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Memorial do Convento José Saramago

Enferrujam-se os arames e os ferros, cobrem-se os panos de mofo, destrança-se o vime ressequido, obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína. Baltasar deu duas voltas à máquina voadora, nada contente de ver o que via, com o gancho do braço esquerdo puxou violentamente o esqueleto metálico, ferro contra ferro, a provar-lhe a resistência, e era pouca, Parece-me que melhor será desmanchar tudo e começar outra vez, Desmanchar, sim, respondeu Blimunda, mas, sem que venha o padre Bartolomeu Lourenço, não vale a pena pegares no trabalho, Podíamos ter continuado em Mafra por mais um tempo, Se ele disse que viéssemos é porque não tarda aí, quem sabe se cá esteve enquanto esperávamos o dia da festa, Não esteve, não há sinais disso, Oxalá, Deus queira, Sim, queira Deus.

Em menos de uma semana deixou a máquina de ser máquina ou seu projecto, quanto ali se mostrava poderia servir para mil diferentes coisas, não são muitas as matérias de que os homens se servem, tudo vai é da maneira de as compor, ordenar e juntar, veja-se a enxada, veja-se a plaina, um tanto de ferro, um tanto de madeira, e o que faz aquela, esta não faz. Disse Blimunda, Enquanto o padre Bartolomeu Lourenço não chega, construímos aqui a forja, E como iremos fazer o fole, Vais a um ferreiro, vês como é feito, se à primeira não sair bem, sairá à segunda, se não conseguires à segunda, conseguirás à terceira, ninguém espera por nós para fazermos outra coisa que não seja isto, Não seria preciso tanto trabalho, com o dinheiro que o padre nos deixou compraríamos o fole, E alguém haveria de querer saber para que quererá Baltasar Sete-Sóis um fole, se não é ferreiro nem ferrador, melhor é que o faças tu, nem que tenhas de teimar cem vezes.

Baltasar não foi sozinho. Embora para esta diligência se não necessitassem visões duplas, Blimunda tinha mais rigor no olhar, mais precisão no traço, e não errava tão desastrosamente no que tocava às proporções das diferentes partes da obra. Com o dedo molhado no azeite fuliginoso do candil, desenhou na parede as várias peças, o couro segundo o corte que convinha, o bico por onde sairia o vento, a parte inferior e fixa de madeira, a outra parte articulada, só faltava um boneco a dar ao fole. Num canto afastado dispuseram pedras regulares, formando com elas quatro muros em quadrado, à altura do quadril de um homem, e escoraram-nos com arames que iam de lado a lado, por dentro e por fora cingiam toda a construção, que depois encheram de terra e pedra miúda. Por causa disto ficou o duque de Aveiro com alguns muretes da quinta arruinados, mas esta obra, se não é, como o convento, de sua majestade, tem licença régia, provavelmente já esquecida, nem sequer lembrada para mandar D. João V averiguar se o padre Bartolomeu Lourenço ainda tem esperanças de voar um dia, ou se isto é apenas maneira de viverem três pessoas um sonho, quando tais pessoas poderiam ser mais utilmente empregadas, o padre a pregar a palavra de Deus, Blimunda a sondar nascentes de água, Baltasar a pedir esmola para abrir as portas do paraíso a quem lha desse porque isso de voar está demonstrado que só o podem fazer os anjos e o Diabo, aqueles como ninguém ignora e por alguns foi testemunhado, este por certificação da própria sacra escritura, pois lá se diz que o Diabo levou Jesus ao pináculo do templo, portanto pelos ares o levou, não foram pela escada, e lhe disse, Lança-te daqui abaixo, e ele não lançou, não quis ser o primeiro homem a voar, Um dia voarão os filhos do homem, disse o padre Bartolomeu Lourenço quando chegou e viu a forja feita, mais a pia da água onde se temperarão os ferros, falta apenas o fole, a seu tempo soprará o vento, que o espírito já soprou neste lugar.

Quantas vontades recolheste até hoje, Blimunda, perguntou o padrenessa noite, quando ceavam, Não menos de trinta, disse ela, É pouco, e as mais são de homem ou de mulher, tornou a perguntar, As mais são de homem, parece que as vontades das mulheres resistem a separar-se do corpo, porque será. A isto não respondeu o padre, mas Baltasar disse, Quando a minha nuvem fechada está sobre a tua nuvem fechada, às vezes falta bem pouco para que a tua à minha se junte, Então me pareces tu mais vazio de vontade do que eu, respondeu Blimunda, ainda bem que o padre Bartolomeu Lourenço se não escandaliza com estas livres conversações, acaso também teve a sua parte de vontades desfalecidas, na Holanda por onde andou, ou a tem aqui, não o sabendo a Inquisição, ou fazendo de contas que o ignora, por não andar a falta acompanhada de pecados menos veniais.

