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Memorial do Convento José Saramago

Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu. Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da máquina voadora, pelo menos Deus não fez mais que falar e tudo com esse pouco se criou, assim ensinaram ao padre no seminário de Belém da Baía, assim lho confirmaram, por outras argumentações e estudos mais avançados, na Faculdade de Cânones de Coimbra, antes de fazer subir ao ar os seus balões primeiros, e, agora que chegou de terras holandesas, vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas é-lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e então, ainda que não voe, o consideram.

Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam passado desde que partira, estava a abegoaria em abandono, dispersos pelo chão os materiais que não valera a pena arrumar, ninguém adivinharia o que ali se andara perpetrando. Dentro do casarão esvoaçavam pardais, tinham entrado por um buraco do telhado, duas telhas partidas, ínfimas aves aquelas que nunca voariam mais alto que o mais alto freixo da quinta, o pardal é uma ave da terra e do terriço, do estrume e da seara, e quando morto se percebe que não poderia voar alto, tão frágil de asas, tão mesquinho de ossos, ao passo que esta minha passarola voará até onde cheguem olhos, veja-se o fortíssimo arcaboiço da concha que me há-de levar, com o tempo enferrujaram os ferros, mau sinal, não parece que Baltasar aqui tenha vindo como lhe recomendei tanto, mas é verdade que veio, por estes sinais de pés descalços, não trouxe Blimunda, ou Blimunda morreu, e dormiu na enxerga, está puxada a manta para trás como se agora mesmo se tivesse acabado de levantar, nesta mesma enxerga me deito, com esta manta me cubro eu padre Bartolomeu Lourenço que voltei da Holanda aonde fui averiguar se já na Europa sabem voar com asas, se nos estudos desta ciência vão mais adiantados do que eu estou no meu país de marinheiros, e em Zwolle, Ede e Nijkerk estudei com alguns sábios velhos e alquimistas, desses que sabem fazer nascer sóis dentro de retortas, mas depois morrem de morte estranha, vão ressequindo até não terem mais substância do que um feixe de palha estaladiça, e então como palha ardem, que isso é o que todos pedem à hora da morte, não mais que cinzas deixo, é por si próprios que se inflamam, e a mim me estava esperando aqui esta máquina voadora que ainda não voa, estas são as esferas que terei de encher com o éter celeste, cuidam as pessoas que sabem do que falam, olham para o céu edizem, Éter celeste, eu sim sei o que ele é, afinal tão simples como ter Deus dito, Faça-se a luz, e a luz fez-se, é maneira de falar, que entretanto se fez noite, acendo esta candeia que Blimunda deixou. Apago este pequenino sol que de mim depende atear ou extinguir à candeia me reporto, não a Blimunda, nenhum ser humano pode ter quanto deseja nesta sua única vida terrestre, talvez sonhando, boas noites.

Passadas algumas semanas, com todas as disposições, licenças e matriculações necessárias, partiu o padre Bartolomeu Lourenço para Coimbra, cidade tão ilustre, de tão velhos sábios, que, se nela houvesse alquimistas, em coisa alguma ficaria a dever a Zwolle, e vai o Voador por agora cavalgando uma remansosa mula alquilada, como convém a sacerdote sem extremadas artes de ginete e apenas provido de bens medianos, chegando ao seu destino voltará a montada com outro cavaleiro, talvez um doutor acabado, ainda que a esta dignidade melhor coubesse a liteira de longo curso, é como ir balouçando sobre as ondas do mar, se não fosse o macho da dianteira tão incontinente de ventos. Até à vila de Mafra, aonde primeiro vai, não tem a viagem história, salvo a das pessoas que por estes lugares moram, claro está que não podemos deter-nos no caminho e perguntar, Quem és, o que fazes, onde te dói, e se o padre Bartolomeu Lourenço algumas vezes parou, foi parar e andar, não mais que o tempo de uma bênção que lhe pediam, à quantos destes irá suceder entortar-se-lhes a história que tinham para entrarem nesta que vamos contando, o simples encontro do padre é um sinal, porque, indo ele a Coimbra, não seria este o caminho se não tivesse de ir à vila de Mafra por lá estarem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. Não é verdade que o dia de amanhã só a Deus pertença, que tenham os homens de esperar cada dia para saber o que ele lhes traz, que só a morte seja certa, mas não o dia dela, são ditos de quem não é capaz de entender os sinais que nos vêm do futuro, como este de aparecer um padre no caminho de Lisboa, abençoar porque a bênção lhe pediram, e seguir na direcção de Mafra, quer isto dizer que o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste que o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno.

