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Memorial do Convento José Saramago

Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solidão, tem aos seus pés o mar novo e as mortas eras, o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o infante D. Henrique, consoante o louvará um poeta por ora ainda não nascido, lá tem cada um as suas simpatias, mas, se é de globo mundo que se trata e de império e rendimentos que impérios dão, faz o infante D. Henrique fraca figura comparado com este D. João, quinto já se sabe de seu nome na tabela dos reis, sentado numa cadeira de braços de pau-santo, para mais comodamente estar e assim com outro sossego atender ao guarda-livros que vai escriturando no rol os bens e as riquezas, de Macau as sedas, os estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pimenta, o cobre, o âmbar cinzento, o ouro, de Goa os diamantes brutos, os rubis, as pérolas, a canela, mais pimenta, os panos de algodão, o salitre, de Diu os tapetes, os móveis tauxiados, as colchas bordadas, de Melinde o marfim, de Moçambique os negros, o ouro, de Angola outros negros, mas estes menos bons, o marfim, que esse, sim, é o melhor do lado ocidental daÁfrica, de São Tomé a madeira. A farinha de mandioca, as bananas, os inhames, as galinhas, os carneiros, os cabritos, o indigo, o açúcar, de Cabo Verde alguns negros, a cera, o marfim, os couros, ficando explicado que nem todo o marfim é de elefante, dos Açores e Madeira os panos, o trigo, os licores, os vinhos secos, as aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os frutos, e dos lugares que hão-de vir a ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal, o indigo, a madeira, os couros, o algodão, o cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro, que só deste vem ao reino, ano por ano, o valor de doze a quinze milhões de cruzados, em pó e amoedado, fora o resto, e fora também o que vai ao fundo ou levam os piratas, claro está que este todo não é o rendimento da coroa, rica sim, mas não tanto, porém, tudo somado, de dentro e de fora, entram nas burras de el-rei para cima de dezasseis milhões de cruzados, só o direito de passagem dos rios por onde se vai às Minas Gerais rende trinta mil cruzados, tanto trabalho teve Deus Nosso Senhor a abrir as valas por onde as águas haviam de correr e vem um rei português cobrar portagem gananciosa.

Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há-de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la, sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagámos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias, a troco de embaixadas e presentes, e se desta pobre terra de analfabetos, de rústicos, de toscos artífices não se podem esperar supremas artes e ofícios, encomendem-se à Europa, para o meu convento de Mafra, pagando-se, com o ouro das minhas minas e mais fazendas, os recheios e ornamentos, que deixarão, como dirá o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós, vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados. De Portugal não se requeira mais que pedra, tijolo e lenha para queimar, e homens para a força bruta, ciência pouca. Se o arquitecto é alemão, se italianos são os mestres dos carpinteiros e dos alvenéus e canteiros, se negociantes ingleses, franceses, holandeses e outras reses todos os dias nos vendem e nos compram, está muito certo que venham de Roma, de Veneza, de Milão e de Génova, e de Liège, e da França, e da Holanda, os sinos e os carrilhões, e os candeeiros, as lâmpadas, os castiçais, os tocheiros de bronze, e os cálices, as custódias de prata sobredourada, os sacrários, e as estátuas dos santos de que el-rei é mais devoto, e os paramentos dos altares, os frontais, as dalmáticas, as planetas, os pluviais, os cordões, os dosséis, os pálios, as alvas de peregrinas, as rendas, e três mil pranchas de pau de nogueira para os caixões da sacristia e cadeiral do coro, por ser madeira muito estimada para esse fim por S. Carlos Borromeu, e dos países do Norte navios inteiros carregados de tabuado para os andaimes, telheiros e casas de acomodação, e cordas e amarras para os cabrestantes e roldanas, e do Brasil pranchas de angelim, incontáveis, para as portas e janelas do convento, para o solho das celas, dormitórios, refeitório e mais dependências, incluindo as grades dos espulgadoiros por ser incorrompível madeira, não como este rachante pinho português, que só serve para ferver as panelas e sentar-se nele gente de pouco peso e aliviada de algibeiras. Desde que na vila de Mafra, já lá vão oito anos, foi lançada a primeira pedra da basílica, essa de Pêro Pinheiro graças a Deus, tudo quanto é Europa vira consoladamente a lembrança para nós, para o dinheiro que receberam adiantado, muito mais para o que hão-de cobrar no termo de cada prazo e na obra acabada, ele é os ourives do ouro e da prata, ele é os fundidores dos sinos, ele é os escultores de estátuas e relevos, ele é os tecelões, ele é as rendeiras e bordadeiras, ele é os relojoeiros, ele é os entalhadores, ele é os pintores, ele é os cordoeiros, ele é os serradores e madeireiros, ele é os passamaneiros, ele é os lavrantes do couro, ele é os tapeceiros, ele é os carrilhadores, ele é os armadores de navios, se a vaca que tão dócil se deixa mungir não puder ser nossa, ou enquanto nossa não puder vir a ser, ao menos deixá-la ficar com os portugueses, que em pouco tempo estarão a comprar-nos, fiado, um quartilho de leite para fazerem farófias e papos-de-anjo, Querendo vossa majestade repetir, é só dizer, avisa madre Paula.