Falemos agora a sério, disse o padre Bartolomeu Lourenço, sempre que puder aqui virei, mas a obra só pode adiantar-se com o trabalho de ambos foi bom terem construído a forja, eu arranjarei modo de alcançar um fole para ela, não te hás-de fatigar com essa canseira, porém terás de o observar muito bem porque vai ser preciso fazer os foles grandes, de que te darei o risco, para a máquina, faltando o vento na atmosfera trabalharão os foles e voaremos, e tu, Blimunda, lembra-te de que são precisas pelo menos duas mil vontades, duas mil vontades que tiverem querido soltar-se por as não merecerem as almas, ou os corpos as não merecerem, com essas trinta que aí tens não se levantaria o cavalo Pégaso apesar de ter asas, pensem como é grande a terra que pisamos, ela puxa os corpos para baixo, e sendo o sol tão maior como é, mesmo assim não leva a terra para si, ora, para que nós voemos na atmosfera serão precisas as forças concertadas do sol, do âmbar, dos ímanes e das vontades, mas as vontades são, de tudo, o mais importante, sem elas não nos deixaria subir a terra, e se queres recolher vontades, Blimunda, vai à procissão do Corpo de Deus, em tão numerosa multidão não hão-de ser poucas as que se retirem, porque as procissões, bom é que o saibam, são ocasiões em que as almas e os corpos se debilitam, a ponto de não serem capazes, sequer, de segurar as vontades, já o mesmo não sucede nas touradas, e também nos autos-de-fé, há neles e nelas um furor que torna mais fechadas as nuvens fechadas que as vontades são, mais fechadas e mais negras, é como na guerra, treva geral no interior dos homens.

Disse Baltasar, E a máquina de voar, como a farei, Como a tínhamos começado, a mesma ave grande que está no meu risco, e estas são as partes de que se compõe, aqui te fica este outro desenho com as indicações dos tamanhos das diferentes peças, irás construindo de baixo para cima, como se estivesses a fazer um navio, entrançarás o vime e o ferro, imagina que estás ligando penas a ossos, já te disse, virei sempre que puder, para comprares o ferro irás a este lugar, procurarás nos vimiais do termo o vime de que precisas, e ao açougue irás comprar as peles para os foles da máquina, eu te direi como deverás curti-las e cortá-las, esses desenhos que Blimunda fez são bons para foles de forja, não para foles de voar, e tens aqui mais este dinheiro, comprarás um burro, sem ele como transportarias todos os materiais necessários, e também mercarás uns ceirões grandes, mas haverás sempre à mão ervas ou palhas para que possas esconder o que trouxeres dentro deles, lembrem-se de que toda esta nossa obra terá de ser feita em absoluto segredo, não o podem saber nem parente nem amigo, amigos mais que nós três não há, e se alguém aí vier com perguntas, dirão que estão a guardar a quinta por ordem de el-rei, e que perante el-rei o responsável sou eu, padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, De quê, perguntaram Blimunda e Baltasar ao mesmo tempo, De Gusmão, foi assim que passei a chamar-me por via do apelido de um padre que no Brasil me educou, Bartolomeu Lourenço era quanto bastava, disse Blimunda, não me vou habituar a dizer Gusmão, Nem precisarás, para ti e Baltasar serei sempre o mesmo Bartolomeu Lourenço, mas a corte e as academias terão de chamar-me Bartolomeu Lourenço de Gusmão, pois quem, como eu, vai ser doutor em cânones precisa ter um nome que lhe assente à dignidade, Adão não teve outro nome, disse Baltasar, E Deus não tem nenhum, respondeu o padre, mas Deus, em verdade, não é nomeável, e no paraíso não havia outro homem de quem Adão houvesse de distinguir-se, E Eva não foi mais que Eva, disse Blimunda. Eva continua a não ser mais que Eva, estou que a mulher é uma só no mundo, só múltipla de aparência, por isso se escusariam outros nomes, e tu és Blimunda, diz-me se precisas de Jesus, Sou cristã, Quem o duvida, perguntou o padre Bartolomeu Lourenço, e rematou, Bem me entendes; mas dizer-se alguém de Jesus, crença ou nome, não é mais que vento da boca para fora, deixa-te ser Blimunda, não darás outra resposta quando fores perguntada.