É cedo ainda para estes acidentes. Quando o padre Bartolomeu Lourenço, na última volta do caminho, começou a descer para o vale, deu com uma multidão de homens, exagero será dizer multidão, enfim, umas centenas deles, e primeiro não entendeu o que se passava, porque toda aquela gente estava correndo a um lado, ouvia-se tocar uma trombeta, seria festa, seria guerra, deram então em rebentar tiros de pólvora, terra e pedras violentamente atiradas aos ares, foram os tiros vinte, tornou a tocar a trombeta, agora diferente toque, e os homens avançaram para o terreno revolvido, com carros de mão e pás, enchendo aqui, no monte, despejando além, na encosta para Mafra, ao passo que outros homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos já fundos, neles desapareciam, enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde outros homens iam por sua vez encher carros de mão, que lançavam no aterro, não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga até à próxima formiga, até que, como de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.

Com os calcanhares, o padre Bartolomeu Lourenço tocou para diante a mula, experiente animal que nem com a artilharia se assustara, é o que faz não ser de raça pura, estes já viram muito, a mestiçagem tornou-os pouco espantadiços, que é a maneira melhor de viverem neste mundo as bestas e os homens. Pelo caminho atascado de lama, sinal de que as fontes da terra andavam perdidas naquela comoção e surdiam onde não podiam aproveitar-se, ou em muito delgadas linfas se dividiam até de todo se separarem os átomos da água e ficar o monte seco, por esse caminho, tocando suavemente a mula, desceu o padre Bartolomeu Lourenço à vila e foi perguntar ao vigário onde moravam os Sete-Sóis. Tinha este pároco feito um bom negócio de terrenos por serem dele algumas das terras do alto da Vela, e, ou por valerem elas muito, ou por muito valer o proprietário, fez-se a avaliação pelo alto, cento e quarenta mil réis, nada que se possa comparar com os treze mil e quinhentos queforam pagos a João Francisco. É um vigário feliz, com a promessa de tão grande convento, oitenta frades confirmados, ali mesmo à porta de casa, com o que muito crescerá a vila em baptizados, casamentos e passamentos, cada sacramento dispensando a sua parte material e espiritual, desta maneira tanto se reforçando a burra como a esperança de salvação, na directa razão dos vários actos e prestações, Pois, padre Bartolomeu Lourenço, é grande honra minha recebê-lo nesta casa, os Sete-Sóis moram aqui perto, tinham um terreno ao lado dos meus no alto da Vela, mais pequeno, deve-se dizer, agora o velho e a família vivem de granjear um casal que tinham de renda, quem voltou há quatro anos foi o filho, o Baltasar, veio da guerra maneta, maneta da guerra, quero dizer, e trouxe mulher, acho que não estão casados à face da Santa Igreja, e ela tem um nome nada cristão, Blimunda, disse o padre Bartolomeu Lourenço, Conhece-a, Fui eu que os casei, Ah, então sempre são casados, Fui eu que os casei, em Lisboa, e tendo o Voador agradecido, que ali não era conhecido por tal, as efusões do vigário só tinham que ver com as particulares recomendações do paço, saiu a procurar os Sete-Sóis, contente por assim ter mentido à face de Deus e saber que Deus não se importava, um homem tem de saber, por si próprio, quando as mentiras já nascem absolvidas.

