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Memorial do Convento José Saramago

Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ela está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito. Dos julgamentos do Santo Ofício não se fala aqui, que esse tem bem abertos os olhos, em vez de balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue que o raminho é oferta de paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo, por isso é que, havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo os pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justa justiça deveria vencer cedo, para que tardeperca quem deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum é porque o esqueceu o padre António Vieira e agora não lembra.

Estas são as justiças visíveis. Das invisíveis, o menos que se poderia dizer é que são cegas e desastradas, como ficou definitivamente demonstrado naufragando o barco em que vinham de caçar na outra banda do Tejo o infante D. Francisco e o infante D. Miguel, ambos manos de el-rei, deu-lhes uma rajada de vento sem avisar e virou-lhes a vela, caso foi ele que morreu afogado D. Miguel e se salvou D. Francisco, quando honrada justiça seria o contrário, conhecidas como são as maldades deste, desencaminhar a rainha, cobiçar o trono de el-rei, dar tiros em marinheiros, ao passo que do outro não constam, ou são de somenos. Porém, não devemos julgar com leviandade, quem sabe se não se arrependeu já D. Francisco, quem sabe se não pagou D. Miguel com a vida ter andado a cornear o mestre da barca ou a enganar-lhe a filha, a história das famílias reais está cheia destas acções.

O que, finalmente, veio a saber-se, foi ter perdido el-rei a demanda em que andava, não ele em pessoa, mas a coroa, com o duque de Aveiro, desde mil seiscentos e quarenta, durante mais de oitenta anos metidas em tribunais as duas casas, a casa de Aveiro e a casa real, e não se tratava de nenhuma brincadeira, nenhuma questão de águas ou estremas, duzentos mil cruzados de renda, imagine-se., três vezes os direitos que el-rei cobra pelos pretos que vão para as minas do Brasil. Afinal, sempre há justiça neste mundo, e por causa de haver ela vai ter agora el-rei de restituir ao duque de Aveiro todos os bens, que a nós importam pouco, incluindo a quinta de S. Sebastião da Pedreira, chave, poço, pomar e palácio, que ao padre Bartolomeu Lourenço não importam muito, o pior é a abegoaria. Mas, não vindo juntos todos os males, chegou a sentença em bom tempo, pois está rematada e pronta a máquina de voar, já podem ser dadas contas a el-rei, que tantos anos esperou sem que se lhe alterasse a real paciência, sempre afável de modos, sempre benévolo, porém agora está o padre naquela conhecida situação do criador que não pode separar-se da criatura, do sonhador que vai perder o sonho, Voando a máquina, que vou eu fazer depois,é certo que lhe não faltam ideias de invenção, o carvão feito de lama e mato, um novo modo de morrer para os engenhos do açúcar, mas a passarola é que é a suprema invenção, jamais haverá asas que igualem estas, exceto, poderosas mais que todas, as que nunca chegam a ser sujeitas à prova do voo.

Em S. Sebastião da Pedreira, querem Baltasar e Blimunda saber que rumo hão de dar à vida, não tardam aí os criados do duque de Aveiro a tomar conta da quinta, Melhor seria voltarmos para Mafra. Mas o padre diz que não, que falará a el-rei por estes dias, far-se-á então a prova da máquina, e, correndo bem tudo, como se espera, para todos haverá glória e proveito, a fama levará a todas as partes do mundo notícia do feito português, com fama virá a riqueza, O que meu for é do nós três, sem os teus olhos, Blimunda, não haveria passarola, nem sem a tua mão direita e a tua paciência, Baltasar. Mas o padre inquieto, dir-se-ia que não crê no que diz, ou tem o que diz tão pouco valor que não lhe alivia outras inquietações. por isso Blimunda pergunta, em voz muito baixa, é noite, a forja está apagada, a máquina ainda ali continua, mas parece ausente,Padre Bartolomeu Lourenço, de que é que tem medo, e o padre, assim interpelado diretamente, estremece, levanta-se agitado, vai até à porta, olha para fora, e, tendo voltado, responde emvoz baixa, Do Santo Ofício. Entreolharam-se Baltasar e Bilmunda, e ele disse, Não é pecado, que eu saiba, nem heresia, querer voar, ainda há quinze anos voou um balão no paço e daínão veio mal, Um balão é nada, respondeu o padre, voe agora a máquina e talvez que o Santo Ofício considere que há arte demoníaca nesse voo, e quando quiserem saber que partes fazem navegar a máquina pelos ares, não poderei responder-lhe que estão vontades humanas dentro das esferas, para o Santo Ofício não há vontades, há só almas, dirão que as mantemos presas, a almas cristãs, e as impedimos de subir ao paraíso, bem sabem que, querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e boas todas as razões más, e quando umas e outras faltem, lá estão os tormentos da água e do fogo, do potro e da polé, para fazê-las nascer do nada e à discrição, Mas, estando el-rei do nosso lado, o Santo Ofício não irá contra o gosto e a vontade de sua majestade, El-rei, sendo caso duvidoso, só fará o que o Santo Ofício lhe disser que faça.

