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Memorial do Convento José Saramago

Vieram da missa e estão sentados debaixo do telheiro do forno. Cai uma chuva branda por entre o sol, Outono precoce, por isso Inês Antónia diz ao filho, Sai daí, que te molhas, e a criança faz de contas que não ouve, já nestes tempos é o costume dos rapazes, enquanto não declaram desobediências mais radicais, e Inês Antónia, tendo dito uma vez, não insiste, se ainda há três meses lhe morreu o mais novo, para que há-de atormentar agora este, deixá-lo brincar, ali, tão feliz, a meter os pés descalços nos charcos do quintal, Nossa Senhora o defenda das bexigas que levaram o irmão. Diz Álvaro Diogo, Já tenho uma promessa de trabalhar nas obras do convento real, era disto que estavam falando, só a mãe pensa no filho morto, assim dividem-se os pensamentos, e ainda bem, para não sobrecarregarem tanto, acabariam por tornar-se insuportáveis, como esta dor que Marta Maria sente, tenacíssima dor que lhe trespassa o ventre como as espadas trespassam o coração da Mãe de Deus, porquê o coração, se é no ventre que se geram as crianças, aí é o forno da vida, e como haveria de alimentar-se a vida senão com o trabalho, razão por que está Álvaro Diogo tão contente, um convento assim é obra para muitos e muitos anos, fica com o seu pão garantido quem souber de artes de pedreiro, trezentos réis de jornal, quinhentos em vindo a sazão, E tu, Baltasar, estás decidido a voltar para Lisboa, olha que fazes mal, porque aqui não vai faltar trabalho, Não haveriam de querer aleijados, tendo tanta gente por onde escolher, Com esse teu gancho fazes quase tudo quanto os mais fazem, Faria, se não é para me confortar que o dizes, mas precisamos voltar para Lisboa, não é, Blimunda, e Blimunda, que tem estado calada, acenou com a cabeça. Um pouco retirado, o velho João Francisco entrança uma soga de couro, ouve falar mas dá pouca atenção ao que estão dizendo, já sabe que o 'filho partirá uma destas semanas e quer-lhe mal por isso, ir-se outra vez embora, assim, depois de andar aqueles anos na guerra, Bem feito que tornasse sem a mão direita, é tal o amor que chegam a pensar-se coisas destas. Blimunda levantou-se, atravessou o quintal e saiu para o campo, debaixo das oliveiras que subiam pela encosta até aos marcos da obra, ia enterrando as tamancas grossas no alqueive que a chuva amaciara, se fosse descalça e pisasse pedras agudas, não as sentiria como seria possível doerlhe esse pouco, se toda ela está cheia do horror de ter ousado o que esta manhã ousou, aproximar-se da mesa da comunhão em jejum, fingiu comer o seu pão ainda deitada, como de costume e necessidade, mas não o comeu, depois andou sempre de olhos baixos, fingindo compungimento e devoção em casa, e assim entrou na igreja, esteve no ofício como se a prostrasse a presença de Deus, ouviu o sermão sem levantar a cabeça, esmagada, ao parecer, por todas as ameaças de inferno que caíam do púlpito, e enfim foi receber a sagrada partícula, e viu. Durante todos estes anos, desde que se revelara o dom que possuía, sempre comungara em pecado com alimento no estômago, e hoje decidira, sem nada dizer a Baltasar, que iria em jejum, não para receber a Deus, mas para o ver, se ele lá estava.

Sentou-se na raiz levantada duma oliveira, via-se dali o mar confundido com o horizonte, decerto estaria chovendo com força sobre as águas, então encheram-se de lágrimas os olhos de Blimunda, um grande soluço lhe sacudiu os ombros, e Baltasar tocou-lhe na cabeça, aproximara-se e ela não o ouvira, Que foi que viste na hóstia, afinal não o iludira a ele, como seria possível se dormem juntos e todas as noites se procuram e encontram, quer dizer, não serão todas, é certo que há seis anos que vivem como marido e mulher, Vi uma nuvem fechada, respondeu ela. Baltasar sentou-se no chão, não chegara ali a relha do arado, havia ervas secas, agora húmidas da chuva, mas esta gente popular não é mimosa, senta-se ou deita-se onde calha, melhor se pode um homem pousar a cabeça no regaço da mulher, estou que foi esse o último gesto quando as águas do dilúvio já afogavam o mundo. E Blimunda disse, Esperava ver Cristo crucificado, ou ressurrecto em glória, e vi uma nuvem fechada, Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o padre Bartolomeu Lourenço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado, quem sabe, e, mal foram estas palavras ditas, pôs-se a chuva a cair com mais força, sinal de sim, sinal de não, o céu agora uma pegada nuvem, mulher e homem debaixo duma árvore, nenhum filho nos braços, afinal não é certo que as situações se repitam, e os lugares são outros, e os tempos também, diferente a própria árvore, mas da chuva diremos que é o mesmo consolo da pele e da terra, vida que sendo excessiva mata, mas a isso nos habituámos desde o começo do mundo, sendo o vento maneiro mói o cereal, mas se é ponteiro rasga as velas do moinho, Entre a vida e a morte, disse Blimunda, há uma nuvem fechada.

