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Memorial do Convento José Saramago

Vivemos em tempo que qualquer freira, como a mais natural coisa do mundo, encontra no claustro o Menino Jesus ou no coro um anjo tocando harpa, e, se está fechada em sua cela, onde, por causa do segredo, são mais corporais as manifestações, atormentam-na diabos sacudindo-lhe a cama, e assim lhe abalando os membros, os superiores em modo de lhe agitarem os seios, os inferiores tanto que freme e transpira a fenda que no corpo há, janela do inferno, se não porta do céu, esta por estar gozando, aquela porque gozou, e em tudo isto se acredita, porém, não pode Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, dizer, Eu voei de Lisboa ao Monte Junto, tomá-lo-iam por doido, e vá com muita sorte, por tão pouco não se inquietaria o Santo Ofício, é o que por aí não falta, loucos varridos em terra que a loucura varreu. Dos dinheiros do padre Bartolomeu Lourenço tinham vivido Baltasar e Blimunda até agora, juntando-lhes as couves e o feijão da horta, um pedaço de carne enquanto foi tempo dela, sardinha salgada quando não chegava fresca, e quanto se gastasse e comesse era muito menos para sustentar o corpo próprio que para alimentar o crescimento da máquina voadora, se então realmente acreditavam que ela voaria.

Voou a máquina, se tal se crê, e hoje está reclamando, o corpo o seu alimento, é para isto que sobem os sonhos alto, nem sequer o ofício de carreiro pode Sete-Sóis tomar, os bois foram vendidos, partiu-se o carro, não fosse Deus tão descuidado, e os bens dos pobres seriam eternos. Com junta de bois e carro seus, poderia Baltasar ir à vedoria-geral oferecer-se para trabalhar, e apesar de manco o aceitariam. Assim, duvidariam que fosse ele capaz, com uma só mão, de governar os animais de el-rei ou dos nobres e outros particulares, que, para obterem as boas graças da coroa, os haviam emprestado, Em que posso então eu trabalhar,irmão, isto perguntou Baltasar a Álvaro Diogo, seu cunhado, na noite mesma do dia em que chegaram, agora moradores todos na casa paterna, tinham acabado de cear, mas antes ouviram da boca de Inês Antónia, ele e Blimunda, o maravilhoso caso da passagem do Espírito Santo por cima da vila, Que com estes olhos que a terra há-de comer o vi, mana Blimunda, eviu Álvaro Diogo, que estava na obra, pois não é verdade que viste, meuhomem, e Álvaro Diogo, soprando um tição da fogueira, respondeu que sim, que passara uma coisa por cima da obra, Foi o Espírito Santo, insistiu Inês Antónia, disseram-no os frades para quem os quis ouvir e tanto foi o Espírito Santo que se fez a procissão de graças, Pois seria, resignou-se o marido, e Baltasar, com os olhos em Blimunda que sorria, Ele há coisas no céu que não sabemos explicar, e Blimunda devolvendo a intenção, Soubéssemo-las nós e as coisas do céu teriam outros nomes. Ao canto da lareira dormitava o velho João Francisco, sem carro nem junta de bois, sem terra nem Marta Maria, parecia alheado da conversa, mas disse, e logo se ausentou outra vez para o sono, no mundo só há morte e vida, ficaram todos à espera do resto, porque será que os velhos se calam quando deveriam continuar falando, por isso os novos têm de aprender tudo desde o princípio. Há aqui mais quem esteja dormindo, por essa razão não poderia falar, mas, se acordado estivesse, talvez lho não consentissem, porque só tem doze anos, pode a verdade estar na boca das crianças, mas para a dizerem têm de crescer primeiro, e então passam a mentir, este é o filho que ficou, chega à noite morto de dar serventia, andaime acima, andaime abaixo, acaba de cear e adormece logo,Querendo, há trabalho para toda a gente, disse Álvaro Diogo, podes ir de servente ou fazer carretos com os carros de mão, o teu gancho é quanto basta para amparares o varal, são assim os tropeções da vida, um homem vai à guerra, volta de lá aleijado, depois voa por artes misteriosas, confidenciais, e enfim se quer ganhar o pobre pão de cada dia, é o que se vê, e pode gabar-se da sorte, que há mil anos, se calhar, ainda não se fabricavam ganchetas a fazer de mãozinha, como será daqui a outros mil.