Tornou Blimunda a perguntar, De que tem mais medo, padre Bartolomeu Lourenço, do que poderá vir a acontecer, ou do que está acontecendo, Que queres dizer, Que já o Santo Ofício acaso se está aproximando como se aproximou de minha mãe, conheço bem os sinais, é como uma aura que envolve aqueles que se tornaram suspeitos aos olhos dos inquisidores, ainda não sabem do que vão ser acusados e já parecem culpados, Eu sei do que me acusarão, se a minha hora chegar, dirão que me converti ao judaísmo, e é verdade, dirão que me entrego a feitiçarias, e também verdade é, se feitiçaria é esta passarola e outras artes em que não paro de meditar, e com o que acabo de dizer estou nas mãos de ambos e perdido estarei se me forem denunciar. Disse Baltasar, Perdesse eu a outra mão, se tal fizesse. Disse Blimunda, Se tal fizesse, não pudesse eu mais fechar os olhos e vissem sempre eles como em jejum constante.

Encerrados na quinta, Baltasar e Blimunda assistem ao passar dos dias. Agosto acabou, Setembro vai em meio, já andam as aranhas a tecer os seus fios na passarola, levantando velas suas, acrescentando asas, o cravo do senhor Escarlate ao tempo que não toca, não há lugar mais triste no mundo que S. Sebastião da Pedreira. A estação arrefeceu, o sol esconde-se por muitas horas, como se há-de fazer a prova da máquina estando o céu coberto, se o padre Bartolomeu Lourenço se esqueceu de que sem sol não se levantará do chão a máquina e aparece aí com el-rei, será a pior das vergonhas, capaz de pintar a minha cara de preto. Não veio el-rei, não veio o padre, o céu apareceu limpo outra vez, o sol brilhou, e Blimunda e Baltasar tornaram à mesma ansiosa espera. Então o padre chegou. Ouviram fora do portão os cascos da mula batendo com força, insólito caso, que isto não é animal de arrebatamentos, temos novidade, talvez finalmente venha assistir el-rei ao grande levantamento da passarola, mas assim, sem aviso, sem virem primeiro criados da sua casa averiguar da limpeza do lugar, assegurar as comodidades, levantar os pavilhões, há-de ser outra coisa. Era outra coisa. O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria, vinha pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse apodrecendo, Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, onde estão os frascos. Blimunda abriu a arca, retirou umas roupas, Estão aqui, e Baltasar perguntou, Que vamos fazer. O padre tremia todo, mal podia sustentar-se de pé, Blimunda amparou-o, Que faremos, repetiu, e ele gritou, Vamos fugir na máquina, depois, como subitamente assustado, murmurou quase inaudivelmente, apontando a passarola, Vamos fugir nela, Para onde, Não sei, o que é preciso é fugir daqui. Baltasar e Blimunda olharam-se demoradamente, Estava escrito, disse ele, Vamos, disse ela.

São duas horas da tarde e há tanto trabalho a fazer, não se pode perder um minuto, retirar as telhas, cortar as ripas e os barrotes que não puderem ser arrancados, mas antes disso colocar as bolas de âmbar nos cruzamentos dos arames, abrir as velas superiores para que a luz do sol não caia cedo de mais sobre a máquina, transferir para as esferas as duas mil vontades, mil deste lado, mil daquele, não vão puxar umas mais que outras, com perigo de dar a máquina uma cambalhota no ar, se tiver de dá-la, que seja por razões que não podíamos prever. Tanto trabalho ainda, e tão pouco o tempo. Baltasar já está no telhado, retirando as telhas e lança-as para baixo, vai um estrilho de cacos em redor da abegoaria, e o padre Bartolomeu Lourenço conseguiu vencer a prostração em que estava, e usa as suas fracas forças para arrancar, de dentro, as ripas mais delgadas, que os barrotes requerem um vigor que lhe falta, esses vão ter de esperar, enquanto Blimunda, calma como se em toda a sua vida não tivesse feito mais que voar, verifica o estado das velas, se o breu está espalhado por igual, e reforça algumas bainhas.