Vão as formigas ao mel, ao açúcar derramado, ao maná que cai do céu, são quê, quantas, talvez umas vinte mil, todas para o mesmo lado viradas, como certas aves marinhas que às centenas se reúnem nas praias para adorar o sol, tanto faz que o vento lhes dê de rabo, ao arrepio das penas, o que lhes importa é seguir o olho viajante do céu, e em carreirinhas curtas vão passando à frente umas das outras, até que se acaba a praia ou o sol se esconde, amanhã voltaremos a este mesmo lugar, se não viermos nós, nossos filhos virão. Dos vinte mil, quase todos são homens, as poucas mulheres ficam na periferia do ajuntamento, não tanto por causa do costume de se separarem os sexos na missa, mas porque, perdendo-se elas no meio da multidão, vivas, sim, talvez saíssem, mas violadas, como hoje diríamos, não tentarás o Senhor teu Deus, e se o tentares não venhas depois queixar-te de que ficaste grávida. Já foi dito que é isto missa. Entre a obra e a Ilha da Madeira fica um espaço amplo, calcado pelo ir e vir dos operários, sulcado pelas rodeiras dos carros que vêm e vão, felizmente está agora tudo seco, é a virtude da Primavera quando começa a chegar-se aos braços do Verão, daqui a pouco os homens poderão ajoelharse sem temer demasiado pelas joelheiras dos calções, ainda que esta gente não seja da que mais cuida de limpezas, lavam-se com o próprio suor. Numa eminência ao fundo está posta uma capela de madeira, se julgam os assistentes que há milagre capaz de metê-los a todos lá dentro, redondamente se enganam, mais fácil foi multiplicar os peixes e os pães, ou caberem duas mil vontades num frasco de vidro, isso não é milagre nenhum, mas sim a mais natural coisa do mundo, querendo. Então rangem os cabrestantes, com este barulho, ou semelhante, se abrem as portas do céu e do inferno, cada qual de sua qualidade, cristal a da casa de Deus, bronze a da casa de Satã, logo se percebe pela diferença que fazem os ecos, porém, aqui, o estridor é só o da fricção das madeiras, levanta-se lentamente a frontaria da capela, vai-se levantando até se transformar a parede em alpendre, ao mesmo tempo que as partes laterais se afastam, é como se mãos invisíveis estivessem abrindo um sacrário, a primeira vez que isto aconteceu ainda não havia tanta gente na obra, mas sempre foram cinco mil pessoas a fazer Ah, em todos os tempos há-de haver uma novidade que espante os homens, depois habituam-se, abriu-se enfim a capela de par em par, mostrando lá dentro o celebrante e o altar, será esta uma missa como outra qualquer, parece impossível, mas toda esta gente já se esqueceu de que Mafra foi um dia sobrevoada pelo Espírito Santo, diferentes são as missas que precedem as batalhas campais, quando se contarem e enterrarem os mortos sabe-se lá se não estarei entre eles, aproveitemos bem o santo sacrifício, salvo se o inimigo atacar antes, ou por ter ido à missa mais cedo ou por ser de uma religião que a dispensa.