Pontualmente escrevera o padre Bartolomeu Lourenço quando se instalou em Coimbra, notícia só de ter chegado e bem, mas agora viera uma nova carta, que sim, seguissem para Lisboa tão cedo pudessem, que ele, aliviando o estudo, os iria visitar, tanto mais que tinha obrigações eclesiásticas na corte, e então se aconselhariam na obra magna em que estavam ocupados, E agora digam-me cá, como vamos nós de vontades, pergunta inocente, parecia que se informava das vontades deles, quando das outras é que queria saber, e dos que as perdiam, mas dizia-o sem contar com a resposta, é como nas guerras, grita o capitão ou manda dizer o clarim por ele, Em frente, e não vai ficar à espera que os soldados se consultem e respondam, Iremos, não iremos, não vamos, mas que avancem e sem demora, ou são levados a conselho de guerra, Partimos para a semana, declarou Baltasar, e afinal ainda se passaram dois meses porque entretanto começou a constar-se em Mafra, e foi confirmado pelo vigário no sermão, que vinha el-rei a inaugurar a obra da raiz dos caboucos para cima, colocando com as suas reais mãos a primeira pedra. Primeiro se anunciou que seria aos tantos de Outubro, mas não houve tempo para cavar os alicerces até à sua conveniente fundura, apesar de serem seiscentos os homens, apesar dos muitos tiros de pólvora que a todas as horas do dia vão atroando os ares, será então em Novembro, meados dele, depois não pode ser, que já seria como de Inverno, andar aí el-rei enterrado na lama até às ligas das pernas. Venha pois sua majestade para que se comecem os dias gloriosos da vila de Mafra, para que os seus moradores levantem as mãos ao céu, eles que com os seus perecíveis olhos vão ver a quanto alcança a grandeza de um rei, monarca sublime, graças a quem podemos gozar estas antecâmaras do paraíso enquanto às celestiais moradas não acedermos, tarde seja, que mais apetece estar vivo que morto, Veremos a festa e depois partimos, decidiu Baltasar.

Já Álvaro Diogo está contratado, talha por enquanto a pedra que é trazida de Pêro Pinheiro, grandes blocos transportados em carros puxados por dez ou vinte juntas de bois, enquanto outros operários partem com os malhos a outra pedra grosseira que há-de servir para alicerces, este de quase seis metros de profundidade, metros é o que dizemos hoje, que então tudo se media a palmos, afinal continua a ser por eles que se medem os homens, os grandes e os pequenos, por exemplo, mais alto é Baltasar Sete-Sóis que D. João V, e não foi rei, e Álvaro Diogo, não sendo fraca figura, é pedreiro de obra grossa, ali está martelando a pedra, desbastando à face, mas este virá a fazer mais do que isto, tendo ajudado a pôr umas sobre outras, será no futuro canteiro e lavrante, porém é já real trabalho levantar uma parede direita, a fio de prumo, não esse ofício de sarrafos e pregos, como os carpinteiros que andam a carpinteirar aquela igreja de madeira, onde se celebrará o acto da bênção e da inauguração, quando el-rei vier. Leva a dita igreja uns altos e fortes mastros, dispostos pela mesma formalidade dos alicerces, quer dizer, segundo o perímetro que terá a basílica definitiva, e o tecto será armado com velas de navios, forradas de pano de brim, planta em cruz, como igreja que se preza de ser, de madeira, sim, e provisória, mas com a dignidade de anunciadora da que de pedra aqui se construirá, e para ver estes preparos desmazelam os moradores da vila de Mafra os mesteres e os trabalhos da lavoura, tornados mesquinhos pela grande fábrica que se ergue no alto da Vela, e ainda agora estão no princípio. Há quem tenha melhores razões, é o caso de Baltasar e Blimunda, que levam o sobrinho a ver o pai, e sendo hora do jantar vem Inês Antónia com a panela das couves cozidas e o naco do toucinho, está aqui uma família completa, só faltam os velhos, se isto não fosse o que sabemos, resultado de voto piedoso por ter nascido um filho ao rei, diríamos que é tudo romaria, pagamento de promessas gerais, cada qual a sua, Mas o meu filho é que ninguém mo torna a dar, pensou Inês Antónia, e quase quer mal a este que anda a brincar entre as pedras.