Tornou o padre aos estudos, já bacharel, já licenciado, doutor não tarda, enquanto Baltasar chega os ferros à forja e os tempera na água, enquanto Blimunda raspa as peles trazidas do açougue, enquanto ambos cortam o vime e trabalham à bigorna, segurando ela a lamela com a tenaz, batendo ele com o malho, e têm de entender-se muito bem para que não se perca nenhuma pancada, ela apresentando o ferro rubro, ele desferindo o golpe certo, em força e direcção, nem precisam falar. Assim foi o Inverno passando, assim a Primavera, algumas vezes veio o padre a Lisboa, chegava, guardava na arca as esferas de âmbar amarelo que trazia sem dizer donde, perguntava das vontades, olhava por todos os lados a máquina que ia ganhando dimensão e forma, a ponto de exceder o que era quando Baltasar a desmanchou, enfim dava conselhos e avisos, e regressava a Coimbra, às decretais e aos decretalistas, agora deixara de ser estudante, já estava lendo nas aulas, Iuris ecclesiastici universi libri tre, Colectânea doctorum tam veteram quam recentiorum in ius pontificum universum, Reportorium iuris civilis et canonici, et coetera, porém nada em que estivesse escrito, Voarás.

Aí está Junho. Corre por Lisboa a não fausta notícia de que este ano a procissão do Corpo de Deus não trará as antigas figuras dos gigantes, nem a serpente silvante, nem o dragão flamejante, e que não sairão as tourinhas, e também não haverá danças da cidade, nem marimbas, nem charamelas, e não virá o rei David dançando adiante do pálio. Pergunta-se então o povo que procissão vem a ser essa, se não podem sair os foliões da Arruda atroando as ruas com o seu pandeiro, se estão as mulheres de Frielas proibidas de dançar a chacoina, se também não darão a dança das espadas, se não saem castelos, se não tocam a gaita e o tamboril, se não vêm brincando os sátiros e as ninfas os encobertos modos doutra brincadeira, se não se faz mais a dança da retorta, se não navegará aos ombros de homens a nau de S. Pedro, que procissão teremos, que gosto nos vão tirar, ainda se nos deixassem o carro dos hortelões, não tornaremos a ouvir o silvo da serpe, meu primo, que toda me arrepiava quando ela passava assobiando, nem sei explicar as tremuras que sentia, ai.

Desce o povo ao Terreiro do Paço, a ver os preparos da festa, e não está mal, não senhor, com esta colunata de sessenta e uma colunas e catorze pilares, que não têm menos de oito metros de altura, e em extensão excede o arranjo os seiscentos metros, só de frontispícios são quatro, e não têm conto as figuras, os medalhões, as pirâmides e mais ornatos. Começa o povo a apreciar o novo aparato, que por aqui se não fica, basta olhar essas ruas, todas toldadas, e os mastros que sustentam os toldos são enfeitados de seda e ouro, e os medalhões, que dos ditos toldos se dependuram, dourados, tendo de um lado o Sacramento entre resplendores e do outro o brasão do patriarca, isto uns, quanto aos outros, levam os brasões do Senado da Câmara. E as janelas, olha-me estas janelas, tem razão quem o disse, regalamse os olhos nas cortinas e sanefas de damasco carmesim, franjado de ouro, Nunca tal víramos, já o povo se está meio conformando, tiraram-lhe uma festa, outra lhe darão, não é fácil decidir com qual delas se perde ou ganha, se calhar é consoante, por alguma razão disseram já os ourives do ouro que vão iluminar todo o arruamento, e talvez seja por razão igual que estão cobertas de sedas e damascos as cento e quarenta e nove colunas dos arcos da Rua Nova, porventura serão maneiras de vender, hoje assim, amanhã pior. Passa o povo, chega ao fim da rua e volta, mas não estende, sequer, a ponta dos dedos para tocar tantas riquezas de panos, contenta-se com espairecer os olhos neles e nos outros de rás que enfeitam as lojas debaixo dos arcos, parece que vivemos no reino da confiança, porém tem cada loja seu escravo preto à porta, de pau numa mão e espadim na outra, se alguém se atrever leva uma varada pelos lombos, e se a ousadia for a mais, não tardam aí os quadrilheiros, já não usam viseira nem elmo, nem escudo trazem, mas, dizendo o corregedor, Alto, para o Limoeiro, que remédio senão obedecer e perder a procissão, talvez por isto é que não haja muitos furtos no Corpo de Deus. Também não se irão furtar vontades. É tempo de lua nova, Blimunda não tem por agora mais olhos que os de toda a gente, tanto lhe faria jejuar como comer, e isto lhe dá paz e alegria, deixar que as vontades façam o que quiserem, ficar no corpo ou partir, seja este o meu descanso, mas de repente perturba-se por causa de um pensamento que veio e a trespassou, Que outra nuvem fechada veria eu no Corpo de Deus, no seu carnal corpo, em voz baixa o disse a Baltasar, e ele respondeu, também segredando, Havia de ser tal, ela só, que levantaria a passarola, e Blimunda acrescentou, Quem sabe se tudo o que vemos não é a nuvem fechada de Deus.