Manhã cedo, saíram Baltasar e Álvaro Diogo, mais o rapaz, é a casa dos Sete-Sóis, como antes foi explicado, muito perto da igreja de Santo André e do palácio dos viscondes, moram aqui na parte mais antiga da vila, ainda se vêem uns restos do castelo que os mouros levantaram no seu bom tempo, manhã cedo saíram, vão encontrando pelo caminho outros homens da terra, que Baltasar conhece, vai tudo para a obra, por isso, talvez, é que estão abandonados os campos, não chegam velhos e mulheres para o amanho, e, como Mafra está no fundo duma cova, têm aqueles de subir por carreiros que já não são os de antigamente, cobriu-os o entulho que do alto da Vela vem sendo despejado. Olhando cá de baixo, o que de paredes se vê não promete nenhuma torre de Babel, e, chegando mais ao sopé da vertente, de todo a construção se esconde, sete anos há que andam nisto, por este passo só no dia dojuízo, e então não valeu a pena, A obra é grande, diz Álvaro Diogo, quando estiveres ao pé saberás, e Baltasar, que está desdenhando de canteiros e pedreiros, mete a viola no saco, não tanto pela pedraria já levantada, mas pela multidão de homens que cobrem o terreiro, é um formigueiro de gente que acorre de todos os lados, se tudo isto veio para trabalhar, então mordo a língua, falei antes de tempo. O rapazito já os deixou, foi ao serviço, acarretar cochos de cal, e os dois homens atravessam o terreiro para a banda da esquerda, vão à vedoria,dirá Álvaro Diogo que este aqui é meu cunhado, natural e morador em Mafra, que em Lisboa viveu muitos anos, mas agora voltou de vez à casa de seu pai, e quer trabalho, não que sirvam de muito recomendações, mas enfim, Álvaro Diogo está cá desde a primitiva, é operário capaz e cumpridor, uma palavrinha sempre conforta. Baltasar abre a boca de espanto, vem duma aldeia e entra numa cidade, bem está que Lisboa seja o que é, nem poderia ser de menos a cabeça de um reino senhor do Algarve, que é pequeno e perto, mas também doutras partes grandes e distantes, quesão o Brasil, África e Índia, mais uns tantos lugares avulsos espalhados pelo mundo, bem está, digo, que seja Lisboa aquela desmedida e confusão, porém, este ajuntamento enorme de telheiros e casas de muitos e variados tamanhos, é coisa que só vendo ao perto se acredita, quando há três dias sobrevoou Sete-Sóis este lugar, levava tão agitada a alma que lhe pareceu ilusão dos sentidos o casario e arruamentos, e pouco maior que capela a principiada fábrica da basílica. Se Deus, que lá do alto vê tudo, vê tudo assim tão mal, então mais lhe valia andar cá pelo mundo, por seu próprio e divino pé, escusavam-se intermediários e recados que nunca são de fiar, a começar pelos olhos naturais, que vêem pequeno ao longe o que é grande ao perto, salvo se usa Deus um óculo como o do padre Bartolomeu Lourenço, quem dera que me esteja olhando agora, se sim ou não me vão dar trabalho. Álvaro Diogo já foi à sua vida, por pedra em cima de pedra, se demorasse mais perderia um quartel, grande prejuízo, agora tem Baltasar de acabar de convencer o escrivão da matrícula de que tanto vale um gancho de ferro como uma mão de carne e osso, mas o matriculador duvida, não pode assumir a responsabilidade, e vai perguntar dentro, pena não poder Baltasar apresentar a sua carta credencial de construtor de aeronaves, quando menos explicar que andou na guerra, se isso lhe serviria de alguma coisa, passaram catorze anos, vivemos felizmente em paz, que tem ele que vir para aqui falar de guerras, as guerras que acabaram é como se nunca tivessem acontecido. Voltou o matriculador, vem de boa cara. Como é que te chamas, e pega na pena de pato, molha-a na tintacastanha, afinal valeu a pena ter falado Álvaro Diogo, ou por ser da terra o pretendente, ou por estar ainda na força da vida, trinta e nove anos, embora com alguns cabelos brancos, ou simplesmente porque, tendo passado por aqui o Espírito Santo há três dias, havia Deus de ofender-se se logo fosse recusado trabalho a quem o pede, Como é que te chamas, Baltasar Mateus, de alcunha o Sete-Sóis, Podes vir trabalhar na segunda-feira, começas a semana, vais para os carros de mão. Baltasar agradeceu como devia ao matriculador e saiu da vedoria-geral, nem triste nem alegre, um homem deve ser capaz de ganhar o seu pão de qualquer maneira e em qualquer lugar, mas se é o caso de esse pão não lhe alimentar também a alma, satisfez-se o corpo, a alma padece.