Da sua gaiola de madeira pregou o celebrante ao mar de gente, se fosse o mar de peixes, que formoso sermão se teria podido repetir aqui, com a sua doutrina muito clara, muito sã, mas, peixes não sendo, foi a pregação como a mereciam homens e só a ouviram os fiéis que mais ao perto estavam, porém, se é certo que o hábito não faz o monge, faz sem dúvida a fé, ouvindo o assistente réu já sabe que foi dito céu, se eterno inferno, se isto Cristo, se Zeus Deus, e se mais nada se ouve, palavra ou eco, é porque acabou o sermão e podemos debandar. Espantoso é ter-se acabado a missa e não terem ficado mortos no terreno, não os matou sequer o sol quando deu em cheio na custódia e faiscou, muito mudadas estão as eras, já vai tempo que estando os Betsamitas no campo a ceifar o seu trigo, levantaram por acaso os olhos do trabalho e viram que vinha a Arca da Aliança da terra dos Filisteus, pois foi quanto bastou para caírem ali redondos cinquenta mil e setenta agora olharam vinte mil, estavas lá, não dei por ti. É uma religião de grandes lazeres, mormente estando reunidos tantos fiéis, onde é que se ia arranjar vagar e instalações para se confessarem todos ou todos comungarem, assim vão ficar por aí ao Deus dará, se der, bocejando muito, entrando em brigas, umbigando uma mulher atrás dum valado ou em lugares mais ribaldeiros, até amanhã, que é outra vez dia de trabalho.

Baltasar atravessa o terreiro, há homens que armam inocentes jogos de malha, outros que el-rei proíbe, como o caras-ou-cruzes, se vem por aí o corregedor na sua volta, não passam estes sem tronco. Esperam Baltasar, no sítio combinado, Blimunda e Inês Antónia, e aliirão ter também, ou já lá estão, Álvaro Diogo e o filho. Descem todos juntos ao vale, em casa espera-os o velho João Francisco que mal pode mexer as pernas, contenta-se com a missa discreta que o vigário diz na igreja de Santo André, assiste toda a casa do visconde, provavelmente por isso são os sermões menos aterradores, embora tenham a desvantagem de se terem de ouvir por inteiro e logo se notarem as desatenções de quem ouve, tão naturais quando os anos são muitos ou muito fatigaram. Acabamde jantar, Álvaro Diogo dorme a sesta, o filho vai aos pardais com outros da sua idade, as mulheres remendam e passajam discretamente, porque este dia é de guarda e portanto não quer Deus Que se trabalhe, porém, se este rasgão não fosse remendado hoje, amanhã estaria maior, e se é verdade que Deus castiga sem pau nem pedra, verdade é também que, remendar, só com agulha e linha, ainda que não seja grande o meu jeito, nem é para admirar, quando Adão e Eva foram criados, tanto sabia um como sabia outro, e quando os expulsaram do paraíso, não consta que tenham recebido do arcanjo uma lista de trabalhos de homem e trabalhos de mulher, a esta só foi dito, Parirás com dor, mas até isso há-de acabar um dia. Baltasar deixa em casa o espigão e o gancho, vai com o seu coto à fresca, quer ver se volta a sentir aquelas reconfortantes dores na mão, agora cada vez mais raras, e aquela comichãozinha na parte interna do dedo polegar, a sensação voluptuosa de o coçar com a unha do dedo indicador, não lhe venham dizer que tudo isso se passa na sua cabeça, ele responderia que dentro da cabeça não tem dedos, Mas você, ó Baltasar, já não tem a mão, Disso é que ninguém pode ter a certeza, vá lá uma pessoadiscutir com gente desta, capaz até de negar a própria realidade.