Uns dias antes dera-se em Mafra um milagre, que foi ter vindo do mar uma grande tempestade de vento e deu com a igreja de madeira em terra, mastros, tábuas, vigas, barrotes, de confusão com os panos, foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos, e a quem se escandalizar por dar a isto nome de milagre, sendo destruição, que outro nome se lhe haveria de pôr, sabendo que el-rei, chegado a Mafra e informado do sucesso, se pôs, ele, a distribuir moedas de ouro, assim, com esta mesma facilidade com que o contamos, porque os oficiais da obra em dois dias tinham tornado a levantar tudo, multiplicaram-se as moedas, que foi bem melhor que terem-se multiplicado os pães. É el-rei um monarca previdente que sempre leva arcas de ouro para onde vá, na previsão destes e outros temporais.

Enfim chegou o dia da inauguração, dormira D. João V no palácio do visconde, guardando-lhe as portas ó sargento-mor de Mafra, com uma companhia de soldados auxiliares, posto o que não quis perder Baltasar o ensejo e foi falar aos tropas, mas não lhe valeu a pena, ninguém o conhecia, e que queria ele, que ideia foi aquela de vir falar de guerras em tempo de paz, Homem, não me esteja a empachar a porta, que daqui a-pouco sai el-rei, dito o que subiu Baltasar ao alto da Vela, ia Blimunda com ele, e tiveram sorte, que puderam entrar na igreja, nem todos vieram a gabar-se disso, e era um pasmo lá dentro, o tecto todo toldado e forrado de tafetás encarnados e amarelos, repartidos em matizes vistosos, e as ilhargas cobertas de ricos panos de rás, formando todas as portas e janelas necessárias, à imitação da verdadeira igreja, tudo em igual correspondência, armadas umas e outras de cortinas de damasco carmesim, guarnecidas de galões e franjas de ouro. Quando el-rei chegar, primeiro encarará com as três largas portas da frontaria, tendo por cima um quadro que representa os santos Pedro e João naquele acto de sararem o mendigo que lhes pediu esmola à entrada do templo dito de Jerusalém, insinuada esperança doutros milagres que venham a produzir-se aqui, mas nenhum tão sonante como o das moedas de ouro já relatado, e, sobre aquele quadro, outro, mostrando Santo António, que a este é a basílica dedicada, por voto particular de el-rei, se não ficou dito já, sempre são seis anos de casos acontecidos, alguma coisa havia de esquecer. Lá dentro, como já começou a ser dito, isto sim, é um luxo, nem parece barraca para deitar abaixo depois de amanhã. Do lado do evangelho, quer-se dizer, do lado esquerdo de quem esteja virado para o altar, que só não é mor porque é único, e estas explicações não devem parecer mal, quem cuida ele que nós somos, alguns ignorantes, dão-se estas minúcias porque atrás de crença e ciência dela sempre vêm tempos incréus e ciências outras, sabe-se lá quem nos virá a ler, do lado do evangelho, sobre seis degraus, está um sitial decorado de tela branca preciosa e por cima um dossel, e fronteiramente, do lado da epístola, outro sitial, mas este assenta em só três degraus, em vez dos seis que solevantam o outro, o que se repete para que fique bem compreendida a diferença, enão tem sobrecéu, será para menos importante ocupação. É aqui que estão os paramentos de que D. Tomás de Almeida, o patriarca, se revestirá, e muita prataria para o serviço divino, tudo demonstrando a suma grandeza deste monarca que vem entrando. não falta nada na igreja, à esquerda do cruzeiro armou-se um coro para os músicos, forrado de damasco carmesim, com um órgão que tocará nas ocasiões próprias, e ali estarão também, em bancada reservada, os cónegos da patriarcal, e do lado direito é a tribuna para onde D. João V se encaminha, dali assistirá à cerimónia, os fidalgos e outras pessoas de merecimento sentados em baixo, nos bancos. O pavimento foi coberto de juncos e espadanas, e por cima estenderam-se panos verdes, já vem de muito longe, como se observa, este gosto português pelo verde e pelo encarnado, que, em vindo uma república, dará bandeira.