Sabia já Baltasar que o sítio onde se encontrava era conhecido pelo nome de Ilha da Madeira, e bem posto lhe fora, porque, tirando umas poucas casas de pedra e cal, todo o mais era de tabuado, mas construído para durar. Havia oficinas de ferreiros, bem que podia Baltasar ter mencionado a sua experiência de forja, nem tudo lembra, e outras artes de que nada sabia, mais tarde se juntarão as dos latoeiros, dos vidraceiros, dos pintores, e quantas mais. Muitas das casas de madeira tinham sobrados, em baixo acomodavam-se as bestas e os bois, em cima as pessoas de muita ou alguma distinção, os mestres da obra, os matriculadores e outros senhores da vedoria-geral, e oficiais da guerra que governavam os soldados. A esta hora da manhã estavam saindo das lojas os bois e as mulas, outros teriam sido levados mais cedo, o chão empapava-se de urina e excrementos, e, como em Lisboa, na procissão do Corpo de Deus, os rapazitos corriam pelo meio da gente e do gado, empurravam-se com violência, e um deles, querendo fugir a outro, caiu e rebolou para debaixo duma junta de bois, mas não foi pisado, estava lá o anjo custódio, livrou-se de boa, sem mais mazela que ficar todo sujo de bosta e mal-cheiroso. Baltasar riu como os outros, a obra tinha os seus divertimentos. A sua guarda também. Passavam nesta altura uns vinte soldados de infantaria, armados como para a guerra, serão manobras, ou irão à Ericeira rechaçar um desembarque de piratas franceses, tantas vezes hão-de tentar que um dia vêm por aí abaixo, muitos e muitos anos depois de estar concluída esta babel, entrará Junot em Mafra, onde no convento apenas ficaram uns vinte frades velhos, a cair da tripeça, e mandando adiante o coronel Dela garde, ou capitão, tanto faz, quis este entrar no palácio e achou a porta fechada, visto o que foi mandado chamar frei Félix de Santa Maria da Arrábida, que era o guardião, mas o pobrezinho não tinha as chaves isso era com a família real, que tinha fugido, e então o pérfido Delagarde, pérfido lhe chamou o historiador desanda um bofetão no triste frade, cujo, ó evangélica mansidão, ó lição divina, lhe oferece incontinente a outra face, se quando Baltasar perdeu a mão esquerda em Jerez de los Caballeros tivesse oferecido a direita, não poderia agora segurar nos varais do carro. E, por falar de caballeros, também ali passavam cavaleiros armados como os infantes que já lá vão no terreiro, agora se percebe, a colocar sentinelas, não há nada como trabalhar com guarda à vista.

Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta cada uma menos de duzentos e, aqui onde está, não pode Baltasar contar os barracões todos, chegou a cinquenta e sete e perdeu-se, sem falar que ao cabo destes anos não melhorou em aritméticas, o melhor seria ir com um balde de cal e uma brocha, sinal neste, sinal naquele, para não repetir nem falhar, assim como quem prega cruzes de S. Lázaro nas portas, por causa do mal de pele. Numa esteira ou num beliche como estes é que Baltasar dormiria se não tivesse casa em Mafra, e mulher para dormir acompanhado, coitados de tantos, vindos de longe, diz-se que um homem não é de pau, muito pior e mais custoso de aguentar é justamente quando se arma o pau no homem, de certeza não vão chegar as viúvas de Mafra para satisfazer tanta precisão, como será. Deixou Baltasar as casas da acomodação e foi ver o campo militar, aí deu-lhe o coração um salto tantas tendas de campanha, foi como se o tempo tivesse desandado para trás, talvez pareça impossível, mas há momentos em que um soldado retirado do serviço pode sentir saudades até da guerra, a Baltasar não é a primeira vez que tal sucede. Já lhe disseraÁlvaro Diogo que estavam em Mafra muitos soldados. uns a auxiliar nos trabalhos das minas e do rebentamento dos tiros de pólvora, outros para guardar os trabalhadores e castigar as desordens, e, a julgar pelo número de tendas de campanha, os muitos eram milhares. Está um pouco azamboado Sete-Sóis, que nova Mafra é esta, cinquenta moradas lá em baixo, quinhentas cá em cima, sem falar noutras diferenças, como esta fiada de casas de pasto, barracões quase tão grandes como os dormitórios, com mesas e bancos corridos, fixados ao chão, e compridos mostradores, agora não se vê por aqui gente, mas lá para o meio da manhã põem-se ao lume os caldeirões para o jantar do meio-dia, e, tocando a corneta ao rancho, será uma carreira geral a ver quem chega primeiro, vêm sujos como estavam na obra, é uma algazarra de ensurdecer, amigos chamando amigos, senta-te aqui, guarda-me o lugar, mas carpinteiros sentam-se com carpinteiros, pedreiros com pedreiros, cabouqueiros com cabouqueiros, e a arraia-miúda da serventia acomoda-se lá à ponta, cada qual com seu igual, ainda bem que Baltasar pode ir comer a casa, com quem haveria ele de falar, se de carros de mão ainda nada sabe e de aviões é o único a saber.