E agora que farás tu, Anjo Custódio, nunca tão necessário foste desde que te nomearam para esse lugar, aqui tens estes três que não tarda se erguerão aos ares, lá aonde nunca foram homens, e precisam de quem os proteja, eles por eles já fizeram quanto podiam, reuniram os materiais e as vontades, conjugaram o sólido e o evanescente, juntaram tudo à sua própria ousadia, estão prontos, é só acabar de tirar este telhado, fechar as velas, deixar entrar o sol, e adeus, cá vamos, se tu, Anjo Custódio, não ajudares ao menos um poucochinho, não és anjo nem coisa nenhuma, claro está que não faltam santos invocáveis, mas nenhum é, como tu, aritmético, tu sim, que sabes as treze palavras, e de uma a treze, sem falha, as enumeras, e sendo esta uma obra que requer todas as geometrias e matemáticas que se puderem reunir, podes começar já pela primeira palavra, que é a Casa de Jerusalém onde Jesus Cristo morreu por todos nós, é o que dizem, e agora as duas palavras, que são as duas Tábuas de Moisés onde Jesus Cristo pôs os pés, é o que dizem. E agora as três palavras, que são as três pessoas da Santíssima Trindade, é o que dizem, e agora as quatro palavras, que são os quatro evangelistas, João, Lucas, Marcos e Mateus, é o que dizem, e agora as cinco palavras, que são as cinco chagas de Jesus Cristo, é o que dizem, e agora as seis palavras, que são os seis círios bentos que Jesus Cristo teve no seu nascimento, é o que dizem, e agora as sete palavras, que são os sete sacramentos, é o que dizem, e agora as oito palavras, que são as oito bemaventuranças, é o que dizem, e agora as nove palavras, que são os nove meses que Nossa Senhora trouxe o seu bendito filho no seu puríssimo ventre, é o que dizem, e agora as dez palavras, que são os dez mandamentos da lei de Deus, é o que dizem, e agora as onze palavras, que são as onze mil virgens, é o que dizem, e agora as doze palavras, que são os doze apóstolos, é o que dizem, e agora as treze palavras, que são os treze raios que tem a lua, e isto sim, não é preciso que o digam, porque pelo menos está Sete-Luas aqui, é aquela mulher que tem na mão um frasco de vidro, cuida dela. Anjo Custódio, se se parte o vidro, lá se vai a viagem e não poderá fugir aquele padre que pelos modos parece louco, cuida também do homem que está no telhado, falta-lhe a mão esquerda, foi culpa tua, estavas desatento lá na batalha, talvez ainda não soubesses bem a tua tabuada.

São quatro horas da tarde, a abegoaria é só paredes, parece imensa, a máquina de voar ao meio, a forja minúscula cortada por uma faixa de sombra, no outro extremo o canto da enxerga onde durante seis anos dormiram Baltasar e Blimunda, a arca já não está, transportaram-na para dentro da passarola, que mais nos falta, os alforges, alguma comida, e o cravo, que se há-de fazer do cravo, pois que fique, são egoísmos que devemos compreender e desculpar, tanta é a aflição, nenhum destes três se lembra de que, ficando o cravo, as justiças eclesiásticas e seculares hão-de sentir despertar a curiosidade, porquê e para quê está aqui um instrumento tão pouco adequado ao sítio, e se foi um tufão que arrancou as telhas e o travejamento, como é possível que não tenha destruído o cravo, tão delicado que até mesmo a ombro de carregadores se lhe desacertaram os saltarelos, Não tocará o senhor Escarlate no céu, disse Blimunda.

Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro, depois Baltasar que segura a corda com que se fecharão as velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat, diz-se e aparece feito, o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para onde. Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda. A vela correu toda para um lado, o sol bateu em cheio nas bolas de âmbar, e agora, que vai ser de nós. A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de ferro, os vimes entrançados, e de repente, como se a aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos que sustentavam as velas, e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível, já mal se distinguia a quinta, logo perdida entre colinas, e aquilo além, que é, Lisboa, claro está, e o rio, oh, o mar, aquele mar por onde eu, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do Brasil, o mar por onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás tu, máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão alto se me visse el-rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse, saberiam todos que sou filho predilecto de Deus, eu sim, eu que estou subindo ao céu por obra do meu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá no céu olhos como eles, por obra da mão direita de Baltasar, aqui te levo, Deus um que também não tem a mão esquerda, Blimunda, Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham medo.

Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem. O padre ria, dava gritos, deixara já a segurança do prumo e percorria o convés da máquina de um lado a outro para poder olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, tão grande agora que estavam longe dela, enfim levantaram-se Baltasar e Blimunda, agarrando-se nervosamente aos prumos, depois à amurada, deslumbrados de luz e de vento, logo sem nenhum susto, Ah Baltasar gritou, Conseguimos, abraçouse a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja, então, então. O padre veio para eles e abraçou-se também, subitamente perturbado por uma analogia, assim dissera o italiano, Deus ele próprio, Baltasar seu filho, Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus, gritou, mas o vento levou-lhe as palavras da boca. Então Blimunda disse, Se não abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.

Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco. São maneiras de nos segurarmos do lado de cá, imagine-se, darem os doidos como pretexto para exigir igualdades no mundo dos sensatos, só loucos um pouco, o mínimo juízo que conservem, por exemplo, salvaguardarem a própria vida, como está fazendo o padre Bartolomeu Lourenço, Se abrirmos de repente a vela, cairemos na terra como uma pedra, e é ele quem vai manobrar a corda, dar-lhe a folga precisa para que se estenda a vela sem esforço, tudo depende agora do jeito, e a vela abre-se devagar, faz descer a sombra sobre as bolas de âmbar e a máquina diminui de velocidade, quem diria que tão facilmente se poderia ser piloto nos ares, já podemos ir à procura dasnovas Índias. A máquina deixou de subir, está parada no céu, de asas abertas, o bico virado para o Norte, se se está movendo, não parece. O padre abre mais a vela, três quartas partes das bolas de âmbar estão já à sombra, e a máquina desce suavemente, é como estar dentro de um bote num lago tranquilo, um jeito no leme, um harpejo de remo, as coisas que um homem é capaz de inventar. Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul, como levantariam os olhos se estão aterrados diante de uma Bíblia rasgada na altura do Pentateuco, de um Alcorão feito em pedaços indecifráveis, e já saem, vão na direcção do Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não adivinham que o protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos, excessivos, mas não familiares do Santo Ofício. Desce a passarola um pouco mais, com algum esforço se observa a quinta do duque de Aveiro, é certo que estes aviadores são principiantes, falta-lhes a experiência que permitiria identificar de relance os acidentes principais, os cursos de água, as lagoas, as povoações como estrelas derramadas no chão, as escuras florestas, mas lá estão as quatro paredes da abegoaria, o aeroporto donde levantaram voo, lembra-se o padre Bartolomeu Lourenço de que tem um óculo na arca, em dois tempos o vai buscar e aponta, oh que maravilha é viver e inventar, vê-se claramente, a enxerga ao canto, a forja; só o cravo desapareceu, que foi que aconteceu ao cravo, nós o sabemos e vamos dizer, que indo Domenico Scarlatti à quinta, viu, já chegando perto, levantar-se de repente a máquina, num grande sopro de asas, que faria se elas batessem, e tendo entrado deu com os destroços da largada, as telhas partidas, espalhadas pelo chão, as ripas e os barrotes cortados ou arrancados, não há nada mais triste que uma ausência, corre o avião pista fora, levanta-se ao ar, só fica uma pungente melancolia, esta que faz sentar-se Domenico Scarlatti ao cravo e tocar. um pouco, quase nada, apenas passando os dedos pelas teclas como se estivessem aflorando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos, e depois, porque muito bem sabe ser perigoso deixar ali o cravo, arrasta-o para fora, sobre o chão irregular, aos solavancos, gemem desencontradas as cordas, agora sim se desacertarão os saltarelos e vai ser para nunca mais, levou Scarlatti o cravo até ao bocal do poço, felizmente que é baixo, e levantando-o em peso, muito lhe custa, o precipita a fundo, bate a caixa duas vezes na parede interior, todas as cordas gritam, e enfim cai na água, ninguém sabe o destino para que está guardado, cravo que tão bem tocava, agora descendo, gorgolejando como um afogado, até assentar no lodo. Do alto já não se vê o músico, vai por aí, por essas azinhagas, porventura desviando o caminho, porventura olhando para cima, torna a ver a passarola, acena com o chapéu, uma vez só, melhor é disfarçar, fingir que não sabe nada, por isso não o viram da nave, quem sabe se tornarão a encontrar-se.