São ditos de maneta e visionária, ele porque lhe falta, ela porque lhe sobra, há-de-se lhes perdoar não terem as medidas comuns e falarem de coisas transcendentes enquanto, noite já, vão passeando pelas ruas de entre Rossio e Terreiro do Paço, no meio de muita outra gente que hoje não se deitará e que, como eles, vai pisando a areia encarnada e as ervas que alcatifam o pavimento, trazidas pelos saloios, em modo tal que nunca se viu cidade mais limpa, esta que, no geral dos dias, não tem igual em sujidade. Por trás das janelas acabam as damas de armar os penteados, enormes fábricas de luzimentos e postiços, daqui a pouco vêm pôr-se em exposição à janela, nenhuma vai querer ser a primeira, é certo que imediatamente atrairia os olhares de quem passa ou se mostra na rua, mas esse gosto tão depressa vem, logo é perdido porque, ao abrir-se a janela da casa em frente e nela aparecendo dama que por ser vizinha é rival, desviam-se os olhares de quem me estiver contemplando, ciúme que não suporto, tanto mais que ela é mesquinhamente feia e eu divinamente bela, ela tem a boca grande e a minha é um botão, e antes que ela o diga, digo eu, Vai mote. Para este torneio estão mais bem servidas as que moram nos andares baixos, logo ali se põem os galantes a retorcer o mote nos bestuntos, palpitando a métrica e a rima, mas entretanto, do alto do prédio, outro mote desceu, gritado para bem se ouvir, enquanto o primeiro poeta diz para cima a glosa enfim armada, e os outros, de raiva e despeito, miram frios o concorrente que já recebe as graças da dama, suspeitando de estarem combinados glosa e mote por se haverem, doutras maneiras, combinado ela e ele. Isto se suspeita, isto se cala, porque disto se distribuem igualmente as culpas.

A noite está quente. Passa gente a tocar e a cantar, os rapazes correm uns atrás dos outros, é uma peste que anda a fazer isto desde o princípio do mundo, incurável, enrolam-se nas saias das mulheres, levam pontapés e cachações dos homens que as vão escudeirando, e depois, lá adiante, respondem com manguitos e caretas, para logo dispararem noutra carreira, noutra perseguição. Armam uma tourada de improviso, com uma tourinha simples, formada por dois cornos de carneiro, acaso desirmanados, e uma piteira cortada, tudo fixado numa tábua larga, com um punho à frente, a parte de trás encostada ao peito, e o que assim faz de toiro investe com nobreza magnífica, recebe berrando de dor fingida as bandarilhas de pau que se espetam na piteira, mas se o bandarilheiro falhou no golpe de vista e foi à mão do marrador, perde-se aí a nobreza da casta, é outra correria que rua fora se desmanda, perturbando os poetas que fazem repetir os motes, perguntando para cima, Que disse, e elas, com trejeitos, Mil passarinhos me trazem, assim nestes enleios, folguedos e tropeços vai a noite passando fora das casas, dentro há solaus e chocolate, e quando a madrugada se anuncia começam-se a reunir as tropas que hão-de formar as alas à procissão, fardadas de novo em honra do Santíssimo Sacramento.