Diga Álvaro Diogo o que disser, em abono seu e dos mais operários, a obra não está adiantada. Baltasar deu-lhe a volta por inteiro, com o vagar de quem observa a casa onde passará a viver, lá vão aqueles com os carros de mão, outros subindo aos andaimes, uns levando a cal e a areia, outros, aos pares, transportando as pedras a pau e corda pelas rampas suaves, e os mestres-de-obra vigiando de bastão em punho, e os olheiros com o olho na diligência do operário e na perfeição do serviço. As paredes não têm mais que três vezes a altura de Baltasar, e não abraçam todo o perímetro da basílica, mas são grossas como muralhas de guerra, não chegam a tanto as que restam do castelo de Mafra, também eram outros os tempos, sem artilharia, só a pedra que isto leva na largura justifica os vagares de crescimento na altura. Ali tombado está um carro de mão, quer Baltasar experimentar se lhe aprende facilmente o jeito, não custa nada, e se com uma goiva cavar uma meia-lua na parte inferior do varal esquerdo, então poderá medir meças a qualquer par de mãos.

Enfim, desce pelo carreiro que subiu, por trás da encosta ficam escondidas a obra e a Ilha da Madeira, se não fosse estarem constantemente rolando do alto pedras e terra solta poderia pensar-se que não iria ali haver basílica nenhuma, nem convento, nem palácio real, só Mafra outra vez, no seu tamanhinho de tantos séculos, ou pouco mais até hoje, no tempo dos romanos, que semearam decretos, dos mouros que vieram depois e plantaram hortas e pomares de que já mal se vê sombra e sítio, até nós, que nos tornámos cristãos por vontade de quem mandava, que, se Cristo em pessoa andou pelo mundo, aqui não chegou, porque nesse caso teria sido no alto da Vela o seu calvário, agora andam a fazer lá um convento, provavelmente é a mesma coisa. E, por pensar com mais afinco nestas coisas de religião, se em verdade são de Baltasar os pensamentos, mas de que serviria perguntarlhe, lembra-se do padre Bartolomeu Lourenço, não é a primeira vez, claro está, a sós com Blimunda quase não têm outro assunto lembra-se e tem uma dor no coração, arrepende-se de o ter maltratado com tal brutalidade na serra, naquela terrível noite, foi como se tivesse batido num irmão doente, bem sei que ele é padre, e eu nem soldado já sou, porém temos a mesma idade e fizemos a mesma obra. Repete Baltasar, para si próprio, que em dia favorável voltará à serra do Barregudo e ao Monte Junto, a ver se ainda lá estará a máquina que bem podia ter acontecido regressar às escondidas o padre e sozinho levantar voo para terras mais propícias a invenções, como seja, para dar um exemplo, a Holanda, país por excelência dado a fenómenos aeronáuticos, como virá a comprovar um certo Hans Pfaall, que, por não ter sido perdoado de alguns insignificantes crimes, continua a viver na lua, até hoje. Não faltava mais nada que conhecer Baltasar estes acontecimentos futuros, e outros mais cabais, como já terem ido dois homens à lua, que todos os vimos lá, e não encontrarem Hans Pfaall, será porque não procuraram bem. Por serem custosos de encontrar os caminhos.