O vento está do Sul, uma brisa que mal faz agitar os cabelos de Blimunda, com esta aragem não poderão ir a lado algum, seria o mesmo que querer atravessar o oceano a nado, por isso Baltasar pergunta, Dou ao fole, todas as moedas têm duas faces, primeiro proclamou o padre, Só há um Deus, agora quer Baltasar saber, Dou ao fole, primeiro o sublime, depois o trivial, quando Deus não sopra, tem o homem de fazer força. Mas o padre Bartolomeu Lourenço parece ter sido tocado por um ramo de estupor, não fala, não se mexe, apenas olha o grande círculo da terra, uma parte de rio e mar, uma parte de monte e planície, se aquilo não é espuma, além, será a vela branca duma nau, se não for farrapo de névoa é fumo de chaminé, e contudo dir-se-ia que o mundo acabou, os homens nele, o silêncio aflige, e o vento caiu, nem um cabelo de Blimunda semove, Dá ao fole, Baltasar, disse o padre. É como a pedaleira de um órgão, tem umas sapatas para encaixe dos pés, e, à altura do peito, fixada ao cavername da máquina, há uma barra para apoio dos braços, não é nenhuma invenção complementar do padre Bartolomeu Lourenço, foi ir à sé patriarcal e imitar do órgão que lá está, a diferença é que neste não há música para ouvir, apenas o resfolgo do sopro atirado para as asas e para a cauda da passarola, que finalmente começa a mover-se, devagar, tão devagar que só de a ver assim cansa, e ainda não chegou a voar um tiro de besta já é Baltasar que está cansado, também desta maneira não vamos a parte alguma. De cara fechada, o padre avalia os esforços de Sete-Sóis, compreende que a sua grande invenção tem um ponto fraco, no espaço celeste não se pode fazer como na água, meter os remos ao ar quando falta o vento, Pára, não dês mais aos foles, e Baltasar, esgotado, senta-se no fundo da máquina.

O susto, o júbilo, cada qual de sua vez, já passaram, agora vem o desânimo, subir e descer sabem eles, estão como homem que fosse capaz de levantar-se e deitar-se mas não de andar. O sol vai baixando para o lado da barra, já se estendem as sombras na terra. O padre Bartolomeu Lourenço sente uma inquietação cuja causa não consegue discernir, mas dela o distrai a súbita observação de que se orientam para o norte as nuvens de fumo de uma queimada distante, quer isto dizer que, próximo da terra, o vento não deixou de soprar. Manobra a vela, estende-a um pouco mais, de modo a cobrir de sombra outra fileira de bolas de âmbar, e a máquina desce bruscamente, porém não o bastante para apanhar o vento. Mais uma fileira deixa de receber a luz do sol, a queda é tão violenta que o estômago parece querer saltar-lhes pela boca, e agora sim, o vento colhe a máquina com uma mão poderosa e invisível e lança-a para a frente, com tal velocidade que de repente fica Lisboa para trás, já no horizonte, diluída numa bruma seca, é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam que adamastores, que fogos de santelmo acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tornam a dar salgado. Então Blimunda perguntou, Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá aonde não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar.