Foi Blimunda quem veio abrir a porta. Estava escurecendo a tarde, mas ela reconheceu o vulto do padre que desmontava, quatro anos não é tanto tempo assim, beijou-lhe a mão, não andassem por ali vizinhos curiosos e seria diferente a saudação, que estes dois, estes três, quando estiver Baltasar, têm razões do coração que os governam, e, em tantas noites passadas, uma terá havido, pelo menos, em que sonharam o mesmo sonho, viram a máquina de voar batendo as asas, viram o sol explodindo em luz maior, e o âmbar atraindo o éter, o éter atraindo o íman, o íman atraindo o ferro, todas as coisas se atraem entre si, a questão é saber colocá-las na ordem justa, e então se quebrará a ordem, Esta é a minha sogra, senhor padre Bartolomeu, aproximara-se Marta Maria, intrigada por não ouvir palavras, sendo certo que Blimunda fora abrir a porta sem que alguém a ela batesse, e agora estava ali um padre novo que perguntava por Baltasar, não é assim que costumam passar-se as visitas deste tempo, mas há excepções, como em todos os tempos sempre se disse, vir um padre de Lisboa a Mafra para falar a um soldado manco, e a uma mulher que é visionária da pior maneira, porque vê o que existe, como já secretamente o sabe Marta Maria que, queixando-se de ter uma nascida na barriga, Blimunda lhe respondeu que não tinha, mas era verdade que sim e ambas o sabiam, Come o teu pão, Blimunda, come o teu pão. Estava o padre Bartolomeu Lourenço sentado ao lume, que a noite refrescava, quando chegaram Baltasar e o pai. Viram a mula à porta, ainda arreada debaixo da oliveira, Quem terá vindo, perguntou João Francisco, e Baltasar não respondeu, mas adivinhou que seria padre, as mulas que carregam gente eclesiástica exibem uma certa e evangélica mansidão, quiçá induzida, que contrasta com o viço ainda rebelde das que só dão cavalaria a laicos, e sendo de padre a mula, com ar de vir de longe, não se esperando legado do papa nem aviso do núncio, tinha de ser Bartolomeu Lourenço, como logo se viu que era. A quem estranhar que tanto tivesse visto Baltasar Sete-Sóis quando já a noite se fechava, responda-se que o resplendor dos santos não é vã miragem do espírito perturbado dos místicos ou mera propaganda da fé em pintura a óleo, e que, de tanto dormir com Blimunda, e com ela quase todas as noites ter dares e tomares da carne, começava a haver em Baltasar um luzeiro espiritual de dupla visão, que, não dando para mais profundas penetrações, é quanto basta para observações sumárias como esta. Foi João Francisco tirar os arreios ao animal e voltou em tempo que estava o padre dizendo a Baltasar e Blimunda que cearia com o vigário, pois este o convidara, e em casa dele passaria a noite, primeiro, por não haver cómodos suficientes na morada dos Sete-Sóis, segundo, porque não faltaria estranhar Mafra que escolhesse padre vindo de longe para albergue, este só, pouco mais abrigado que o telheiro de Belém, em vez dos mimos paroquiais ou o palácio dos viscondes, onde não se recusaria aposento a um futuro doutor em cânones, e Marta Maria disse, Se estivéssemos prevenidos de que vinha vossa reverência, ao menos matavase o galo, o resto que temos não é coisa que se apresente, Disso mesmo que têm é que eu comeria com gosto, mas é melhor para todos que cá não fique nem coma, e quanto ao galo, senhora Marta Maria, deixe-o cantar, por melhor que ele soubesse depois de tirado da panela, muito maior alegria ó o canto da sua garganta, nem era coisa que às galinhas fizéssemos. Com esta tirada riu João Francisco, Marta Maria não pôde porque lhe deu o ventre uma guinada de dor, Blimunda e Baltasar apenas sorriram, não precisavam mais, se bem sabiam que os ditos do padre sempre iam cair ao lado das palavras esperadas, como por estas outras novamente se averiguava, Amanhã, uma hora antes do nascer do sol, levam-me a mula ao presbitério, arreada, vão os dois porque teremos de falar antes de eu partir para Coimbra, e agora, senhor João Francisco, senhora Marta Maria, aí vos fica a minha bênção, se para alguma coisa serve aos olhos de Deus, que é forte presunção cuidarmos que somos nós os juízes da bondade das bênçãos, mais uma vez, não se esqueçam, uma hora antes de nascer o sol, e tendo dito saiu, foi Baltasar acompanhá-lo com uma candeia que pouco alumiava, era só como se fosse dizendo à noite, Sou uma luz, e durante o breve caminho nem falou um nem falou outro, regressou Baltasar às escuras, vêem os pés onde assentam, e quando entrou na cozinha Blimunda perguntou, Então, disse o padre Bartolomeu o que queria. Não disse nada, amanhã o saberemos, e João Francisco, lembrandose, ria, Teve sua graça a do galo. Quanto a Marta Maria, estava adivinhando mistério, agora, Vamos cear, sentaram-se os dois homens à mesa, as mulheres de parte, o costume das famílias.

Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto, e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou ouvido dizer coisas destas.