Estes são mais fáceis. Desde que o sol nasce até que se põe, Baltasar, e com ele, quantos mais, setecentos, mil, mil e duzentos homens, carregam os carros com terra e pedras, no caso de Baltasar o gancho ampara o cabo da pá, o braço direito anda há quase quinze anos a triplicar o jeito e a força, e depois, infindável procissão do Corpus Homini, vão uns atrás dos outros despejar o entulho pela encosta abaixo, e não é só mato o que vão cobrindo, também alguma terra de cultivo, além uma horta do tempo mourisco, vai-se-lhe acabar a vida, pobre dela, tantos séculos a dar couves tenras, alfaces que estalavam de frescura, orégãos, pezìnhos de salsa e hortelã, primícias e primores, e agora adeus, já não correrá mais a água por estas regueiras, já não virá o hortelão puxar o comorozinho de terra para dar de beber ao canteiro que tem sede, enquanto o do lado se regala, da sede que matou: E dando o mundo tantas voltas, muitas mais as dão os homens que nele vivem, talvez que aquele que lá em cima agora mesmo despejou um carro de mão, aí vêm as pedras aos saltos e rebolões, a terra escorregando, adiante a mais pesada, talvez seja ele o hortelão da horta, porém não deve de ser ele, se nem sequer as lágrimas lhe caem.

Passam os dias, as semanas, e as paredes mal crescem. Os tiros vão rebentando a rocha duríssima que os soldados andam a atacar agora, bom proveito ela daria, e pagamento do trabalho que dá, se pudesse servir; como outra, para encher as paredes, mas esta, que agarrada ao monte só consente desprender-se dele com grande violência, quando posta ao ar não demora a esfarelar-se, às lascas, em pouco tempo se tornaria terriço se não viesse o carro de mão deitá-la a fundo. Andam também no transporte carros maiores, com rodas de sege, puxados a mulas, não falta carregarem-nos em excesso, e, como nestes dias tem chovido, atascam-se as bestas no lamaçal, donde por fim se arrancam apertadas pelo chicote que lhes desaba nos lombos, na cabeça quando Deus não está a olhar, embora tudo isto seja para serviço e glória do mesmo Deus, e assim não se sabe se ele não estará desviando os olhos de propósito. Os homens dos carros de mão, porque levam menos carga, não se atolam tanto, além de terem feito, com tábuas que ficam ao desbarato quando se alteiam os andaimes, uns passadiços firmes, mas, não chegando estes para todos, há sempre uma guerra de espreita e corre, a ver quem primeiro chega, e, chegando a par, a ver quem mais empurra, e a partir daí já se conta que salte murro e pontapé, se não cortarem sarrafos o ar, momento em que avança a patrulha de soldados, manobra em geral suficiente para esfriar os ânimos aquecidos, ou, caso não, duas pranchadas, dois vergões na lombeira, como às mulas.

Vem chovendo, mas não tanto que o trabalho tenha de parar, excepto o dos pedreiros, pois a água desfaz a argamassa, empoça nas larguíssimas paredes, por isso recolhem-se os operários aos telheiros, à espera que levante, enquanto os canteiros, que são gente fina, batem abrigados o mármore, tanto para a cantaria como para o lavrado, provavelmente prefeririam descansar. A estes tanto faz que as paredes cresçam depressa como devagar, têm o risco da pedra a seguir, caneluras, acantos, festões, acrotérios, grinaldas, estando acabada a obra logo a levam os carregadores a pau e corda, para o telheiro onde com outras ficará guardada, chegando a hora a irão buscar do mesmo modo, salvo se for tão pesada que requeira cabrestante e plano inclinado. Mas têm os canteiros o privilégio de trabalhar pelo seguro, quer chova, quer faça sol, com o jornal sempre garantido, ali debaixo de telha, brancos do pó do mármore, parecem fidalgos de cabeleira, truca-truca, truca-truca, com o cinzel e a maceta, trabalho de duas mãos. Esta chuva de hoje não tem sido tão forte que mandassem os olheiros recolher toda a gente, sequer os dos carros de mão, menos afortunados que as formigas, que essas, estando o céu de aguagem, levantam a cabeça a farejar os astros, e recolhem aos buracos, não são nenhuns homens para terem de trabalhar à chuva. Enfim, vem do lado do mar, caminhando sobre os campos, uma escura cortina de água, largam os homens, mesmo sem ordem, os carros de mão, e debandam para os telheiros ou chegam-se à revessa das paredes, se vale a pena, mais molhados do que estavam não podem ficar. As mulas atreladas ficam quietas sob o grande chuveiro que cai, o pêlo empapado de suor está agora ensopado da contínua água, os bois ruminam jungidos e indiferentes, quando a chuva bate com mais força sacodem as cabeças, quem haverá aí capaz de dizer o que sentem estes animais, que fibras lhes estremecem, e até onde, se no movimento que fazem se tocam os cornos luzidios, porventura apenas, Estás aí. Quando a chuva se afasta ou se tornou aturável, voltam os homens e tudo recomeça, carregar e descarregar, puxar e empurrar, arrastar e levantar, hoje não há tiros de pólvora por causa desta geral humidade, melhor para os soldados que gozam a folga debaixo dos telheiros, de gorra com as sentinelas também recolhidas, é a alegria da paz. E como a chuva voltou novamente, caindo de um céu escuríssimo, tão cedo não vai acabar, deu-se ordem para largarem os homens o trabalho, só os canteiros continuaram a bater a pedra, truca-truca, truca-truca, são largos os telheiros, nem os salpicos soprados pelo vento vêm macular o grão do mármore.

