, olhando a agitação, as correrias dos homens que davam ordens, o vedor a cavalo na mula, os rostos congestionados e alagados de suor, e eles ali, quietos, à espera da sua vez, tão tranquilos que nem a aguilhada se movia, apoiada contra o jugo. Alguém teve a ideia de atrelar bois à parte de trás da plataforma, mas tiveram de desistir porque o boi não compreende uma aritmética de esforço que venha a resultar em dois passos em frente e três à retaguarda. O boi, ou vence a rampa e faz subir o que deveria descer, ou é arrastado sem resistência e chega esfacelado onde deveria poder repousar.

Neste dia, desde o nascer do sol até ao fim da tarde, fizeram uns mil e quinhentos passos, menos de meia légua das nossas, ou, se quisermos julgar por comparação, o equivalente a duzentas vezes o comprimento da laje. Tantas horas de esforço para tão pouco andar, tanto suor, tanto medo, e aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar parado, imóvel quando deveria mexer-se, amaldiçoado sejas tu, mais quem da terra te mandou tirar e a nós arrastar por estes ermos. Os homens deitam-se no chão, sem forças, ficam arquejando de barriga para cima, olhando o céu que devagar vai escurecendo, primeiramente de um modo que parece estar o dia a nascer e não a chegar ao fim, depois tornando-se transparente à medida que a luz vai a diminuir, e de repente onde havia um cristal surge uma espessura profunda e aveludada, é a noite. A lua, hoje, virá muito mais tarde, já minguante, todo o acampamento estará a dormir. Come-se à luz das fogueiras, e a terra está fazendo concorrência ao céu, onde lá há estrelas, aqui estão lumes, porventura ao redor delas, no princípio do tempo, se teriam também sentado os homens que arrastaram as pedras com que se fez a abóbada celeste, quem sabe se teriam estes mesmos rostos fatigados, estas barbas crescidas, estas grossas e calosas mãos, sujas, as unhas negras de luto, como é costume dizermos, este intenso suor. Então Baltasar pediu, Conta lá, Manuel Milho, que foi que a rainha perguntou quando o ermitão apareceu à boca da cova, e José Pequeno deitou-se a adivinhar, Se calhar mandou embora as aias e os pajens, este José Pequeno é malicioso, enfim, deixemo-lo entregue à penitência que o confessor lhe mandará fazer, se for o confitente homem para boa e recta confissão, do que convém duvidar, e demos atenção a Manuel Milho que está dizendo, Quando o ermitão apareceu à boca da cova, a rainha avançou três passos e perguntou, se uma mulher é rainha, se um homem é rei, que hão-de fazer para se sentirem mulher e homem, e não só rainha e rei, isto foi o que ela perguntou, e o ermitão respondeu com outra pergunta, se um homem é ermitão, que haverá de fazer para sentir-se homem e não só ermitão, e a rainha pensou um bocado e disse, deixará a rainha de ser rainha, o rei não será rei, o ermitão sairá do ermitério, isso é o que terão de fazer, mas agora farei eu outra pergunta, que mulher e homem serão esses que não são rainha nem ermitão, e só mulher e homem, que é ser homem e mulher não sendo estes ermitão e rainha, que é ser não sendo o que se é, e o ermitão respondeu, ninguém pode ser não sendo, homem e mulher não existem, só existe o que forem e a rebelião contra o que são, e a rainha declarou, eu rebelo-me contra o que sou, diz-me agora tu se te rebelas contra o que és, e ele respondeu, ser ermitão é o contrário de ser, pensam os que vivem no mundo, mas ainda é ser alguma coisa, e ela, então onde está o remédio, e ele, se é mulher que queres ser, deixa de ser rainha, o resto só saberás depois, e ela, se queres ser homem, por que continuas ermitão, e ele, porque o que mais se teme é ser homem, e ela, sabes tu que é ser homem e mulher, e ele, ninguém sabe, com esta resposta se retirou a rainha, levando atrás de si o séquito que murmurava, amanhã direi o resto. Bem fez Manuel Milho em calar-se, porque dois dos ouvintes, José Pequeno e Francisco Marques, já ressonavam, enrolados nas mantas. As fogueiras iam-se apagando. Baltasar pôs-se a olhar para Manuel Milho insistentemente, Essa história não tem pés nem cabeça, não se parece nada com as histórias que se ouvem contar, a da princesa que guardava patos, a da menina que tinha uma estrela na testa, a do lenhador que achou uma donzela no bosque, a do touro azul, a do diabo do Alfusqueiro, a da bichade-sete-cabeças, e Manuel Milho disse, Se no mundo houvesse um gigante tão grande que chegasse ao céu, dirias que os pés eram montanhas e a cabeça a estrela-da-manhã, para homem que declarou ter voado e ser igual a Deus, és muito desconfiado. Com esta censura ficou Baltasar emudecido, depois deu as boasnoites, virou-se de costas para o lume e em pouco tempo adormeceu. Manuel Milho ainda ficou acordado, a pensar no modo melhor de sair da história em que se tinha metido, se o ermitão se faria rei, se a rainha se faria ermitoa, porque será que os contos têm de acabar sempre assim.

