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Memorial do Convento José Saramago

Meses passados, um frade consultor do Santo Ofício, na sua censura ao sermão, escreveu que, por tal papel, se ficavam a dever ao autor mais aplausos que sustos, mais admirações que dúvidas. Algum rebate de incomodidade há-de ter experimentado este frei Manuel Guilherme, ao mesmo tempo que ia aprovando as admirações e reconhecendo os aplausos, algum fumozinho herético lhe terá passado à pituitária, para assim não conseguir calar os sustos e dúvidas que a leitura do sermão lhe teria lançado ao piedoso espulgar. E outro reverendo padre mestre, Dom António Caetano de Sousa, chegando-lhe a vez de ler e censurar, confirma que o revisto papel nada continha contra a santa fé ou bons costumes, não releva as dúvidas e os sustos que parece terem apoquentado a primeira instância, e, por argumento conclusivo, encarece as atenções com que a corte extensamente distingue o doutor Bartolomeu Lourenço de Gusmão, assim branqueando por via paçã negruras doutrinais porventura reclamativas de mais fundo descasque. Porém, a palavra derradeira virá a ser encontrada pelo padre frei Boaventura de S. Gião, censor do paço, que, depois de desmanchar-se em louvores e pasmações, remata que só a voz do silêncio poderia ser a melhor expressão das suas vozes, que, diz ele, suspensas ficariam mais atentas, e emudecidas mais reverentes. Caso é para perguntarmos, nós que da verdade conhecemos parte maior, que outras atroadoras vozes ou mais terríveis silêncios responderiam às palavras que as estrelas ouviram na quinta do duque de Aveiro, enquanto Baltasar e Blimunda, cansados, dormiam, e a passarola, na escuridão da abegoaria, esforçava todos os ferros para entender o que estava dizendo lá fora o seu criador.

Três, se não quatro, vidas diferentes tem o padre Bartolomeu Lourenço, e uma só apenas quando dorme, que mesmo sonhando diversamente não sabe destrinçar, acordado, se no sonho foi o padre que sobe ao altar e diz canonicamente a missa, se o académico tão estimado que vai incógnito el-rei ouvir-lhe a oração por trás do reposteiro, no vão da porta, se o inventor da máquina de voar ou dos vários modos de esgotar sem gente as naus que fazem água, se esse outro homem conjunto, mordido de sustos e dúvidas, que é pregador na igreja, erudito na academia, cortesão no paço, visionário e irmão de gente mecânica e plebeia em S. Sebastião da Pedreira, e que torna ansiosamente ao sonho para reconstruir uma frágil, precária unidade, estilhaçada mal os olhos se lhe abrem, nem precisa estar em jejum como Blimunda. Abandonara a leitura consabida dos doutores da Igreja, dos canonistas, das formas variantes escolásticas sobre essência e pessoa, como se a alma já tivesse extenuada de palavras, mas porque o homem é o único animal que fala e lê, quando o ensinam, embora então lhe faltem ainda muitos anos para a homem ascender, examina miudamente e estuda o padre Bartolomeu Lourenço o Testamento velho, sobretudo os cinco primeiros livros, o Pentateuco, pelos judeus chamado Tora, e o Alcorão. Dentro do corpo de qualquer de nós poderia Blimunda ver os órgãos, e também as vontades, mas não pode ler os pensamentos nem ela a estes entenderia, ver um homem pensando, como em um pensamento só, tão opostas e inimigas verdades, e com isso não perder o juízo, ela se o visse, ele porque tal pensa.