Este povo, que tanto espera do céu, olha pouco para o alto onde se diz que o céu é. Anda gente a trabalhar nos campos, as pessoas, nas aldeias, entram e saem das casas, vão ao quintal, à fonte, agacham-se atrás dum pinheiro, só uma mulher. que está deitada num restolho com um homem em cima de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias de quem está a gostar tanto. Só as aves, curiosas, voam, e perguntam, girando em redor da máquina ansiosamente, que é, que é, talvez seja este o messias dos pássaros, em comparação, a águia não passa de um S. João Baptista qualquer, Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, a história da aviação não acaba aqui. Durante algum tempo voaram acompanhados por um milhafre que assustara e fizera fugir todos os pássaros, iam só os dois, o milhafre adejando e pairando, percebe-se que voe, a passarola sem mover as asas, não soubéssemos nós que isto é feito de sol, âmbar, nuvens fechadas, ímanes e lamelas de ferro, e não acreditaríamos no que os nossos olhos vêem, além de que não teríamos a desculpa da mulher que estava deitada no restolho e já não está, acabou -se-lhe o gosto, daqui nem o sítio se vê.

O vento mudou para Sudeste, sopra com muita força, a terra passa em baixo como a superfície móvel de um rio que transportasse na corrente campos, bosques, aldeias, cores de verde e amarelo, ocres e castanhos, paredes brancas, velas de moinhos, e também fios de água sobre a água, que forças seriam capazes de fazer a separação dessas águas, o grande rio que passa e tudo leva consigo, os pequenos regatos que nele procuram caminho, água dentro da água, e não o sabem.

Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce é pânico já, enfim vai ter voz, e essa voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todosmorrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo visto do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasargrita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo. Passam velozmente sobre as obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira pedras, o alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver duvida, quem viu, jura e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém as pode apresentar porque a máquina afastou-se na direcção do sol, tornou-se invisível contra o disco refulgente, talvez não tivesse sido mais que uma alucinação, já os cépticos triunfam sobre a perplexidade dos que acreditaram.

Em poucos minutos, a máquina atinge a costa do mar, parece que a está puxando o sol para a levar ao outro lado do mundo. O padre Bartolomeu Lourenço compreende que vão cair na água, puxa violentamente a corda, a vela corre toda para um lado, fecha-se de golpe, e a subida é tão rápida que a terra se alarga de novo e o sol surge muitoacima do horizonte. É demasiado tarde, porém. Para o lado do oriente já se avistam sombras, a noite está-se aproximando, não é possível fugir-lhe. Pouco a pouco, a máquina começa a derivar para nordeste, em linha recta, obliquando na direcção da terra, sujeita à dupla atracção da luz, que rapidamente enfraquece, mas ainda tem forças para a sustentar no espaço, e da escuridão nocturna, que já oculta os vales distantes. Agora não se sente o vento natural, vencido pela violenta corrente de ar provocada pela descida, pelo silvo agudo que a deslocação faz vibrar na cobertura de vime. O sol está pousado no horizonte do mar, como uma laranja na palma da mão, é um disco metálico retirado da forja para arrefecer, já o seu brilho não fere os olhos, foi branco, cereja, rubro, vermelho, ainda fulge, mas sombriamente, está a despedir-se, adeus, até amanhã, se houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma ave ferida de morte, mal equilibrada nas asas curtas, com o seu diadema de âmbar, em círculos concêntricos, queda que parece infinita e vai acabar. Na frente deles erguese um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada. O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do mundo, para além da própria resignação, espera o fim que não vai tardar. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontádes, duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter dentro de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes; já ele se abraçara com a outra esfera, fazia corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado, não havia ali espeques para a receber, é que não se pode ter tudo. Frouxos de membros, extenuados, os três viajantes escorregaram para fora, tentaram ainda segurar-se à amurada, não o conseguiram, e, rolando, acharam-se estendidos no chão, nem sequer feridos de raspão, é bem verdade que não se acabaram os milagres, e este foi dos bons, nem foi preciso invocar S. Cristóvão, ele lá estava, vigiando o trânsito, viu aquele avião desgovernado, deitou-lhe a grande mão e evitou a catástrofe, para seu primeiro milagre aéreo não esteve nada mal.