Em Lisboa ninguém dormiu. Acabaram os outeiros, as damas voltaram dentro a compor a pintura esmaecida ou esborratada, daqui a pouco regressarão à janela, outra vez gloriosas de carmim e alvaiade. O povo miúdo de brancos, pretos e mulatos de todas as cores, estes, aqueles e os outros, estende-se ao longo das ruas ainda turvas do primeiro amanhecer, só o Terreiro do Paço, aberto para o rio e para o céu, é azul nas sombras, e depois subitamente rubro do lado do paço e da igreja patriarcal, quando o sol rompe sobre as terras de além e desfaz a bruma com umsopro luminoso. É então que começa a sair a procissão. Vêm à frente as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, primeiro que todas a dos carpinteiros, representando S. José, que desse ofício foi oficial, e as mais insígnias, grandes painéis, cada um com seu santo figurado, feitos de damasco brocado e com bordaduras de ouro, e tão excessivos de tamanho que são precisos quatro homens para sustentá-los, revezando-se com outros quatro, folgando ora uns ora outros ainda bem que não está vento, é ao compasso da andadura que balouçam os cordões de ouro e seda, e as borlas do mesmo metal, suspensas das pontas refulgentes das varas. Atrás vem a imagem de S. Jorge, com todo o seu estado, os tambores a pé, os trombeteiros a cavalo, rufando uns, outros soprando, rataplã, rataplã, tataratará, tá, tatá, não assiste Baltasar no Terreiro do Paço, mas ouve as trombetas ao longe e arrepia-se como se estivesse no campo da batalha, a ver o inimigo disposto em linha de combate, atacam eles, atacamos nós, e então sente que a mão lhe dói, há quanto tempo lhe não doía, talvez seja porque hoje não colocou nem gancho nem espigão, o corpo tem destas e doutras lembranças e ilusões, Blimunda, se não fosses tu, quem teria eu à minha direita para cingir com este braço, és tu, aperto com a mão salva o teu ombro ou a tua cintura, posto que repare o povo por falta de costume de estarem assim homem e mulher. Passaram as bandeiras, afasta-se o alarido das trombetas e dos tambores, agora vem o alferes de S. Jorge, o rei-de-armas, o homem-deferro, de ferro vestido e calçado, com plumas no elmo e viseira derrubada, ajudante-de-santo nas batalhas, para lhe segurar a bandeira e a lança, para ir à frente a ver se saiu o dragão ou dorme, escusada prudência hoje, que não saiu e não estará dormindo, suspiroso sim de nunca mais poder vir à procissão do Corpo de Deus, não são coisas que se façam a dragões, nem a serpentes, nem a gigantes, triste mundo este, que assim vai consentindo que lhe roubem as belezas, enfim, algumas se terão preservado, ou são de beleza tanta que não se atrevem os reformadores das procissões a deixar, para só falar destes, os cavalos nas cavalariças, ou a abandoná-los, míseros lazarentos, nas longas campinas livremente, pastando o que puderem, e eis que aí vêm quarenta e seis, pretos e cinzentos, de formosos xairéis. Condene-me Deus se não declarar que melhor vestem as bestas do que os homens que as vêem passar, e isto é sendo o Corpo de Deus, trouxe cada um no seu próprio corpo o que de melhor tinha em casa, a roupinha de ver ao Senhor, que tendo-nos feito nus só vestidos nos admite à sua presença, vá lá a gente entender este deus ou a religião que lhe fizeram, é verdade que nus nem sempre somos belos, vê-se pela cara se a não pintam, imaginemos, por exemplo, que corpo terá o S. Jorge que aí vem se lhe tirarmos a armadura de prata e o gorro de plumas, um boneco de engonços, sem fio de pêlo nos lugares onde os homens os têm, pode um homem ser santo e ter o que têm os outros homens, nem sequer devia ser concebível uma santidade que não conhecesse a força dos homens e a fraqueza que às vezes nessa força há, e ainda bem, como se há-de explicar isto a S. Jorge que vem montado no seu cavalo branco, se é isto cavalo que mereça o nome, sempre vivendo nas reais cavalariças, com seu criado para o tratar e passear, cavalo só para o santo montar, cavalo que nunca o diabo montou, nem sequer o homem, triste besta que morrerá sem ter vivido, queira Deus que, morto e esfolado, sejas pele de tambor, e alguém rufando nela acorde o teu indignado coração, tão velho, porém tudo neste mundo se equilibra e compensa, como já foi verificado quando das mortes do menino de Mafra e do infante D. Pedro e mais se comprova hoje, é um menino escudeiro o pajem de S. Jorge e vem montado num cavalo preto, alçando lança e emplumando capacete, quantas mães, postas aos lados das ruas, olhando