A música é outra coisa. Domenico Scarlatti trouxe para a abegoaria um cravo, não o carregou ele, mas dois mariolas a pau, corda, chinguiço, e muito suor da testa, desde a Rua Nova dos Mercadores, onde foi comprado, até S. Sebastião da Pedreira, onde seria ouvido, veio Baltasar com eles para indicar o caminho outra ajuda lhe não requereram, que este transporte não se faz sem ciência e arte, distribuir o peso, combinar as forças como na pirâmide da Dança da Bica, aproveitar o molejo das cordas e do pau para ritmar a passada, enfim, segredos de ofício que tanto valem como outros, e cuida cada qual que os do seu são máximos. O cravo foi deixado pelos galegos do lado de fora do portão, não faltava mais nada verem eles a máquina de voar, e para a abegoaria o levaram, com grande esforço, Baltasar e Blimunda, não tanto pelo peso, mas por lhes faltarem arte e ciência, sem contar que as vibrações das cordas pareciam queixumes magoados e por causa deles se lhes apertava o coração, também duvidoso e assustado de tão extrema fragilidade. Nessa mesma tarde veio Domenico Scarlatti, ali se sentou a afinar o cravo, enquanto Baltasar entrançava vimes e Blimunda cosia velas, trabalhos calados que não perturbavam a obra do músico. E tendo concluído a afinação, ajustado os saltarelos que o transporte havia desacertado, verificado as penas de pato uma por uma, Scarlatti pôs-se a tocar, primeiro deixando correr os dedos sobre as teclas, como se soltasse as notas das suas prisões, depois organizando os sons em pequenos segmentos, como se escolhesse entre o certo e o errado, entre a forma repetida e a forma perturbada, entre a frase e o seu corte, enfim articulando em discurso novo o que parecera antes fragmentário e contraditório. De música sabiam pouco Baltasar e Blimunda, a salmodia dos frades, raramente o estridor operático do Te Deum, toadas populares campestres e urbanas, cada qual suas, porém nada que se parecesse com estes sons que o italiano tirava do cravo, que tanto pareciam brinquedo. infantil como colérica objurgação, tanto parecia divertirem-se anjos como zangar-se Deus.

Ao fim de uma hora levantou-se Scarlatti do cravo, cobriu-o com um pano de vela, e depois disse para Baltasar e Blimunda, que tinham interrompido o trabalho, Se a passarola do padre Bartolomeu de Gusmão chegar a voar um dia, gostaria de ir nela e tocar no céu, e Blimunda respondeu, Voando a máquina, todo o céu será música, e Baltasar, lembrando-se da guerra, Se não for inferno todo o céu. Não sabem, estes dois, ler nem escrever, e contudo dizem coisas assim, impossíveis em tal tempo e em tal lugar, se tudo tem a sua explicação, procuremos esta, se agora a não encontrarmos, outro dia será. Muitas vezes voltou Scarlatti à quinta do duque de Aveiro, nem sempre tocava, mas em certas ocasiões pedia que não se interrompessem os trabalhos ruidosos, a forja rugindo, o malho retumbando na bigorna, a água fervendo na tina, mal se ouvia o cravo no meio do grande clamor da abegoaria, e no entanto o músico encadeava serenamente a sua música, como se o rodeasse o grande silêncio do espaço onde desejara tocar um dia.

Procura cada qual por seu próprio caminho, a graça, seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona, veja-se este soldado maneta que, por ironia dos acasos, é fabricante de asas, nunca tendo passado da infantaria, alguma vez sabe o homem o que o espera, este menos que qualquer outro, veja-se a mulher dos olhos excessivos, que para descobrir vontades nasceu, não passavam de peloticas e bufarinhices as suas demonstrações de tumor, feto estrangulado e moeda de prata, agora, sim, é que se irão ver as obras maiores do seu destino, quando o padre Bartolomeu Lourenço chegar à quinta de S. Sebastião da Pedreira e disser, Blimunda, está Lisboa atormentada de uma grande doença, morrem pessoas em todas as casas, lembrei-me de que não teremos melhor ocasião para recolher as vontades dos moribundos, se as conservam ainda, mas é meu dever avisar-te de que correrás grandes perigos, não vais se não quiseres, nem eu te obrigaria, ainda que obrigar-te estivesse na minha mão, que doença é essa, Dizem que foi trazida por uma nau do Brasil e que primeiro se manifestou na Ericeira. A minha terra fica perto, disse Baltasar, e o padre respondeu, Não há notícia de ter morrido gente em Mafra, mas, sobre a doença, pelos sinais que dá, é vómito negro ou febre amarela, o nome importa pouco, o caso é que estão morrendo como tordos, que decides tu, Blimunda. Levantou-se Blimunda do mocho onde estava sentada, ergueu a tampa da arca e lá de dentro tirou o frasco de vidro, quantas vontades ali haveria, talvez umas cem, quase nada para as necessidades, e mesmo assim fora uma longa e custosa caçada, muito jejum, às vezes perdida num labirinto, onde está a vontade que a não vejo, só vísceras e ossos, a rede agónica dos nervos, o mar de sangue, a comida pastosa no estômago, o excremento final, Irás, perguntou o padre, Irei, respondeu ela, Mas não sozinha, disse Baltasar.