Benzeu-se a cruz no primeiro dia, enorme pau com cinco metros de altura, que daria para um gigante, Adamastor ou outro, ou para o tamanho natural de Deus, e diante dela se prosternaram todos os presentes, e maximamente el-rei, derramando muito devotas lágrimas, e quando a adoração da cruz acabou, quatro sacerdotes levantaram-na em peso, cada qual seu extremo, e a arvoraram sobre umapedra, adrede preparada, mas esta não a cortou Álvaro Diogo, com um buraco onde se lhe encaixou o pé, que, mesmo sendo a cruz divino emblema, não se aguenta se não ficar entalada, é o contrário dos homens, que mesmo sem pernas conseguem ficar direitos, a questão é quererem-no. Tocava airoso o órgão, sopravam os músicos, entoavam as vozes dos cantores, e, cá fora, o povo que não coubera ou estava sujo de mais para entrar, o povo que viera da vila e dos arredores, não admitido no sacro interior, contentava-se com os ecos das antífonas e das salmodias, e assim se acabou o primeiro dia.

Ai o dia seguinte, passado que foi aquele novo susto de repetir-se a rajada do vento do mar, que sacudiu toda a geringonça, mas enfim, soprou e passou, ai o dia seguinte, retorne-se a exclamação, dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar, se achavam reunidos os párocos de todas as freguesias em redor, com os seus clérigos e muito povo, é forte presunção que tenha vindo desta ocasião o dizer, para uso dos séculos e das gazetas. Chegou el-rei pelas oito horas e meia, já tomado o chocolate matinal, serviu-o por suas próprias mãos o visconde, e então se formou a procissão, à frente sessenta e quatro religiosos arrábidos, depois o clero da terra, a cruz patriarcal, seis homens de opas roxas, os músicos, capelães de sobrepelizes, grande cópia de clérigos vários, um espaço livre a preparar o que aí vinha, e eram os cónegos de pluviais de tela branca e outras bordadas, adiante de cada um deles os seus criados nobres, empós, sustentando-lhes as caudas, os caudatórios, e atrás o patriarca com preciosos paramentos e mitra do maior custo, adornada de pedras do Brasil, depois el-rei com a sua corte, juiz e vereadores da terra, corregedor da comarca, e grande número de gente, passante três mil, se não se enganou quem a contou, e tudo isto por causa de uma simples pedra, juntou-se aqui um poder de mundo, clarins e timbales atroando os ares superiores e inferiores, e a tropa de cavalaria e infantaria, mais a guarda alemã, e outra vez o povo, muito povo, tanto povo, nunca a vila de Mafra vira tal ajuntamento, porém, não cabendo todos na igreja, entram os grandes, e dos pequenos só os que cabem e tiveram artes de insinuar-se, antes fizeram os soldados as aclamações da ordenança, era isto ainda pela manhã, serenara de vez o vento forte e o que corria era apenas uma viraçãozinha do mar que fazia fraldejar as bandeiras e as saias das mulheres, ventinho fresco como próprio da estação, mas os corações ardiam de pura fé, exultavam as almas, e se, de extenuadas, já algumas vontades queriam retirar-se dos corpos, vinha Blimunda e não se perdiam nem subiam às estrelas.

Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelharse, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos. Enfim se encaminharam el-rei, o patriarca e alguns acólitos para o sítio onde se havia de colocar a pedra e as pedras, descendo por uma espaçosa escada de madeira que tinha trinta degraus, porventura em memória dos trinta dinheiros, e de largura mais de dois metros. Levava o patriarca a pedra principal, ajudado pelos cónegos, e outros destes a pedra segundeira e a urna de jaspe, atrás el-rei e o geral da Sagrada Ordem de S. Bernardo, como esmoler-mor. e que, por o ser, levava o dinheiro.