Tão grande fora o sofrimento durante este arrastado dia, que todos diziam, Amanhã não pode ser pior, e no entanto sabiam que iria ser pior mil vezes. Lembravam-se do caminho que descia para o vale de Cheleiros, aquelas apertadas curvas, aqueles declives espantosos, aquelas empinadas encostas que caíam quase a pique sobre a estrada, Como será que vamos passar, murmuravam para si próprios. Em todo aquele Verão não houve dia mais quente, a terra parecia uma braseira, o sol uma espora cravada nas costas. Os aguadeiros corriam a longa fila, levando quartões de água ao ombro, iam buscá-la aos poços que por ali havia, nas terras baixas, às vezes muito afastados, e tinham de trepar monte acima por carreiros de pé posto, para encher as dornas, não podem as galés ser piores do que isto. Perto da hora de jantar chegaram a um alto donde se via Cheleiros, no fundo do vale. Com isto mesmo é que Francisco Marques vinha contando, quer conseguissem descer quer não, esta noite em companhia da mulher é que ninguém lha tiraria. Levando consigo os ajudantes, o vedor desceu até ao ribeiro que lá em baixo passava, foi de caminho assinalando os lugares mais perigosos, os sítios onde o carro deveria ser encostado para garantir os repousos e maior segurança da pedra, e finalmente tomou a decisão de mandar desatrelar os bois e conduzi-los para um espaço desafogado, depois da terceira curva, bastante afastados para não empatarem a. manobra, suficientemente próximos para serem trazidos sem maior demora se a mesma manobra o pedisse. Assim, a plataforma ia descer a pulso. Não havia outra maneira. Enquanto estavam a ser levadas as juntas, os homens, espalhados pela crista do monte, à torreira do sol, olhavam o vale sossegado, as hortas, as sombras frescas, as casas que pareciam irreais, tão aguda era a impressão de calma que irradiava delas. Pensariam isso ou não, talvez apenas esta simplicidade, Se me apanho lá em baixo, ainda vou julgar que é mentira.

Como foi, digam-no outros que mais saibam. Seiscentos homens agarrados desesperadamente aos doze calabres que tinham sido fixados na traseira da plataforma, seiscentos homens que sentiam, com o tempo e o esforço, ir-se-lhes aos poucos a tesura dos músculos, seiscentos homens que eram seiscentos medos de ser, agora sim, ontem aquilo foi uma brincadeira de rapazes, e a história de Manuel Milho uma fantasia, que é realmente um homem quando só for a força que tiver, quando mais não for que o medo de que lhe não chegue essa força para reter o monstro que implacavelmente o arrasta, e tudo por causa de uma pedra que não precisaria ser tão grande, com três ou dez mais pequenas se faria do mesmo modo a varanda, apenas não teríamos o orgulho de poderdizer a sua majestade, É só uma pedra, e aos visitantes, antes de passarem à outra sala. É uma pedra só, por via destes e outros tolos orgulhos é que se vai disseminando o ludíbrio geral, com suas formas nacionais e particulares, como esta de afirmar nos compêndios e histórias Deve-se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha, e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz.