por cima dos ombros dos soldados a procissão, irão sonhar logo à noite que sobre aquele cavalo é seu filho que vai, pajem de S. Jorge na terra, e talvez no céu, só para isto valeu a pena tê-lo parido, e novamente S. Jorge se aproxima, agora num grande estandarte trazido pela irmandade da Real Igreja do Hospital Real, e enfim, para conclusão desta primeira glória, avançam timbaleiros e trombeteiros, de veludo vestidos e plumas brancas, agora uma pausa, brevíssima, porque já da capela real estão saindo as irmandades, homens e mulheres aos milhares, postos por ordem de pertença e de sexo, aqui não se misturam evas com adões, olha lá vai António Maria, e Simão Nunes, e Manuel Caetano, e José Bernardo, e Ana da Conceição, e António da Beja, e trivialmente José dos Santos, e Brás Francisco, e Pedro Caim, e Maria Caldas, tão variados são os nomes como as cores, capas vermelhas, azuis, brancas, negras e carmesins, opas cinzentas, murças castanhas, e azuis e roxas, e brancas e vermelhas, e amarelas, e carmesins, e verdes, e pretas, como pretos são alguns dos irmãos que passam, o pior é que esta fraternidade, mesmo indo na procissão. Não chega aos degraus de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas promete, basta que Deus um dia se disfarce de preto e proclame nas igrejas, Cada branco vale meio preto, agora arranjem-se para conseguir entrar no paraíso, por isso é que, um dia, as praias 'deste jardim, por acaso à beiramar plantado, estarão cheias de postulantes a enegrecer os costados, ideia que hoje faria rir, alguns nem à praia irão, deixam-se ficar em casa e untam-se com untos vários, e quando saem não os reconhece o vizinho, Que faz aqui este cabra, essa é a grande dificuldade das irmandades de cor, por enquanto vão saindo estas, é o que se pode arranjar, a de Nossa Senhora da Doutrina, a de Jesus Maria, a do Rosário; a de S. Benedito, o que come pouco e anda gordito, a de Nossa Senhora da Graça, a de S. Crispim, a da Madre de Deus de S. Sebastião da Pedreira, que é onde moram Baltasar e Blimunda, a da Via Sacra de S. Pedro e S. Paulo, outra também da Via Sacra, mas do Alecrim, a de Nossa Senhora da Ajuda, a de Jesus, a de Nossa Senhora da Lembrança, a de Nossa Senhora da Saúde, sem ela como haverá de ter virtude Rosa Maria, e a Severa que virtude teria, e vem depois a irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, à sombra da qual Baltasar um dia comeu, a de Santo António das Franciscanas de Santa Marta, a de Nossa Senhora da Quietação das Flamengas de Alcântara, a do Rosário, a de Santo Cristo e Santo António, a de Nossa Senhora da Cadeia, a de Santa Maria Egipcíaca; fosse Baltasar soldado da guarda real e seria esta a sua irmandade de direito, pena não haver a dos manetas, e agora a irmandade da Piedade, esta poderia ser, outra da Nossa Senhora da Cadeia, mas é do convento do Carmo, a primeira era das Terceiras de S. Francisco, parece que vão faltando invocações e já as repetem. Torna o Santo Cristo, porém da Trindade, era dos Paulistas o outro e a irmandade do Bom Despacho, a Baltasar não o despachou o Desembargo do Paço, a de Santa Luzia, a de Nossa Senhora da Boa Morte, se alguma o pode ser, a de Jesus dos Esquecidos, por este pouco se descobre como está perdida uma religião que vai largando esquecidos e lhes manda um Jesus mal encomendado, fosse ele o autêntico acabavam-se os esquecimentos, e a das Almas da Igreja da Conceição, faça sol e chuva não, a de Nossa Senhora da Cidade, a das Almas de Nossa Senhora da Ajuda, a de Nossa Senhora da Pena, a de S. José dos Carpinteiros, a do Socorro, a da Piedade, a de Santa Catarina, a do Menino Perdido, uns perdidos outros esquecidos, nem achados nem lembrados, que nem a Lembrança lhes vale, a de Nossa Senhora das Candeias, outra de Santa Catarina, primeiro dos livreiros, agora dos calceteiros, a de Santa Ana, a de Santo Elói, santinho rico dos ourives do ouro, a de S. Miguel e das Almas, a de S. Marçal, a de Nossa Senhora do Rosário, a de Santa Justa, a de Santa Rufina a das Almas dos Mártires, a das Chagas, a da Madre de Deus de S. Francisco da Cidade, a de Nossa Senhora das Angústias, já cá faltavam, enfim a dos Remédios, que os remédios vêm sempre depois e às vezes tarde de mais, caso em que as esperanças, se ainda restam, são postas no Santíssimo Sacramento que lá vem, representado em estandarte, trazendo à frente, por ser o precursor, S. João Baptista em figura de menino, vestido de peles, com quatro anjos que vão