É sabido que Baltasar vai beber, mas não se em briagará. Bebe desde que soube da morte do padre Bartolomeu Lourenço, triste morte, foi um abalo muito grande" como um terramoto profundo que lhe tivesse rachado os alicerces, deixando embora, à superfície, as paredes aprumadas. Bebe porque constantemente se lembra da passarola, lá na serra do Barregudo, numa encosta do Monte Junto, quem sabe se já encontrada por contrabandistas ou pastores, e só de pensar nisso sofre como se o estivessem a apertar no potro. Mas, bebendo, sempre chega o momento em que sente pousar sobre o seu ombro a mão de Blimunda, não é preciso mais nada, está Blimunda sossegada em casa, Baltasar pega no púcaro cheio de vinho, julga que o vai beber como bebeu os outros, mas a mão toca-lhe no ombro, é uma voz que diz, Baltasar, e o púcaro volta à mesa intacto, os amigos sabem que não beberá mais nesse dia. Ficará calado, ouvindo apenas, enquanto o torpor do vinho se desvanece lentamente e as palavras dos outros refazem um sentido, ainda que seja o da mesma e repetida história, O meu nome é Francisco Marques, nasci em Cheleiros, que é aqui perto de Mafra, umas duas léguas, tenho mulher e três filhos pequenos, toda a minha vida foi trabalhar de jornal, e como da miséria não via jeito de sair, resolvi vir trabalhar para o convento, que até foi um frade da minha terra o da promessa, segundo ouvi contar, que nessa altura era eu um rapazito, assim como o teu sobrinho mas vá lá que não tenho muitas razões de queixa, Cheleiros não é longe, de vez em quando meto pernas ao caminho, as duas que andam e a do meio, dá como resultado que a mulher está prenha outra vez, o dinheiro que eu forró lá lho deixo, mas os pobres como nós têm de comprar tudo, não lhes vem por negócio da Índia ou do Brasil, nem temos empregos ou comendas do paço, que é que eu posso fazer com os duzentos réis de jornal, tenho de pagar o que como aqui na casa de pasto e o púcaro de vinho que bebo, a vida vai boa é para os donos das vendas de comida, e se é verdade que vieram obrigados de Lisboa muitos deles, eu por necessidade vivo e necessitado continuo, O meu nome é José Pequeno. Não tenho pai, nem mãe, nem mulher que minha seja, nem sei sequer se o nome certo é este, ou se tive algum antes, apareci numa aldeia ao pé de Torres Vedras, pelo seguro, o vigário baptizou-me, José é o nome de pia, o Pequeno puseram-mo depois, porque não cresci muito, com esta corcunda às costas nenhuma mulher me quis para viver, mas todas pedem mais se calha deixarem que me ponha em cima delas, não tenho outra compensação, chega-te para cá, agora vai-te embora, se me vejo velho nem para isso sirvo, se a Mafra vim foi porque gosto de trabalhar com os bois, os bois andam emprestados neste mundo, como eu, não somos de cá, Chamo-me Joaquim da Rocha, nasci no termo de Pombal, lá tenho a família, só a mulher, filhos tive quatro, mas todos morreram antes de fazerem dez anos, dois de bexigas negras, os outros de espinhela caída e sangue chupado, tinha lá um cerrado de renda, mas o ganho não dava para comer, então disse à mulher, vou para Mafra, é trabalho garantido e por muitos anos, enquanto durar durou, agora há seis meses que não vou a casa, se calhar nem volto lá mais, mulheres não faltam, e a minha devia ser de má casta para assim ter parido quatro filhos e deixado morrer todos. O meu nome é Manuel Milho, venho dos campos de Santarém, um dia os oficiais do corregedor passaram por lá com pregão de haver bom jornal e bom passadio nestas obras de Mafra, vim eu, e mais alguns, dois que vieram comigo ficaram naquele aluimento de terras que houve o ano passado, não gosto dos sítios daqui, e não é por terem cá morrido dois patrícios meus, ao homem não é dado escolher o lugar onde há-de morrer, salvo se é ele a escolher a sua própria morte, mas porque sinto a falta do rio da minha terra, bem sei que água tem-na o mar de sobra, vê-se daqui, mas digam-me o que pode um homem fazer daquela imensidão, sempre a onda a marrar nas pedras, sempre a bater na areia, ao passo que o rio corre entre duas margens, é como uma procissão penitente, ele é que vai rasteirinho, e nós, de pé, olhando, somos como os freixos e os choupos, e quando um homem quer ver como está a sua cara, se envelheceu