Descesse a estrada a direito para o vale e tudo se reduziria a um jogo alternado, acaso divertido jogo, de libertação e retenção deste papagaio de pedra, dar-lhe a guita e enrolá-la, deixá-lo deslizar enquanto a aceleração não se tornasse indominável, travá-lo a tempo para que não se precipitasse no vale, de caminho esfacelando os homens que não tivessem conseguido libertar-se, eles, papagaios destas e doutras guitas. Mas há o pesadelo das curvas. Enquanto o caminho era plano, foram os bois utilizados consoante se explicou, puxando alguns lateralmente a dianteira do carro até conseguir alinhá-lo com a recta, breve ou extensa, em que a curva se prolongava. Era apenas um trabalho de paciência, que de tão repetido se tornara rotineiro, desatrelar, atrelar, desatrelar, atrelar, dos bois era a maior fadiga, os homens pouco mais faziam que gritar. Agora gritariam estes de desespero diante da diabólica combinação de curva e declive que vão ter de vencer muitas vezes, mas gritar, em tal caso, seria perder o fôlego, e ele já não é muito. Estude-se antes o jeito, deixemos os gritos para quando puderem ser de alívio. O carro vai descendo até à entrada da curva, tão encostado à parte interior dela quanto possível, e aí é calçada a roda da frente desse mesmo lado, porém, não há-de o calço ser tão sólido que por si só trave o carro inteiro, nem tão frágil que se deixe esmagar pelo peso, se achar que não tem o caso supremas dificuldades é porque não levou esta pedra de Pêro Pinheiro a Mafra e apenas assistiu sentado, ou se limita a olhar de longe, do lugar e do tempo desta página. Assim perigosamente travado, o carro pode ter o demoníaco capricho de ficar tão quieto como se tivesse todas as rodas cravadas no chão. É o mais comum. Só em raríssimas condições conjuntas de inclinação da curva para o lado de fora, mínimo atrito do terreno, acentuação conveniente do declive, tudo na boa conta, só assim a plataforma cederá sem dificuldade ao impulso lateral que será dado na sua parte de trás, ou, milagre ainda maior, por si própria rodará sobre o seu único ponto de apoio, lá à frente. A regra é outra, a regra é outra vez a enorme força que vai ser preciso aplicar nos sítios óptimos, pelo tempo rigorosamente necessário, para que o movimento não seja demasiado amplo, e portanto fatal, ou, a Deus graças pelo mal menor, exigindo novo e penoso esforço em sentido contrário. Aplicam-se as alavancas às quatro rodas posteriores, tenta-se deslocar o carro, meio palmo que seja, para o lado exterior da curva, os homens que trabalham às cordas ajudam puxando na mesma direcção, é uma balbúrdia, com os das alavancas de fora entre uma floresta de calabres esticados e tensos como fios de lâmina, com os das cordas às vezes dispostos pela encosta abaixo, não raro escorregando e rolando, por enquanto sem maior mal. Cedeu finalmente o carro, deslocou-se um ou dois palmos, mas, lá à frente, pelo tempo que esta manobra durou, a roda do lado de fora foi sucessivamente calçada e descalçada, para prevenir o perigo de se desmandar a plataforma no meio de um destes movimentos, naquele segundo em que está como suspensa e desamparada, e sem homens suficientes para segurá-la, pois os mais deles, com todas estas confusas operações, nem espaço têm para se mover. Em cima deste valado está o diabo assistindo, pasmando da sua própria inocência e misericórdia por nunca ter imaginado suplício assim para coroação dos castigos do seu inferno.