Despede-se o último ar de dia, não tarda que se feche a noite completamente, luzem no céu as primeiras estrelas, nem por terem estes chegado tão perto puderam alcançá-las, afinal das contas, que foi isto, o salto duma pulga, subimos ao ar em Lisboa, sobrevoámos a vila de Mafra e a obra do convento, estivemos prestes a cair ao mar, e agora, Onde estamos, perguntou Blimunda, e gemeu porque o estômago lhe doía muito, os braços tinha-os quebrados de forças, inertes, do mesmo se estava queixando Baltasar enquanto se punha de pé e tentava endireitar-se, cambaleando como os bois antes de caírem redondos com o crânio perfurado pela choupa, muita sorte a sua, que, ao contrário deles, passava da quase morte para a vida, não lhe faz mal nenhum cambalear, para que saiba quanto vale poder assentar os pés no chão, Não conheço onde estamos, nunca estive neste sítio, a mim parece-me uma serra, talvez o padre Bartolomeu Lourenço tenha informações. O padre estava a levantar-se, não lhe doíam os membros nem o estômago, apenas a cabeça, mas essa era como se um estilete lhe perfurasse de lado a lado as fontes, Estamos em tão grande perigo como se não tivéssemos chegado a sair da quinta, se ontem não nos encontraram, encontram-nos amanhã, Mas este lugar onde estamos, como se chama, Todo o lugar da terra é antecâmara do inferno, umas vezes vaise morto a ele, outras vai-se vivo e a morte é depois que vem, Por enquanto ainda estamos vivos, Amanhã estaremos mortos.

Blimunda aproximou-se do padre, disse, Passámos por um grande perigo quando descemos, se fomos capazes de nos livrar desse, doutros também nos livraremos, diga para onde devemos ir, Não sei onde estamos, Quando nascer o dia, veremos melhor, subiremos a um destes montes, e de lá, orientando-nos pelo sol, acharemos caminho, e Baltasar acrescentou, Faremos subir a máquina, já conhecemos as manobras, se O vento nos não faltar, um dia inteiro dará para chegarmos longe, onde o Santo Ofício o não alcance. O padre Bartolomeu Lourenço não respondeu. Apertava a cabeça entre as mãos, depois fazia gestos como se conversasse com um ser invisível, e o seu vulto tornava-se cada vez mais impreciso na escuridão. A máquina pousara num espaço coberto de mato rasteiro, mas, a trinta passos para um lado e para outro, havia moitas altas que se recortavam contra o céu. Tanto quanto dali se podia julgar, não havia sinais de gente nas proximidades. A noite arrefecera muito, nem admirava, Setembro estava no fim e o dia não fora quente. Na revessa da máquina, abrigado do vento, Baltasar acendeu um pequeno lume, mais por se sentirem acompanhados do que para se aquecerem, não convindo, aliás, fazer grande fogueira que poderia ser vista de longe. Sentaram-se, ele e Blimunda, a comer do que traziam no alforge, primeiro chamaram o padre, mas ele não respondeu nem se aproximou, via-se o seu vulto, de pé, agora quieto, talvez estivesse olhando as estrelas, talvez o vale profundo, as terras baixas onde não brilhava uma só luz, parecia que o mundo tinha sido abandonado pelos seus habitantes, afinal não faltavam por aí máquinas voadoras capazes de viajar com qualquer tempo, até de noite, foi-se toda a gente embora, ficaram estes três com um passaroco que nãv sabe para onde há-de ir se lhe tiram o sol.