No dia seguinte, muito cedo, estava o tempo de chuva, saíram Blimunda e Baltasar da quinta, ela em jejum natural, ele transportando no alforge o sustento de ambos, para quando, pela extenuação do corpo ou por recolha satisfatória, já Blimunda puder ou tiver de alimentar-se. Durante muitas horas desse dia não verá Baltasar o rosto de Blimunda, ela sempre adiante, avisando se tem de voltar-se, é um estranho jogo o destes dois, nem um quer ver, nem o outro quer ser visto, parece tão fácil, e só eles sabem quanto lhes custa não se olharem. Por isso, lá para o fim do dia, quando Blimunda já tiver comido e os seus olhos regressarem à comum humanidade, Baltasar poderá sentir acordar o seu próprio e entorpecido corpo, menos cansado da caminhada que de não ser olhado.

Porém, antes visitou Blimunda os agonizantes. Aonde chega recebem-na com louvores e agradecimentos, nem lhe perguntam se é parenta ou amiga, se mora naquela mesma rua ou noutro bairro, e como esta terra é tão exercitada em obras de misericórdia, às vezes nem por ela dão, encheu-se o quarto do doente, está cheio o corredor, a escada é um sobe e desce, um corropio, o padre que deu ou vai dar a extrema-unção, o médico se valeu a pena chamá-lo e havia com que pagar-lhe, o sangrador que vai de casa em casa apurando as navalhas, e ninguém dá por entrar e sair uma ladra, com o seu frasco de vidro enrolado em panos, colado no fundo dele o âmbar amarelo a que as vontades furtadas se agarram como pássaros ao visco. Entre S. Sebastião da Pedreira e a Ribeira entrou Blimunda em trinta e duas casas, colheu vinte e quatro nuvens fechadas, em seis doentes já as não havia, talvez as tivessem perdido há muito tempo, e as restantes duas estavam tão agarradas ao corpo que, provavelmente, só a morte as seria capaz de arrancar de lá. Em cinco outras casas que visitou, já não havia vontade nem alma, apenas o corpo morto, algumas lágrimas ou muito alarido.

Por toda a parte se queimava alecrim para afastar a epidemia, nas ruas, nas entradas das casas, principalmente nos quartos dos doentes, ficava o ar azulado de fumo, e cheiroso, nem parecia a fétida cidade dos dias saudáveis. Havia grande procura de línguas de S. Paulo, que são pedras com o feitio de língua de pássaro, achadas nas praias que de S. Paulo vão até Santos, será por santidade própria dos lugares ou por santificação que os nomes lhes dêem, o que toda a gente sabe é que tais pedras, e umas outras, redondas, tamanho de grãos-de-bico, são de soberana virtude contra as febres malignas justamente, porque, sendo feitas de subtilíssimo pó, podem mitigar o demasiado calor, aliviar as areias, e algumas vezes provocar suor. O mesmo pó, resultante da moição das pedras, é conclusivo contra o veneno, qualquer que seja e qualquer que tenha sido a sua ministração, maxime em caso de mordedura de bicho venenoso, basta colocar a língua de S. Paulo ou o grão-de-bico sobre a ferida, num instante é chupado o veneno. Quando assim, chama-se a tais pedras olhos-devíbora.

Com tudo isto, parece impossível que ainda morra gente, havendo tanto remédio e tanta salvaguarda, alguma irreparável falta, aos olhos de Deus, terá Lisboa cometido para virem a morrer nesta epidemia quatro mil pessoas em três meses, o que representa mais de quarenta cadáveres para enterrar todos os dias. Ficaram as praias sem pedras e caladas as línguas dos que morreram, impedidos estes de explicar que tal farmácia os não curaria. Mas, que o dissessem, isso mesmo demonstraria a sua impenitência, pois não devia ser causa de espanto curarem pedras febres malignas só por se reduzirem a pó e misturarem no cordial ou no caldo, quando tão divulgado foi o que aconteceu a madre Teresa da Anunciação, que estando a fazer confeitos e faltando-lhe o açúcar, o mandou pedir a uma religiosa doutro mosteiro, tendo esta respondido que não valia a pena mandar-lho por ser de qualidade inferior, posto o que ficou madre Teresa em aflição extrema, e agora que é que eu vou fazer da minha vida, pois farei caramelos, que é obra menos fina, entendamo-nos bem, não foi da sua própria vida que ela fez caramelos, foi do açúcar, mas assim que este tomou o ponto respectivo, abateu tanto e ficou tão amarelo que mais parecia resina que doçura aproveitável, ai que maior aflição, não há outro reclamar, voltou-se a madre para o Senhor e pô-lo diante das suas responsabilidades, o método costuma resultar, lembremo-nos de Santo António e das lâmpadas de prata, Vós bem sabeis que não tenho outro açúcar, nem de onde me venha, a obra não é minha, senão vossa, vós disponde o que fordes servido, a virtude a poreis vós, não eu, e tendo dito, lembrando-se de que talvez não bastasse a intimação, cortou uma partícula da corda que o Senhor leva à cinta e deitou-a ao tacho, meu dito, meu feito, começa o açúcar, de amarelo e abatido que estava, a tornar-se tão branco e subido, que dali se fizeram caramelos como em tempo algum se vira na história dos mosteiros, ora toma. E se hoje não continuam a fazer-se milagres desta confeitaria, é porque logo ali se acabou a corda do Senhor, distribuída em pedacinhos por quantas congregações havia de freiras e doceiras, são tempos que nunca mais voltam.