Um dos homens que trabalham aos calços é Francisco Marques. Provou já a sua destreza, uma curva má duas péssimas, três piores que todas, quatro só se fôssemos doidos, e por cada uma delas vinte movimentos, tem consciência de que está a fazer bem o trabalho, por acaso agora nem pensa na mulher, a cada coisa seu tempo, toda a atenção se fixa na roda que vai começar a mover-se, que será preciso travar, não tão cedo que torne inútil o esforço que lá atrás estão fazendo os companheiros, não tão tarde que ganhe o carro velocidade e se escape ao calço. Como agora aconteceu. Distraiu-se talvez Francisco Marques, ou enxugou com o antebraço o suor da testa, ou olhou cá do alto a sua vila de Cheleiros, enfim se lembrando da mulher, fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro, esmagado, passou-lhe a primeira roda por cima, mais de duas mil arrobas só a pedra, se ainda estamos lembrados. Diz-se que uma desgraça nunca vem só, e costuma ser verdade, diga-o qualquer de nós, porém, desta vez, o mandador delas achou que era bastante ter morto um homem. O carro, que bem poderia ter-se precipitado, aos cambulhões, pela encosta abaixo, parou logo adiante, presa a roda numa cova da calçada, nem sempre as salvações estão onde deveriam estar.

Tiraram Francisco Marques de debaixo do carro. A roda passara-lhe sobre o ventre, feito numa pasta de vísceras e ossos, por um pouco se lhe separavam as pernas do tronco, falamos da sua perna esquerda e da sua perna direita, que da outra, a tal do meio, a inquieta, aquela por amor da qual fez Francisco Marques tantas caminhadas, dessa não há sinal, nem vestígio, nem um simples farrapito. Trouxeram um esquife, puseram-lhe o corpo em cima, enrolado numa manta que ficou logo empapada em sangue, dois homens pegaram aos varais, outros dois para revezamento os acompanharam, os quatro para dizer à viúva, Trazemos aqui o seu homem, vão declará-lo a esta mulher que assomou agora ao postigo, que olha o monte onde está seu marido, e diz aos filhos, Vosso pai esta noite dorme em casa.

Quando a pedra chegou ao fundo do vale, as juntas de bois tornaram a ser atreladas. Porventura o mandador das desgraças se arrependeu da parcimónia primeira, foi o caso que a plataforma desandou sobre um afloramento de rocha e entalou dois animais contra a encosta a pique, partindo-lhes as pernas. Foi preciso acabar com eles, à machadada, e quando a notícia correu vieram os moradores de Cheleiros ao bodo, ali mesmo foram os bois esfolados e desmanchados, corria o sangue pela estrada, em regueiros, de nada serviram os soldados e as pranchadas que deram, enquanto houve carne agarrada aos ossos esteve o carro parado. Entretanto, anoiteceu. Naquele lugar se armou o acampamento, uns ainda caminho acima, outros espalhados pela margem da ribeira. O vedor e alguns se auxiliares foram dormir debaixo de telha, os mais forma do costume, enrolados nas mantas, extenuados da grande descida ao centro da terra, espantados ainda estarem vivos, uns que outros resistindo ao sono, com medo de ser isso a morte. Os mais chegados de amizade a Francisco Marques foram velá-lo, Baltasar, José Pequeno, Manuel Milho, uns tantos daqueles, Brás, Firmino, Isidro, Onofre, Sebastião, Tadeu, e outro de quem não se chegou a falar, Damião. Entravam, olhavam o morto, como é possível morrer homem de tão violenta morte e tão sereno estar, mais do que se dormisse, sem pesadelos nem apoquentações, depois murmuravam uma oração, aquela mulher ali é que é a viúva, não sabemos que nome tem, nem adiantaria nada à história ir lá perguntar-lhe, se alguma coisa adiantou escrever Damião, só por escrever. Amanhã, antes de nascer o sol, recomeçará a pedra a sua viagem, em Cheleiros ficou um homem para enterrar, fica também a carne de dois bois para comer.