Baixou Baltasar à vila pelo carreiro escorregadio, um homem que descia à sua frente estatelou-se na lama e todos riram, de riso caiu outro, o que vale são estas distracções, que nesta terra de Mafra não há pátios de comédias, não há cantarinas nem representantes, ópera só em Lisboa, para vir o cinema ainda faltam duzentos anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a passar, até que chegue a felicidade, olá. O cunhado e o sobrinho já terão chegado a casa, ainda bem para eles, não há nada que valha uma fogueira quando um homem está enregelado, aquecer as mãos à labareda alta, o coirato dos pés descalços rente ao brasido, e o frio a retirar-se dos ossos, devagarinho, como geada que se derrete ao sol. A bem dizer, melhor do que isto, que o há, só uma mulher na cama, e se a mulher é a que se quer, não precisa mais que aparecer no caminho, como agora vemos Blimunda, veio partilhar o mesmo frio e a mesma chuva, e traz uma saia das suas que lança sobre a cabeça do homem, este cheiro de mulher que faz subir lágrimas aos olhos, Estás cansado, perguntou ela, quanto basta para que o mundo se torne suportável, uma aba da saia cobre as duas cabeças, mal comparado é um céu, assim vivesse Deus com os nossos anjos.

A Mafra chegaram soltas notícias de que em Lisboa se sentira um terramoto, sem outros estragos que caírem beirais e chaminés, e abrirem-se algumas rachas em paredes velhas, mas, como todo o mal traz de caminho o seu bem, fizeram negócio magnífico os cerieiros, foi um corropio de velas para as igrejas, com particular preferência pelos altares de S. Cristóvão, santo de grande valimento em casos de peste, epidemias, raios, incêndios e tempestades, inundações, más viagens e tremores de terra, em concorrência com Santa Bárbara e Santo Eustáquio, que também não são pecos nestas protecções. Mas os santos são como os homens, estes que andam aqui a construir o convento, e quem diz estes diz outros, noutras construções e destruições, os santos cansam-se, estimam muito o seu repouso, que só eles sabem quanto trabalho dá segurar as forças naturais, fossem elas torças de Deus, e seria fácil, bastava ir a Deus pedir-lhe, Olhe lá, não sopre agora, não sacuda, não ateie e não alague, não deite praga nem ladrão à estrada, e só se ele fosse um deus de maldade é que não atenderia aos rogos, mas, como as forças o que são é naturais e os santos se distraem, mal acabámos de suspirar de alívio por ter sido benigno o abalo, aí temos uma tempestade como doutra não há memória, porém, sem chuva nem granizo, antes fosse, talvez lhe quebrassem esta força do vento que joga livremente com os navios ancorados, como cascas de noz, repuxando, esticando e rebentando as amarras ou arrancadas do fundo as âncoras, e logo os arrasta dos surgidoiros, e vão bater uns contra os outros, arrombando-se os costados e indo a pique com os marinheiros clamando, só eles é que saberão a quem pedem socorro, ou encalhando em terra onde a força das águas derradeiramente os despedaça. Todos os cais se desmoronam rio acima o vento e as vagas arrancam de raiz as pedras e lançam-nas para terra, arrombando janelas e portas como pelouros, que inimigo é este que fere sem ferro nem fogo. Na presunção de que seja o demónio o autor do distúrbio, tudo quanto é mulher, ama, criada ou escrava, está de joelhos no oratório, Maria Santíssima, Virgem Nossa Senhora, enquanto os homens, pálidos de morte, sem mouro ou tapuia em quem meter a espada, debulham as contas do rosário, padre nosso, ave-maria, afinal, se tanto chamamos por estes, o que nos falta é pai e mãe. As ondas batem com tal força na praia deste sítio da Boavista, que os borrifos, levantados e levados pelo vento, vão cair de chapa, como chuveiros, contra os muros do convento das Bernardas e, mais longe ainda, do mosteiro de S. Bento. Se o mundo fosse barca e vogasse num grande mar, iria desta vez ao fundo, juntando-se água e águas num dilúvio enfim universal que não pouparia nem Noé nem a pomba. Desde a Fundição até Belém, quase légua e meia, não se viram mais que destroços nas praias, madeiras quebradas, e das cargas dos navios o que por seu peso não ia ao fundo, às praias vinha dar, com lastimosa perda de seus donos e muito prejuízo de el-rei. A alguns navios foram cortados os mastros para que não se virassem, e, mesmo assim, três naus de guerra foram empurradas para a praia, onde se perderiam se não lhes acudisse prontamente socorro particular. Não têm conto as barcas, muletas e lanchas que se despedaçaram nas praias, embarcações de maior porte foram cento e vinte as que encalharam e se perderam, e quanto a gente morta nem vale a pena falar, sabe-se lá quantos cadáveres a maré levou barra fora ou ficaram presos no fundo, o que se sabe é que nas praias, arrojados pelo mar, foram contados cento e sessenta, contas de um rosário que andam por aí a chorar as viúvas e os órfãos, ai o meu rico pai, são poucas as mulheres afogadas, algum homem dirá, ai a minha rica mulher, depois de mortos todos somos ricos. Sendo tantos os mortos, enterram-nos onde calha, ao acaso, alguns não se chegou a apurar quem eram, moravam longe os parentes, não vieram a tempo, mas, para grandes males, grandes remédios, se o terramoto passado tivesse sido maior, e extensa a mortandade, assim mesmo se faria, enterrar os mortos e cuidar dos vivos, fica o aviso para o futuro se tal calamidade vier a acontecer, livre-nos Deus.