espalhando flores, não é crível que haja outra terra onde mais circulem os anjos pelas ruas do vulgo, basta estender um dedo e logo se vê como são reais e verdadeiros, voar não voam, isso é verdade, e daí, voar não é prova bastante de angelidade, se o padre Bartolomeu de Gusmão, ou só Lourenço, chegar a voar um dia, não se tornará anjo por tão pouco, requerem-se outras qualidades, porém ainda é cedo para tais averiguações, ainda não estão recolhidas todas as vontades, por agora vai a procissão em meio, sente-se o calor da manhã adiantada, oito de Junho de mil setecentos e dezanove, que é que vem agora aí, vêm as comunidades, mas as pessoas estão desatentas, passam frades e não se dá por eles, nem as irmandades foram todas assinaladas, Blimunda olhava para o céu, Baltasar para Blimunda, ela duvidando se seria lua nova, se não iria aparecer por cima do convento do Carmo o primeiro delgado crescente, curva navalha, afiadíssimo alfange que abriria aos seus olhos todos os corpos, e nisto passou a primeira comunidade, quem eram aqueles, não vi, não reparei, frades eram, terceiros de S. Francisco de Jesus, capuchinhos, religiosos de S. João de Deus, franciscanos, carmelitas, dominicanos, cistercienses, jesuítas de S. Roque e de Santo Antão, com tantos nomes e cores se esvai a cabeça e a retentiva, é a altura de comer o farnel trazido ou o alimento comprado, e enquanto se vai comendo vai-se falando do que já passou, as cruzes douradas, as mangas de bofes, os lenços brancos, as casacas compridas, as meias altas, os sapatos de fivela, os tufos, as toucas, as saias rodadas, os mantos de fantasia, as golas de renda, os casaquinhos, só os lírios do campo não sabem fiar nem tecer e por isso estão nus, se Deus quisesse que assim andássemos teria feito homens liliais, as mulheres felizmente já o são, mas vestidos lírios, Blimunda vestida ou não, que pensamentos são esses, Baltasar, que lembranças pecadoras, se agora vem a cruz da igreja patriarcal, e depois dela a comunidade da congregação das Missões, e a do Oratório, e a multidão inúmera. do clero das paróquias, oh senhores, tanta gente cuidando de salvar-nos as almas e elas ainda por achar, não cuides tu, Baltasar, que por seres soldado, ainda que inválido, és da freiria destes que passam, figuras cento e oitenta e quatro da ordem militar de Santiago da Espada, figuras cento e cinquenta da ordem de Aviz, e outras tantas da ordem de Cristo, isto são freires que escolhem os que hão-de ser seus irmãos, além de não querer Deus nos seus altares animais com defeito, maxime se são de sangue vulgar, por isso deixe-se ficar Baltasar onde está, a ver passar a procissão, os pajens, os cantores, os cubiculários, os dois tenentes da guarda real, um, dois, com prima farda, diríamos hoje de gala, e a cruz patriarcal levando ao lado as virgas rubras, os capelães de varas levantadas e molhos de cravos nas pontas delas, ai o destino das flores, um. dia as meterão nos canos das espingardas, os meninos de coro, a basílica de Santa Maria Maior, que é sombreiro, e também a basílica patriarcal, ambas de gomos alternados, brancos e vermelhos, se daqui a duzentos ou trezentos anos começam a chamar basílicas aos chapéus-de-chuva. Tenho a minha basílica com uma vareta partida, Esqueci-me da minha basílica no autocarro, Mandei pôr um cabo novo na minha basílica, Quando ficará pronta a minha basílica de Mafra, pensa el-rei que vem aí atrás a segurar a uma vara do pálio, mas antes passou o cabido, primeiro os cónegos diáconos de dalmática branca, depois os presbíteros com planetas da mesma cor, enfim as dignidades, com amito pluvial e formálio; que saberá o povo destes nomes, da mitra conhece a palavra e o feitio, que tanto está no cu da galinha como na cabeça dos cónegos, cada um destes assistido por três familiares de sua casa, um de tocha acesa, outro levando o chapéu, ambos trajados à cortesã, e o caudatário pega na cauda e veste simarra e cota, e agora sim, agora começa o cortejo do patriarca, vêm primeiramente seis fidalgos parentes dele com tochas acesas, depois o beneficiado assistente com o báculo, mais um capelão com a naveta do incenso, atrás dos acólitos gingando turíbulos de prata lavrada, e dois mestres de cerimónias, e doze escudeiros também levando tochas, Ah, gente pecadora, homens e mulheres que em danação teimais viver essas vossas transitórias vidas, fornicando, comendo, bebendo mais que a conta, faltando aos sacramentos e ao dízimo, que do inferno ousais falar