Não se nota a falta deles. O carro vai ladeira acima, tão devagar como tem vindo, se Deus houvesse piedade dos homens teria feito um mundo rasinho como a palma da mão, levariam as pedras menos tempo a chegar. Esta já vai no seu quinto dia, agora por melhor caminho, quando estiver vencida a encosta, mas sempre em desassossego de espírito, que do corpo não vale a pena falar, doem todos os músculos dos homens, mas quem se queixa, se para isto mesmo lhes foram dados. A boiada não argumenta nem se lastima, apenas se nega, faz que puxa e não puxa, o remédio é deixá-los descansar um migalho, chegar-lhes ao focinho um manípulo de palha, daí a pouco estão como se folgassem desde ontem, ondulam as garupas alceiras pelo caminho fora, é um gosto vê-los. Enquanto não aparece outra descida, outra subida. Então agrupam-se as hostes, repartem-se os esforços, tantos para aqui,tantos para aTém, puxem lá, Êeeeeeüi-ô, berra a voz, taratatá-tá, sopra a corneta, verdadeiramente isto é um campo de batalha, nem lhe faltam os seus mortos e os seus feridos, não sendo todos da mesma qualidade, comodiríamos, quatro cabeças, que é boa maneira de contar.

À tarde caiu um aguaceiro, e foi bem-vindo. Tornou a chover já quando se fechara a noite, mas ninguém praguejou. Esta é a melhor sabedoria, não ligar importância ao que o céu manda, chuva ou sol, salvo se passa a mais, e mesmo assim, que não bastou um dilúvio para afogar todos os homens, nem a seca é alguma vez tão grande que não se salve um fio de erva ou a esperança de o encontrar. Choveu assim uma hora, se tanto, depois as nuvens afastaram-se, até as nuvens se agastam de não lhes ligarem importância. Alargaram-se as fogueiras, homem houve que se despiu em pelote para secar as roupas, por pouco se diria ser este um ajuntamento pagão, quando sabemos que é a mais católica das acções, levar a pedra a Garcia, a carta a Mafra, o esforço avante, a fé a quem a pudesse merecer, condição sobre a qual infinitamente discutiríamos se não fosse estar Manuel Milho a contar a sua história, falta aqui um ouvinte, só eu, e tu, e tu, damos pela ausência, outros nem sabiam quem fosse Francisco Marques, alguns o viram morto, a maior parte nem isso, não se vá julgar que desfilaram seiscentos homens diante do cadáver em última e comovida homenagem, são coisas que só acontecem nas epopeias, vamos nós então à história, Um dia a rainha sumiu-se do palácio, onde vivia com o marido rei e os filhos infantes, e, como tinham corrido zunzuns de que a conversa na cova não fora como a têm rainhas e ermitões costumadamente, antes parecera passo de dança e cauda de pavão, entrou o rei em furor ciumento e foi a correr à cova, já se imaginando enxovalhado na sua honra, que os reis são assim, têm uma honra maior que a dos outros homens, nota-se logo pela coroa, e quando chegou não viu ermitão nem rainha, mas isso ainda o deixou mais enfurecido porque seria certo sinal de terem fugido os dois, posto o que mandou o exército à procura dos fugitivos, por todo o reino, e enquanto eles procuram vamos nós dormir, que são horas. José Pequeno protestou, Nunca se ouviu história assim, em bocadinhos, e Manuel Milho emendou, Cada dia é um bocado de história, ninguém a pode contar toda, e Baltasar ia pensando, Quem havia de gostar deste Manuel Milho era o padre Bartolomeu Lourenço.