muito, a água é o espelho que passa e está parado, e nós que estamos parados é que vamos passando, donde me vêm estas coisas à cabeça é que eu não sei dizer. O meu nome é João Anes, vim do Porto e sou tanoeiro, também para construir um convento são precisos tanoeiros, quem haveria de fazer e consertar as dornas, as pipas e os baldes, se um pedreiro está no andaime e lhe chegam o cocho da massa, tem de molhar as pedras com a vassoura para que façam boa presa a pedra que está e a outra que vai assentar, para isso é que lá tem o balde, e os animais bebem onde, bebem nas tinas, e quem fez as tinas, fizeram-nas os tanoeiros, não é por me gabar, mas não há ofício como o que eu tenho, até Deus foi tanoeiro, vejam-me essa grande dorna que é o mar, se a obra não estivesse perfeita, se as aduelas não estivessem tão bem ajustadas, entrava-nos o mar pela terra dentro, era aí outro dilúvio, sobre a minha vida não tenho muito que dizer, deixei a família no Porto, lá se vão governando, há dois anos que não vejo a mulher, às vezes sonho que estou deitado com ela, mas se sou eu não tenho a minha cara, no dia seguinte corre-me sempre mal o trabalho, gostava de me ver completo no sonho, em vez daquela cara sem boca nem feição, sem olhos nem nariz, que cara estará a minha mulher vendo nessa ocasião, não sei, era bom que fosse a minha. O meu nome é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim trabalhar para Mafra por causa das grandes fomes de que padece a minha província, nem sei como resta gente viva, se não fosse termo-nos acostumado a comer de ervas e bolota, estou que já teria morrido tudo, é um dó de alma ver uma terra tão grande, só pode saber quem alguma vez por lá passou, e não é mais que çharneca, poucas são as terras fabricadas e semeadas, o resto mato e solidão, e é um país de guerras, com os espanhóis entrando e saindo como em casa sua, agora está a paz em sossego, quem adivinhará por quanto tempo, mas os reis e os fidalgos, quando não é dia de nos fazerem correr e morrer a nós, fazem correr e morrer a caça, por isso ai do pobre que for apanhado com um coelho na saca, ainda que o tivesse achado já morto de doença ou velhice, o menos que lhe pode suceder é levar uma dúzia de vergastadas pelas costas, para aprender que quando Deus fez os coelhos foi para divertimento e panela dos senhores, só valiam a pena as vergastadas se pudéssemos ficar com a caça, eu se vim para Mafra foi porque o vigário da minha freguesia apregoava nas igrejas que quem viesse passava a ser criado de el-rei, não bem bem criado, mas como se o fosse, e que os criados de el-rei, isto dizia ele, não sofrem privações de boca e andam com as carnes tapadas, ainda melhor que no paraíso, porque se é certo que Adão, não tendo quem lhe disputasse a pitança, comia a seu gosto e conforme o apetite, já de vestidos andava pior, afinal saiu-me tudo mentira, do paraíso não falo, que não sou desse tempo, mas de Mafra sim. Se não consigo morrer de fome é porque gasto tudo quanto ganho, roto ando como andava, e, quanto a ser criado de el-rei, ainda espero não morrer sem ver a cara do meu amo, a não ser que me agonie de estar tanto tempo longe da família, um homem, se tem filhos, também se alimenta de ver a cara deles, bom era que se alimentassem eles de ver a nossa cara, é o destino, acabar-se a vida a olharmos uns para os outros, quem és tu, que vieste cá fazer, quem eu seja e o que faça, já perguntei e não tive resposta, não, nenhum dos meus filhos tem os olhos azuis, mas tenho a certeza de que são todos meus filhos, isto dos olhos azuis é coisa que aparece de vez em quando na família, já a mãe da minha mãe tinha os olhos desta cor, O meu nome é Baltasar Mateus, todos me conhecem por Sete-Sóis, o José Pequeno sabe porque assim lhe chamam, mas eu não sei desde quando e porquê nos meteram os sete sóis em casa, se fôssemos sete vezes mais antigos que o único sol que nos alumia, então devíamos ser nós os reis do mundo, enfim, isto são conversas loucas de quem já esteve perto do sol e agora bebeu de mais, se me ouvirem dizer coisas insensatas, ou é do sol que apanhei, ou do vinho que me apanhou, o certo é ter nascido aqui, há quarenta anos feitos, se não me enganei a contar, minha mãe já morreu, chamava-se Marta Maria, meu pai