Passam mais de dois meses que Baltasar e Blimunda chegaram a Mafra e cá vivem. Em um dia santo, parado o trabalho na obra, fez Baltasar uma jornada e foi ao Monte Junto ver a máquina de voar. Estava no mesmo sítio, na mesma posição, descaída para um lado e apoiada na asa, debaixo da sua cobertura de ramagens já secas. A vela superior, embreada, toda aberta, fazia sombra sobre as bolas de âmbar. Por causa da inclinação do casco, a chuva não empoçara na vela, e assim não havia perigo de esta apodrecer. Ao redor, pelo chão pedregoso, rebentava mato novo e alto, até silvas, caso sem dúvida singular por não ser este o tempo próprio nem o lugar adequado, para cia estar a passarola a defender-se por artes suas, tudo se deve esperar de uma máquina destas. Pelo sim, pelo não, deu Baltasar uma ajuda ao disfarce indo cortar ramos das moitas, como da primeira vez, mas agora com menos custo porque levara um podão, e, concluído o trabalho, deu a volta a esta outra basílica, e viu que estava bem. Depois subiu para a máquina, e, numa tábua do convés, com o bico do espigão, que nos últimos tempos não precisara usar, riscou um sol e uma lua, recado que ficará para o padre Bartolomeu Lourenço, se aqui voltar um dia verá este sinal dos seus amigos, não há confusão possível. Meteu Baltasar pés ao caminho, saíra de Mafra ao nascer do sol, chegou tinha-se fechado a noite, entre ir e voltar andara mais de dez léguas, quem corre de gosto não cansa, dizem, mas Baltasar chegou cansado e ninguém o obrigara a ir, se calhar, quem inventou o ditado tinha alcançado a ninfa e gozado com ela, assim não admira.