Cansados da grande caminhada, de tanto subir e descer de escadas, recolheram-se Blimunda e Baltasar à quinta, sete mortiços sóis, sete pálidas luas, ela sofrendo uma insuportável náusea, como se regressasse de um campo de batalha, de ver mil corpos estraçalhados pela artilharia, e ele, se quiser adivinhar o que viu Blimunda, basta-lhe juntar numa só recordação a guerra e o açougue. Deitaram-se, e nessa noite não se quiseram os seus corpos, não tanto por fadiga, que bem sabemos quanto ela é, tantas vezes, boa conselheira dos sentidos, mas por uma como que consciência excessiva dos órgãos internos, como se estes lhes tivessem saído para fora da pele, talvez seja difícil de explicar, porém, é com a pele que os corpos se conhecem, reconhecem e aceitam, e se certas profundas penetrações, certos íntimos contactos são entre mucosa e pele, quase se não dá pela diferença, é como se se tivesse procurado e encontrado uma pele mais remota. Dormem os dois, cobertos por uma manta velha, nem se despiram, causa admiração ver tão grande empresa entregue a dois vagabundos, pior agora, que já se lhes apagou a frescura da mocidade, são como pedras de um alicerce, sujas da terra que reforçam, e também como elas esmagados sob o peso que há-de vir. A lua, nessa noite, nasceu tarde, dormiam e não a viram, mas o luar entrou pelas frestas, percorreu lentamente toda a abegoaria, a máquina de voar, e, ao passar, iluminou o frasco de vidro, distintamente se viam dentro dele as nuvens fechadas, talvez porque ninguém estivesse a olhar, talvez por ser esta luz da lua capaz de mostrar o invisível.

Ficou o padre Bartolomeu Lourenço satisfeito com o lanço, era o primeiro dia, mandados assim à ventura, para o meio duma cidade afligida de doença e luto, aí estão vinte e quatro vontades para assentar no papel. Passado um mês, calcularam ter guardado no frasco um milheiro de vontades, força de elevação que o padre supunha ser bastante para uma esfera, com o que segundo frasco foi entregue a Blimunda. Já em Lisboa muito se falava daquela mulher e daquele homem que percorriam a cidade de ponta a ponta, sem medo da epidemia, ele atrás, ela adiante, sempre calados, nas ruas por onde andavam, nas casas onde não se demoravam, ela baixando os olhos quando tinha de passar por ele, e se o caso, todos os dias repetido, não causou maiores suspeitas e estranhezas, foi por ter começado a correr a notícia de que cumpriam ambos penitência, estratagema inventado pelo padre Bartolomeu Lourenço quando se ouviram as primeiras murmurações. Com um pouco mais de imaginação, teria feito do misterioso casal dois enviados do céu, propiciatórios de bom passamento para moribundos, reforço da extrema-unção porventura enfraquecida pelo continuado uso. Um nada é quanto basta para desfazer reputações, um quase nada as faz e refaz, a questão é encontrar o caminho certo para a credulidade ou para o interesse dos que vão ser eco inocente ou cúmplice.

Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente passara-se a morrer doutra coisa, havia, bem contadas, duas mil vontades nos frascos. Então, Blimunda caiu doente. Não tinha dores, febre não se lhe sentia, apenas uma extrema magreza, uma palidez profunda que lhe tornava transparente a pele. Jazia na enxerga, de olhos sempre fechados, noite e dia, porém não como se dormisse ou repousasse, mas com as pálpebras crispadas e uma expressão de agonia no rosto. Baltasar não saía de junto dela, a não ser para preparar a comida ou para satisfazer necessidades expulsórias do corpo, não parecia bem fazê-lo ali mesmo. O padre Bartolomeu Lourenço, sombrio, sentava-se no mocho, e aí ficava horas. De vez em quando parecia rezar, mas nunca ninguém pôde compreender as palavras que murmurava nem a quem as dirigia. Deixou de os ouvir em confissão, por duas vezes que Baltasar, a isso se sentindo obrigado, fez vaga menção a pecados que, por se acumularem, vão esquecendo, respondeu que Deus vê nos corações e não precisa de que alguém absolva em seu nome, e se os pecados forem tão graves que não devam passar sem castigo, este virá pelo caminho mais curto, querendo o mesmo Deus, ou serão julgados em lugar próprio, quando o fim dos tempos chegar, se; entretanto, as boas acções não compensarem por si mesmas as más, também podendo vir a acontecer que tudo acabe em geral perdão ou castigo universal, apenas está por saber quem há-de perdoar a Deus ou castigá-lo. Mas, olhando Blimunda, consumida e retirada do mundo, o padre mordia as unhas, arrependia-se de a ter mandado às instâncias vizinhas da morte com tanta continuidade que a sua própria vida teria de padecer, como se ,estava observando, essa outra tentação de passar para o lado de lá, sem nenhuma dor, apenas como quem desiste de se segurar às margens do mundo e se deixa afundar.

Todas as noites, o padre, quando se retirava para a cidade, pelos caminhos escuros e azinhagas que desciam para Santa Marta e Valverde, punha-se a desejar, meio delirando, que lhe saltassem ao caminho facinorosos, talvez o próprio Baltasar, com a espada ferrujenta e o mortal espigão, para vingar Blimunda, assim se acabaria tudo. Mas Sete-Sóis, a essa hora, já estava deitado, cobria Sete-Luas com o braço são e murmurava, Blimunda, então o nome atravessava um largo e escuro deserto cheio de sombras, demorava muito tempo a chegar ao seu destino, depois outro tanto regressando, as sombras afastadas penosamente, os lábios moviam-se custosos, Baltasar, lá fora ouvia-se o ramalhar das árvores, às vezes um grito de ave nocturna, bendita sejas tu, noite, que cobres e proteges o belo e o feio com a mesma indiferente capa, noite antiquíssima e idêntica, vem. Mudava-se a cadência da respiração de Blimunda, sinal de que adormecera, e Baltasar, extenuado de ansiedade, podia também entrar no sono para reencontrar o riso de Blimunda, que seria de nós se não sonhássemos.

Muitas vezes durante a doença, se doença foi, se não foi apenas um longo regresso da própria vontade, refugiada em confins inacessíveis do corpo, muitas vezes veio Domenico Scarlatti, primeiro apenas para visitar Blimunda, informar-se das melhoras que tardavam, depois demorando-se a conversar com Sete-Sóis, e um dia retirou o pano de vela que cobria o cravo, sentou-se e começou a tocar, branda, suave música que mal ousava desprender-se das cordas feridas de leve, vibrações subtis de insecto alado que, imóvel, paira, e de súbito passa de uma altura a outra, acima, abaixo, não tem isto nada que ver com os movimentos dos dedos sobre as teclas, como se uns aos outros se andassem perseguindo, não é deles que nasce a música, como poderia ser se o teclado tem uma primeira tecla e uma última tecla e a música não tem fim nem princípio, vem deste além que está à minha mão esquerda, vai para aquele outro que está à minha mão direita, ao menos tem a música duas mãos, não é como certos deuses. Porventura seria esta a medicina que Blimunda esperava, ou, dentro dela, o que ainda estaria esperando alguma coisa, que cada um de nós, conscientemente, só espera o que conhece, ou tem parecenças, o que para cada caso nos disseram ter utilidade, uma sangria se a fraqueza não fosse tanta, uma língua de S. Paulo se a epidemia não tivesse deixado as praias joeiradas, umas bagas de alquequenge, uns troquiscos de Gordónio, uma raiz de cardo corredor, o elixir do Francês, se não fosse tudo isto uma inocente mixórdia que só tem de bom não fazer mal nenhum. Não esperaria Blimunda que, ouvindo a música, o peito se lhe dilatasse tanto, um suspiro assim, como de quem morre ou de quem nasce, debruçou-se Baltasar .para ela, temendo que ali se acabasse quem afinal estava regressando. Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando horas e horas, até de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhe devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico diria que ela purgava os humores do nervo óptico ofendido, talvez tivesse razão, talvez as lágrimas não sejam mais que isso, o alívio duma ofensa.

Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, diremos nós, que ela nunca por aí navegou, o seu naufrágio foi outro. Depois, a saúde voltou depressa, se realmente faltara. E, não tornando o músico, por discreto ou finalmente retido pelas obrigações de mestre da capela real, acaso descuidadas, e pelas lições da infanta, esta decerto não queixosa das ausências, acharam Baltasar e Blimunda que estava em falta o padre Bartolomeu Lourenço e com isso se inquietaram. Uma manhã, tendo aliviado o mau tempo, desceram à cidade, agora um ao lado do outro, e, enquanto iam conversando, podia Blimunda olhar Baltasar e não ver mais do que ele, ainda bem, para alívio de ambos. As pessoas que encontravam no caminho eram arcas fechadas, cofres aferrolhados, se por fora sorriam ou mostravam má cara, tanto fazia, o olhador não deve saber daquele a quem olha mais do que o olhado. Por isso é que Lisboa parecia tão quieta, apesar dos pregões da rua, das zaragatas de vizinhas, dos diferentes toques dos sinos das orações gritadas diante dos nichos, duma trombeta além, dum rufo de tambor, dum tiro de partida ou chegada das naus do Tejo, da ladainha e da sineta dos frades mendicantes. Quem tem vontade, que a guarde e use, quem a não tem, aguente-se com a falta, Blimunda não quer mais saber de contos, já lá tem na quinta a sua conta, só ela sabe quanto lhe custou.

O padre Bartolomeu Lourenço não estava em casa, talvez tivesse ido ao paço, disse a viúva do porteiro da maça, ou à academia, Se quiserem deixar algum recado, mas Baltasar respondeu que não, voltariam mais tarde ou ficariam ali pelo Terreiro, à espera. Enfim, lá pelo meio-dia apareceu o padre, emagrecido por outra espécie de doença por outras visões, e, contra o seu costume desmazelado de traje, como se dormisse vestido. Vendo-os ali, à porta da casa, sentados num poial, cobriu a cara com as mãos, mas logo as retirou, e foi para eles como se tivesse acabado de ser salvo de um grande perigo, não este que parecia pelas primeiras palavras que disse, Só tenho estado à espera de que Baltasar viesse para me matar, julgaríamos que temeu pela sua própria vida, e não é verdade, Não se faria justiça mais justa contra mim, Blimunda, se tivesses morrido, O senhor Escarlate sabia que eu estava melhor, Não o quis procurar, e quando me procurou ele inventei pretextos para não o receber, fiquei à espera do meu destino O destino chega sempre, disse Baltasar, não ter morrido Blimunda foi meu e nosso bom destino, e agora que faremos, se já lá vai a doença, se estão recolhidas as vontades, se está acabada a máquina. se não há mais ferros a bater, nem velas a coser e embrear, nem vimes a entrançar, se com o âmbar amarelo que temos se poderão fazer tantas bolas quantas vezes se cruzam os arames do tecto, se está pronta a cabeça da ave, não é gaivota, mas parece-se, se enfim se concluiu o nosso trabalho, qual será o destino dele e de nós, padre Bartolomeu Lourenço. O padre tornou-se mais pálido, olhou em redor como se temesse que alguém estivesse ouvindo, depois respondeu, Terei de informar el-rei de que a máquina está construída, mas antes haveremos de experimentá-la, não quero que tornem a rir-se de mim, como há quinze anos fizeram, agora voltem para a quinta, breve lá irei.

Afastaram-se os dois alguns passos, depois Blimunda parou, Está doente, padre Bartolomeu Lourenço, tem a cara branca, os olhos pisados, nem ficou contente por saber a notícia, Fiquei, Blimunda, fiquei, mas as notícias do destino são sempre meias notícias, o que vem amanhã é que conta, hoje é sempre nada, Deite-nos a sua bênção, padre, Não posso, . não sei em nome de que Deus a deitaria, abençoem-se antes um ao outro, é quanto basta, pudessem ser todas as bênçãos como essa.


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