Depois de terem comido, deitaram-se sob o casco da máquina, cobertos com o capote de Baltasar e um pano de vela que tiraram da arca, e Blimunda murmurou, Está doente o padre Bartolomeu Lourenço, não parece o mesmo homem Há muito tempo que não é o mesmo homem, que se lhe há-de fazer, E nós, que faremos, Não sei, porventura tomará ele amanhã uma resolução. Ouviram o padre mexer-se, arrastar os pés no mato, ouviram-no murmurar, com isso se tranquilizaram, o pior de tudo era o silêncio, e, apesar do frio e do desconforto, adormeceram, mas não profundamente. Ambos sonhavam que viajavam pelo ar, Blimunda num coche puxado por cavalos com asas, Baltasar cavalgando um touro que levava uma manta de fogo, de repente os cavalos perdiam as asas e ateavase o rastilho, começavam a rebentar os foguetes, e na aflição do pesadelo ambos acordaram, não tinham dormido muito, havia um clarão como se o mundo estivesse a arder, era o padre com um ramo inflamado que pegava fogo à máquina, já a cobertura de vime estalava, e de um salto Baltasar pôs-se de pé, foi para ele, e deitando-lhe os braços à cintura puxou-o para trás, mas o padre resistia, de modo que Baltasar o apertou com violência, atirou-o ao chão, calcou a pés o archote, enquanto Blimunda batia com o pano de vela as chamas que tinham alastrado ao mato e agora, aos poucos, se deixavam apagar. Vencido e resignado, o padre levantou-se. Baltasar cobria com terra a fogueira. Mal conseguiam ver-se no escuro. Blimunda perguntou em voz baixa, num tom neutro, como se conhecesse de antemão a resposta, Porque foi que deitou fogo à máquina, e Bartolomeu Lourenço respondeu, no mesmo tom, como se estivesse à espera da pergunta, Se tenho de arder numa fogueira, fosse ao menos nesta. Afastou-se para as moitas que ficavam da banda do declive, viram-no baixar-se rapidamente, e, olhando outra vez, já lá não estava, alguma necessidade urgente do corpo, se ainda as tem um homem que quis deitar fogo a um sonho. O tempo passava, o padre não reaparecia. Baltasar foi buscá-lo. Não estava. Chamou por ele, não teve resposta. A lua começava a nascer, cobria tudo de alucinações e de sombras, e Baltasar sentiu que se lhe arrepiavam os cabelos da cabeça e do corpo. Pensou em lobisomens, em avantesmas de feitio e porte vário, se andariam por ali almas penadas, acreditou firmemente que o padre tinha sido levado pelo demónio em pessoa, e antes que o mesmo demónio dali o levasse também a espernear, rezou um padre-nosso a Santo Egídio, santo auxiliar e intercessor em casos e situações de pânico, epilepsia, loucura e temores nocturnos. Terá o santinho ouvido a invocação, pelo menos não veio o diabo buscar a Baltasar, porém os temores é que não se dissiparam, de repente toda a terra começou a murmurar, era o que parecia, talvez efeito da lua, melhor santa me será Sete-Luas, por isso a ela voltou, ainda a tremer do susto, Sumiu-se, e Blimunda, declarou, Foi-se embora, não o tornaremos a ver.

Mal dormiram nessa noite. O padre Bartolomeu Lourenço não voltou. Ao amanhecer, nasceria o sol daí a pouco, Blimunda disse, Se não estenderes a vela, se não tapares bem tapadas as bolas de âmbar, a máquina vai-se sozinha, nem precisa de quem a governe, talvez fosse melhor deixá-la ir, porventura se encontraria em algum lugar da terra ou do céu com o padre Bartolomeu Lourenço, e Baltasar respondeu, num rompante violento, Ou no inferno, a máquina, onde está, fica, e foi estender a vela embreada, cobrir de sombra o âmbar, mas não ficou satisfeito, podia a vela rasgar-se, ser afastada pelo vento. Com a faca cortou ramos das moitas altas, cobriu com eles a máquina, e, passada uma hora, dia claro, quem de longe olhasse naquela direcção não veria mais que um amontoado vegetal no meio de um espaço de mato rasteiro, não é tão raro assim, o pior vai ser quando tudo isto secar. Do que sobejara da véspera almoçou Baltasar um pouco, Blimunda antes, é sempre a primeira a comer, fechados os olhos, como estamos lembrados, hoje até escondera a cabeça debaixo do capote de Baltasar. Não têm mais que fazer aqui, E agora, perguntou um deles, e o outro respondeu, Não temos mais nada que fazer aqui, Então vamos, Descemos pelo sítio onde estava o padre Bartolomeu Lourenço quando desapareceu, talvez lhe encontremos o rasto. Durante toda a manhã procuraram daquele lado da serra, enquanto baixavam do alto, grandes montes redondos e silenciosos, que nome teriam, e nem um sinal descobriram, uma pegada que fosse, um farrapo preto que espinhos tivessem agarrado, parecia que o padre se sumira nos ares, onde irá a estas horas, E agora, esta foi a pergunta de Blimunda, Agora vamos em frente, o sol está além, para a direita fica o mar, em alcançando lugar de gente, saberemos onde estamos, que serra é esta, quando quisermos cá voltar, Isto aqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, légua andada, e aquele monte além, muito grande, é Monte Junto.

Levaram dois dias a chegar a Mafra, depois de um largo rodeio, por fingimento de que vinham de Lisboa. Andava procissão na rua, todos dando graças pelo prodígio que fora Deus servido fazer, mandando voar por cima das obras da basílica o seu Espírito Santo.


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