Meados de Dezembro, voltava Baltasar para casa ao fim do dia, quando viu Blimunda, que, como quase sempre, o viera esperar ao caminho, porém, havia nela uma agitação e uma tremura não costumadas, só quem não conhece Blimunda não sabe que ela anda no mundo como se já o conhecesse de outras vidas anteriores, e chegando-se,perguntou, É meu pai que está pior, e ela respondeu, Não, e logo, baixando muito a voz, O senhor Escarlate está em casa do senhor visconde, que terá ele vindo cá fazer, Tens a certeza, viste-o, Com estes olhos, Seria talvez um homem parecido, É ele, a mim basta-me ver uma vez uma pessoa, e vi- o muitas. Entraram em casa, cearam, depois foi cada qual à enxerga onde dormia, cada casal na sua, o velho João Francisco com o neto, tem este o sono desassossegado, toda a noite a escoicinhar, salvo seja, mas o avô não se importa, sempre é uma companhia para quem não consegue dormir. Por isso é que só ele ouviu, pelas tantas, tarde para quem se deita cedo, uma frágil música que entrava pelas frinchas da porta e do telhado, grande silêncio haveria nessa noite em Mafra para que um simples cravo, tocado no palácio do visconde, com portas e janelas fechadas por causa do frio, e frio não estivesse, assim impunha a decência, pudesse ser ouvido por um velho que a idade ia ensurdecendo, ainda se fossem Blimunda e Baltasar,esses diriam, É o senhor Escarlate que está a tocar, é bem verdade que pelo dedo se conhece o gigante, isto dizemos nós, uma vez que existe o provérbio e vem a propósito. Ao outro dia, no crepúsculo da madrugada, enquanto se acomodava ao canto da lareira, o velho disse, Esta noite ouvi uma música, não lhe ligaram importância Inês Antónia, nem Álvaro Diogo, nem o neto, isto de velhos estão sempre a ouvir coisas, mas Baltasar e Blimunda ficaram tristes de ciúme, se alguém ali tinha direito a ouvir músicas assim, eles eram, e mais ninguém. Foi ele para o trabalho, e ela ficou rondando durante toda a manhã o palácio.

Domenico Scarlatti pedira licença ao rei para ir ver as obras do convento. Recebeu-o o visconde em sua casa, não porque fosse excessivo o seu gosto pela música, mas, sendo o italiano mestre da capela real e professor da infanta D. Maria Bárbara, figurava, por assim dizer, uma emanação corpórea do paço. Nunca se sabe quando agasalhos rendem mercês e, não sendo casa de visconde hospedaria, vale a pena, em todo caso, fazer o bem olhando a quem. Tocou Domenico Scarlatti no cravo desafinado do visconde, à tarde o ouviu a viscondessa, tendo ao colo sua filha Manuela Xavier, só de três anos, de quantos estiveram no salão a mais atenta foi ela, agitava os deditos como via Scarlatti fazer, o que muito acabou por incomodar a mãe, por isso a passou para os braços da ama. Não vai haver muita música na vida desta criança, à noite estará dormindo quando Scarlatti tocar, daqui a dez anos morrerá e será sepultada na igreja de Santo André, onde ainda está, se no mundo há lugar e caminho para prodígios e maravilhas, talvez por baixo da terra lhe cheguem as músicas que a água estará dedilhando no cravo que foi lançado ao poço de S. Sebastião da Pedreira, se poço continua, que o fim dos mananciais é secarem e depois entulham-se as minas.

Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e estranhando não fizesse logo seus juízos muito duvidosos, ver a mulher do Sete-Sóis conversando de igual com o músico que está em casa do visconde, que terá ele vindo cá fazer, ora veio ver as obras do convento, para quê se não é pedreiro nem arquitecto, para organista ainda o órgão nos falta, isso a razão há-de ser outra, Vim-te dizer, e a Baltasar, que o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco, e como não se falava de ti nem de Baltasar, resolvi vir a Mafra saber se estavam vivos. Blimunda juntou as mãos, não como se rezasse, mas como quem estrangula os próprios dedos, Morreu, Foi essa a notícia que chegou a Lisboa, Na noite em que a máquina caiu na serra, o padre Bartolomeu Lourenço fugiu de nós e nunca mais voltou, E a máquina, Lá continua, que faremos com ela, Defendam-na, cuidem-na, pode ser que um dia volte a voar Quando foi que morreu o padre Bartolomeu Lourenço, Diz-se que foi no dia dezanove de Novembro, por sinal que nessa data houve em Lisboa uma grande tempestade, se o padre Bartolomeu de Gusmão fosse santo seria um sinal do céu, Que é ser santo, senhor Escarlate, Que é ser santo, Blimunda.

Ao outro dia, Domenico Scarlatti partiu para Lisboa. Numa volta do caminho, fora da vila, esperavam-no Blimunda e Baltasar, este perdera um quartel para poder despedir-se. Aproximaram-se da sege como quem ia pedir uma esmola, Scarlattz mandou parar e estendeu-lhes as mãos, Adeus, Adeus. Ao longe ouvia-se o rebentar dos tiros de pólvora, parece uma festa, o italiano vai triste, não admira, se vem da festa, mas tristes vão os outros também, quem diria, se voltam para a festa.

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