Assim desceu el-rei trinta degraus para o interior da terra, parece uma despedida do mundo, seria uma descida aos infernos se não estivesse tão bem defendido por bênçãos, escapulários e orações, e se aluíssem estas altas paredes que formam o cabouco, ora não tema vossa majestade, repare como as escorámos com a boa madeira do Brasil por maior fortaleza, aqui está um banco coberto de veludo carmesim, é uma cor que usamos muito em cerimónias de estilo e de estado, com o andar dos tempos vê-la-emos em sanefas de teatro, e sobre o banco está um balde de prata cheio de água benta, e também duas vassourinhas de urze verde com os cabos guarnecidos de cordão de seda e prata, e eu, mestre-da-obra, verto um cocho de cal, e vossa majestade, com esta colher de pedreiro de prata, perdão, senhor, de prata de pedreiro, se pedreiros a têm, estende a cal, mas antes a espargiu com a vassourinha molhada na água benta, e agora, ajudem-me aqui, podemos assentar a pedra, porém, sejam as mãos de vossa majestade as últimas a tocar-lhe, pronto, um toque mais para toda a gente ver, pode vossa majestade subir, cuidado não caia, que o resto do convento nós o construiremos, e agora podem ser postas as outras pedras, cada uma em sua cabeceira desta, e tragam os fidalgos mais doze, número de boa fortuna desde os apóstolos, e cochos de cal dentro de cestos de prata Assim ficará mais aconchegada a pedra principal, e o visconde da terra quer fazer como vê aos serventes de pedreiro, leva o cocho à cabeça, assim mostrando maior devoção, já que não foi a tempo de ajudar o Cristo a levar a cruz, despeja a cal que o haverá de comer, não seria mau o efeito de estilo, porém esta cal não está viva, meu senhor, mas apagada, Como as vontades, dirá Blimunda.

Ao outro dia, depois de el-rei partir para a corte, deitou-se abaixo a igreja sem ajuda do vento, apenas chovia água que Deus a dava, puseram-se a um lado as tábuas e os mastros para necessidades menos reais, andaimes, por exemplo, ou tarimbas, ou beliches, ou mesa de comer, ou rastos de tamancos, e os panos, tafetás ou damascos, as velas dos navios, cada um tornou ao seu natural, as pratas para o tesouro, os fidalgos para a fidalguice, o órgão para outras solfas, e os cantores, os soldados a luzir semelhantes paradas, só ficaram os arrábidos de olho alerta, e sobre a pedra cavada, cinco metros de pau crucificado, a cruz. Para os caboucos alagados tornaram a descer os homens porque nem em todos os lugares se alcançara a fundura requerida, sua majestade não viu tudo, e apenas disse, por outras palavras, quando entrava no coche que o levaria, Agora despachem-se com isto, há mais de seis anos que fiz o voto, não estou para andar com os franciscanos à perna todo o tempo, então o nosso convento, por causa do dinheiro não sejam os atrasos, gasta-se o que for preciso. Mas em Lisboa dirá o guarda-livros a el-rei, Saiba vossa real majestade que na inauguração do convento de Mafra se gastaram, números redondos, duzentos mil cruzados, e el-rei respondeu, Põe na conta, disse-o porque ainda estamos no princípio da obra, um dia virá em que quereremos saber, Afinal, quanto terá custado aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos, nem facturas, nem recibos, nem boletins de registo de importação, sem falar de mortes e sacrifícios, que esses são baratos.

Quando o tempo levantou, passada uma semana, partiram Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas para Lisboa, na vida tem cada um sua fábrica, estes ficam aqui a levantar paredes, nós vamos a tecer vimes, arames e ferros, e também a recolher vontades, para que com tudo junto nos levantemos, que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro, se a ele fizemos, a elas faremos, adeus minha mãe, adeus meu pai. Apenas disseram adeus, nada mais, que nem uns sabem compor frases, nem os outros entendê-las, mas, passando tempo, sempre se encontrará alguém para imaginar que estas coisas poderiam ter sido ditas, ou fingi-las, e, fingindo, passam então as histórias a ser mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam, ainda que já seja difícil pôr palavras diferentes no lugar destas, que é quando Marta Maria diz, Adeus, que não os torno a ver, e isto sim, vai ser verdade estreme, ainda as paredes da basílica não terão um metro acima do chão e já Marta Maria estará enterrada. Então João Francisco, de repente duas vezes mais velho, irá sentar-se debaixo do telheiro do forno, de olhar vazio, como agora está, vendo afastar-se o filho Baltasar, a filha Blimunda, que nora é nome sem jeito, porém tem ainda ali perto Marta Maria, é certo que já ausente, com um pé noutra margem, as mãos cruzadas sobre o ventre onde se gerou vida e agora se está gerando morte. Saíram-lhe pela mina do corpo os filhos, uns morreram cá fora, escaparam dois, este não nascerá, é a morte dela, Já nãose vêem daqui, vamos para dentro, diz João Francisco.