mal pode andar, acho que lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar, tínhamos aí um cerrado, como o Joaquim da Rocha, mas, com tanto mexer de aterros, já lhe perdi o sítio, até eu levei alguma terra dele no carro de mão, quem haveria de dizer ao meu avô que um neto seu atiraria fora terra que foi, cavada e semeada, agora põem-lhe um torreão em cima, são as voltas da vida, a minha também não tem dado poucas, enquanto moço cavei e semeei para os lavradores. O nosso cerrado era tão pequeno que o meu pai dava conta do trabalho em toda a volta do ano e ainda ficava com tempo para tratar duns bocados que trazia de renda, bem, fome, o que se chama fome, não passámos, mas fartura ou suficiência nunca soubemos o que era, depois fui para a guerra de el-rei, ficou-me lá a mão esquerda, só mais tarde é que soube que sem ela começava a ser igual a Deus, e como deixei de servir para a guerra, voltei a Mafra, mas estive uns anos em Lisboa, é só isto e nada mais, E em Lisboa, que fizeste, perguntou João Anes, por ser, de todos, o único oficial de um ofício, Estive no açougue do Terreiro do Paço, mas era só a acarretar a carne, E quando foi que estiveste perto do sol, isto quis Manuel Milho saber, provavelmente por ser ele o que costumava ver o rio passando, Essa, foi de uma vez que subi a uma serra muito alta, tão alta que estendendo o braço tocava-se no sol, nem sei se perdi a mão na guerra, se foi o sol que ma queimou, E que serra era, em Mafra não há serras que cheguem ao sol, e no Alentejo também as não há, que Alentejo conheço eu bem, perguntou Julião Mau-Tempo, Talvez tenha sido uma serra que nesse dia estava alta e agora está baixa, Se para arrasar um monte destes são precisos tantos mil tiros de pólvora, para fazer baixar uma serra alta gastava-se toda a pólvora que há no mundo, disse Francisco Marques, o que primeiro falara, e Manuel Milho teimou, Chegar perto do sol, só se tivesses voado como os pássaros, lá na lezíria vêem-se às vezes uns milhafres que vão subindo, subindo, fazendo rodeios, e depois desaparecem, ficam tão pequenos que já não podem ser vistos, e então vão ao sol, nós é que não sabemos nem o caminho por onde se chega, nem a porta por onde se entra, mas tu és homem, não tens asas, A não ser que sejas bruxo, disse o José Pequeno, como uma mulher da terra onde fui achado, que se untava com unguentos, punha-se a cavalo numa vassoura e ia à noite de um sítio para outro, isto era o que se dizia, que eu, ver, nunca vi, Eu não sou bruxo, ponham-se a dizer essas coisas, e leva-me o Santo Ofício, e também ninguém me ouviu dizer que voei, Mas declaraste que estiveste perto do sol, e ainda outra coisa, que começaste a ser igual a Deus depois de teres ficado sem a mão, se tal heresia chega aos ouvidos do Santo Ofício, então é que não te salvas mesmo, Salvávamo-nos todos se nos fizéssemos iguais a Deus, disse João Anes, Se nos fizéssemos iguais a Deus poderíamos julgá-lo por não termos logo recebido dele essa igualdade, disse Manuel Milho, e Baltasar explicou enfim, com grande alívio de já não se estar falando de voar. Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que senta os seus eleitos, e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar ninguém, ora, se não fica lá ninguém, para que quereria Deus a mão esquerda, se a mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha não serve porque não existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus esteja sentado à direita doutro deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses sentados, donde é que estas coisas me vêm à cabeça, é que eu não sei, disse Manuel Milho, e Baltasar rematou, Então sou eu o último da fila, à minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo, Donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, menos João Anes, que tem algumas letras, é que nós não sabemos.

O sino da igreja de Santo André, no fundo do vale, deu as trindades. Por sobre a Ilha da Madeira, nas ruas e terreiros, dentro das tabernas e casas de acomodação, ouve-se um murmúrio contínuo, como o do mar ao longe. Estariam vinte mil homens dizendo a oração da tarde, estariam contando uns aos outros as suas vidas, vá lá averiguar-se.


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