com descaro e sem pavor, vós homens, que podendo ser apalpais o rabo às mulheres na igreja, vós mulheres, que só por derradeira vergonha não apalpais na igreja as partes aos homens, olhai o que está passando, o pálio de oito varas, e eu, patriarca, debaixo dele, com a sagrada custódia na mão, ajoelhai, ajoelhai, pecadores, agora mesmo vos devíeis capar para não fornicardes mais, agora mesmo devíeis atar os queixos para não sujardes mais a vossa alma com a comilança e a bebedice, agora mesmo devíeis virar e despejar os vossos bolsos porque no paraíso não se requerem escudos, no inferno também não, no purgatório pagam-se as dívidas com rezas, aqui sim é que eles são precisos, para o ouro doutra custódia, para sustentar a prata toda esta gente, os dois cónegos que me levantam as pontas do pluvial e levam as mitras, os dois subdiáconos que me soerguem a fímbria da falda, os caudatários que vão atrás, por isso caudatários são, este meu mano, que é conde e me transporta a cauda do pluvial, os dois escudeiros com os flabelos, os maceiros com as varas de prata, o primeiro subdiácono com o véu da mitra aurifrigiata, a tal em que não se pode tocar com as mãos. Tolo foi Cristo que nunca pôs mitra na cabeça, seria filho de Deus, não duvido, mas rústico era, porque desde sempre se sabe que nenhuma religião vingará sem mitra, tiara ou chapéu de coco, pusesse-o ele e passava logo a sumo sacerdote, teria sido governador em vez de Pôncio Pilatos, olha do que eu me livrei, assim é que o mundo está bem, não fosse ele como o fizeram e não me veriam patriarca, pagai portanto o devido, dai a César o que é de Deus, a Deus o que é de César, depois cá faremos as contas e distribuiremos o dinheiro, pataca a mim, a ti pataca, em verdade vos digo e hei-de dizer. E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e o resto, que devotamente vou segurando uma destas sobredouradas varas, vede como se esforça um soberano para guardar, no temporal e no espiritual, pátria e povo, bem podia eu ter mandado em meu lugar um criado, um duque ou um marquês a fazer as vezes, porém, eis-me em pessoa, e também em pessoa os infantes meus manos e senhores vossos, ajoelhai, ajoelhai lá, porque vai passando a custódia e eu vou passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a graça de ser rei na terra, ganhará qual dos dois, o que for de carne para sentir, eu, rei e varrasco, bem sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne mística, misturada, confundida, enquanto os santos no oratório apuram o ouvido às ardentes palavras que debaixo do sobrecéu se murmuram, sobrecéu que sobre o céu está, este é o céu e não há melhor, e o Crucificado deixa pender a cabeça para o ombro, coitado, talvez dorido dos tormentos, talvez para melhor poder ver Paula quando se despe, talvez ciumento de se ver roubado desta esposa, flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa, mas enfim, depois eu saio e lá lhe fica, se emprenhou, o filho é meu, não vale a pena mandar anunciar outra vez, vêm aí atrás os cantores entoando motetes e hinos sacros, e isso me está fazendo nascer uma ideia, não há como os reis para as terem as ideias, senão como reinariam, virem as freiras de Odivelas cantar o Bendito ao quarto de Paula quando estivermos deitados, antes, durante e depois, ámen.

Troaram salvas e descargas das naus, salvou também o baluarte do Terreiro do Paço, a dois passos, e indo-se comunicando os ecos daqui e dali, retumbaram 'os canhões dos fortes e das torres, apresentaram armas os regimentos da corte, de Peniche e de Setúbal, formados na praça. Anda o Corpo de Deus passeando-se na cidade de Lisboa, sacrificado cordeiro, senhor dos exércitos, contradição insolúvel, sol de ouro, cristal e custódia derrubadora de cabeças, divindade devorada e até às fezes digerida quem se espantará de ver-te carne e unha com estes habitantes, degolados carneiros, soldados sem armas próprias, ossadas brancas no deserto, comedores de si próprios comidos, por isso se rojam pelas ruas as mulheres e os homens, dão bofetadas nas suas e próximas caras, batem cavamente nos peitos e ilhargas, estendem as mãos às fímbrias que passam, aos brocados e às rendas, aos veludos e aos laços, às fitas, aos bordados, e às jóias, Pater noster que non estis in coelis.

Desce a tarde. no céu, luz subtilíssima, quase invisível, está o primeiro sinal da lua. Amanhã Blimunda terá os seus olhos, hoje é dia de cegueira


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