Ao outro dia, que foi domingo, houve missa e sermão. Para ser ouvido com mais proveito, pregou o frade de cima do carro, tão airoso como se estivesse de púlpito, e não se dava conta o imprudente de que cometia a maior das profanações, com as sandálias ofendendo esta pedra de ara, que o é por lhe ter sido sacrificado sangue inocente, o sangue do homem de Cheleiros que tinha filhos e mulher, o que ficou sem o pé em Pêro Pinheiro, ainda o préstito não saíra, e os bois, não devemos esquecer os bois, pelo menos não vão esquecê-los tão cedo os moradores que foram à carniça e que hoje mesmo, domingo, fazem refeição melhorada. Pregou o frade e disse, como dizem todos, Amados filhos, dos altos céus nos vê Nossa Senhora e o seu Divino Filho, dos altos céus nos contempla também o nosso padre Santo António, por amor de quem levamos esta pedra à vila de Mafra, é certo que pesada, mas muito mais pesados são os vossos pecados, e contudo andais com eles no coração como se vos não carregassem, por isso deveis tomar esta transportação como penitência, e também amorosa oferta, singular penitência, oferta estranha, pois não só vo-las pagam com o salário do contrato, como também vo-las remunerará a indulgência do céu, porque em verdade vos digo que levar esta pedra a Mafra é obra tão santa como foi a dos antigos cruzados quando partiram a libertar os Santos Lugares, sabei que todos quantos lá morreram gozam hoje da vida eterna, e juntamente com eles, contemplando a face do Senhor, já lá está aquele vosso companheiro que morreu anteontem, precioso sucesso que foi ter sido a sua morte a uma sexta-feira, sem dúvida morreu sem confissão, não houve tempo de chegar-lhe um confessor à cabeceira, já estava morto quando fostes por ele, mas salvou-o ser cruzado desta cruzada, como salvos estão os que em Mafra têm morrido nas enfermarias ou se despenharam das paredes, excepto aqueles irredimíveis pecadores que foram levados por vergonhosas doenças, e é tanta a misericórdia do céu que se abrem as portas do paraíso até àqueles que morrem de facadas, nessas brigas em que sempre andais metidos, nunca se viu gente tão crente e tão desordeira mas vá lá que a obra vai continuando. Deus nos dê a nós paciência, a vós força e a el-rei dinheiro para a levar a termo, que muito necessário é este convento para fortalecimento da ordem e alargado triunfo da fé, ámen. Acabou-se o sermão, baixou o frade à terra, e como era domingo, dia de guarda e santificado, não havia mais que fazer, uns foram confessar-se, outros comungaram, não todos, nem seria bastante a reserva de sagradas partículas, salvo se se desse ali o milagre da multiplicação das hóstias, caso não verificado. Para o fim da tarde armou-se uma zaragata entre cinco cruzados desta cruzada, episódio que passa sem mais desenvolvido relato, não passou de murros e algum sangue do nariz. Tivessem morrido que iam logo direitos ao paraíso. Nessa noite contou Manuel Milho o fim da história. Perguntara-lhe Sete-Sóis se os soldados do rei sempre tinham conseguido apanhar a rainha e o ermitão, e ele respondeu, Não apanharam, correram o reino de ponta a ponta buscaram casa por casa, e não os encontraram, e tendo dito isto, calou-se. Perguntou José Pequeno. E então, é isso história que se ande a contar há quase uma semana, e Manuel Milho respondeu, O ermitão deixou de ser ermitão, a rainha deixou de ser rainha, mas não se averiguou se o ermitão chegou a fazer-se homem e se a rainha chegou a fazer-se mulher, eu por mim acho que não foram capazes, senão tinha-se dado por isso, quando uma coisa dessas um dia acontecer não passará sem dar um grande sinal, mas estes não, foi o caso há tantos anos que já não podem estar vivos, nem um nem outro, e com a morte sempre se acabam as histórias. Baltasar bateu com o gancho de ferro numa pedra solta. José Pequeno esfregou o queixo, áspero da barba, e perguntou, Como é que um boieiro se faz homem, e Manuel Milho respondeu, Não sei. Sete-Sóis atirou o calhau para a fogueira e disse, Talvez voando.

Dormiram ainda outra noite no caminho. Entre Pêro Pinheiro e Mafra gastaram oito dias completos. Quando entraram no terreiro, foi como se estivessem chegando duma guerra perdida, sujos, esfarrapados, sem riquezas. Toda a gente se admirava com o tamanho desmedido da pedra, Tão grande. Mas Baltasar murmurou, olhando a basílica, Tão pequena.


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