É dezembro, os dias são curtos, esfando o céu de nuvens mais cedo anoitece, por isso Baltasar e Blimunda dormirão uma noite no caminho, num palheiro de Morelena, disseram que vêm de Mafra e vão para Lisboa, viu o caseiro que eram gente honrada e emprestou-lhes uma manta para se cobrirem, a tanto pode chegar a confiança. Já sabemos que destes dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é saber que parte há em Cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma quando Blimunda levanta as saias e Baltasar deslaça as bragas, se está a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando. Este é o melhor cheiro do mundo, o da palha remexida, dos corpos sob a manta dos bois que ruminam na manjedoura, o cheiro do frio que entra pelas frinchas do palheiro, talvez o cheiro da lua, toda a gente sabe que a noite tem outro cheiro quando faz luar, até um cego, incapaz de distinguir a noite do dia, dirá, Está luar, pensa-se que foi Santa Luzia a fazer o milagre e afinal é só uma questão de fungar, Sim senhores, que lindo luar o desta noite.

De manhã, ainda não nascera o sol, levantaram-se. Blimunda já comeu o pão. Dobrou a manta, era apenas uma mulher repetindo um gesto antigo, abrindo e fechando os braços, segurando debaixo do queixo as dobras feitas, depois descendo as mãos até ao centro do seu próprio corpo e aí fazendo a dobra final, quem para ela olhasse não diria que tem estranhos poderes de ver, que, se esta noite estivesse fora do seu corpo, a si se veria debaixo de Baltasar, em verdade, de Blimunda se pode afirmar que vê os seus próprios olhos vendo. Quando o caseiro aqui entrar, verá a manta dobrada, como sinal de agradecimento, e sendo homem faceto perguntará aos bois, Digam-me cá, houve missa esta noite, e eles virarão as cabesas mal armadas, sem surpresa, os homens sempre têm alguma coisa para dizer, e às vezes acertam, este foi o caso, que entre o amor dos que ali dormiram e a santa missa não há diferença nenhuma, ou, se a houvesse, a missa perderia.

Vão já Blimunda e Baltasar a caminho de Lisboa, ladeando as colinas onde se levantam moinhos, o céu está encoberto, mal saiu o sol logo se escondeu, o vento é do Sul que vem, ameaça muita chuva, e Baltasar diz, Se começa a chover, não teremos onde recolher-nos, depois levanta os olhos para as nuvens, é uma única placa sombria, cor de ardósia, Se as vontades são nuvens fechadas, quem sabe se não ficarão presas nestas, tão escuras e grossas que nem o próprio sol se vê por trás delas, e Blimunda respondeu, Pudesses tu ver a nuvem fechada que dentro de ti está, Ou de ti, Ou de mim, pudesses tu vê-la, e saberias que é bem pouco uma nuvem do céu comparada com a nuvem que está dentro do homem, Mas tu nunca viste a minha nuvem, nem a tua, Ninguém pode ver a sua própria vontade, e de ti jurei que nunca te veria por dentro, mas tu, Baltasar Sete-Sóis, minha mãe não se enganou, quando me dás a mão, quando te encostas a mim, quando me apertas, não preciso ver-te por dentro, Se eu morrer antes de ti, peço-te que me vejas, Morrendo tu, vai-se-te a vontade do corpo, Quem sabe.

Não choveu todo o caminho. Só o grande tecto escuro que se alongava para o Sul e pairava sobre Lisboa, raso com as colinas no horizonte, parecia que levantando a mão se tocaria na primeira flor da água. às vezes é a natureza boa companhia, vai o homem, vai a mulher, as nuvens a dizerem umas para as outras, A ver se eles chegam a casa, depois já poderemos chover. Entraram Baltasar e Blimunda na quinta, na abegoaria, e enfim começou a chuva a cair, e como havia algumas telhas partidas, a água escorria em fio por ali, discretamente, apenas murmurando, Cá estou, chegaram bem. E quando Baltasar se aproximou da concha voadora e lhe tocou, rangeram os ferros, e os arames, é mais difícil saber o que quereriam dizer.


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