Madrugada, chegaram Baltasar e Blimunda, traziam a mula pela arreata, mas o padre Bartolomeu Lourenço não precisou que o chamassem, abriu a porta mal ouviu bater as ferraduras nas pedras, e saiu logo, estavam as despedidas já feitas, ficava o vigário de Mafra com matéria para pensar, se Deus era fonte e os homens oceano, e que parte do saber geral lhe caberá de hoje em diante, que do saber passado esqueceu quase tudo, excepto, graças a uma continuada prática, o latim da missa e dos sacramentos e o caminho entre as pernas da ama, que esta noite, por causa do visitante, dormiu no vão da escada. Segurava Baltasar a mula, e Blimunda estava afastada alguns passos, de olhos baixos, com o bioco puxado para diante, Bons dias, disseram eles, Bons dias, disse o padre, e perguntou Blimunda ainda não comeu, e ela, da sombra maior das roupas, respondeu, Não comi, afinal, sempre tinham dito alguma coisa Baltasar e o padre Bartolomeu, Dize a Blimunda que não coma, e assim lhe foi dito a ela, murmurado ao ouvido, quando já estavam deitados, para que não os ouvissem os velhos, para mistério bastava.

Pelas ruas escuras, foram subindo até ao alto da Vela, aquela não era a estrada para a aldeia da Paz, caminho obrigatório para o norte que o padre leva, porém era como se tivessem de apartar-se dos lugares habitados, ainda que em todas estas barracas estejam homens dormindo, ou já acordando, são construções de fábrica precária, o mais que por aqui há são cabouqueiros, gente de muita força e pouco mimo, havemos de tornar a passar por estas bandas daqui por uns meses, mais ainda se forem anos, então veremos uma grande cidade de tábuas, maior que Mafra, quem viver verá, a isto e outras coisas, por agora bastem os toscos aposentos para neles descansarem os ossos os fatigados homens do alvião e da enxada, não tarda que toquem as cornetas, que também cá está a tropa, já não anda a morrer na guerra, e o que faz é guardar estas grosseiras legiões, ou ajudar onde não sofra a farda desdouro, em verdade mal se distinguem os guardas dos guardados, rotos uns, rasgados outros. O céu está cinzento e pérola para o lado do mar, mas, por cima dos cabeços que o defrontam, espalha-se lentamente uma cor de sangue aguado, depois vivo e vivíssimo, e em pouco virá o dia, oiro e azul, que a estação corre formosa. Blimunda é que nada vê, tem os olhos baixos, no bolso o bocado de pão que ainda não pode comer, Que será que vão querer de mim.

É o padre o que quer, não Baltasar, este sabe tão pouco como Blimunda. Em baixo, distingue-se confusamente o traçado dos caboucos, negro sobre sombra, há-de ser ali a basílica. O terrapleno começa a encherse de homens, estão a acender fogueiras, alguma comida quente para começar o dia, restos de ontem, daqui a pouco estarão bebendo o caldo das gamelas, molhando nele o pão grosso, só Blimunda terá de esperar a sua vez. Diz o padre Bartolomeu Lourenço, No mundo tenho-te a ti, Blimunda, a ti, Baltasar, estão no Brasil os meus pais, em Portugal meus irmãos, portanto pais e irmãos tenho, mas para isto não servem irmãos e pais, amigos se requerem, ouçam então, na Holanda soube o que é o éter, não é aquilo que geralmente se julga e ensina, e não se pode alcançar pelas artes da alquimia, para ir buscá-lo lá onde ele está, no céu, teríamos nós de voar e ainda não voamos, mas o éter, dêem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres, Nesse caso, é a alma, concluiu Baltasar, Não é, também eu, primeiro, pensei que fosse a alma, também pensei que o éter, afinal, fosse formado pelas almas que a morte liberta do corpo, antes de serem julgadas no fim dos tempos e do universo, mas o éter não se compõe das almas dos mortos, compõe-se, sim, ouçam bem, das vontades dos vivos.

Em baixo, começavam os homens a descer para os caboucos, onde mal se via ainda. Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade, ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira, E eu que faço, perguntou Blimunda, mas adivinhava a resposta, Verás a vontade dentro das pessoas Nunca a vi, tal como nunca vi a alma, Não vês a alma porque a alma não se pode ver, não vias a vontade porque não a procuravas, Como é a vontade, E uma nuvem fechada, Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta com Baltasar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o veria por dentro, Então comigo.

Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tornou a olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O padre persignou-se, Graças, meu Deus, agora voarei. Tirou do alforge um frasco de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde andarem pessoas, em procissões, em autos-de-fé, aqui nas obras do convento, e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele, E quando estiver cheio, Tem uma vontade dentro, já está cheio, mas esse é o indecifrável mistério das vontades, onde couber uma, cabem milhões, o um é igual ao infinito, E que faremos entretanto, perguntou Baltasar, Vou para Coimbra, de lá, a seu tempo, mandarei recado, então irão os dois para Lisboa, tu construirás a máquina, tu recolherás as vontades, encontrar-nosemos os três quando chegar o dia de voar, abraço-te Blimunda, não me olhes tão de perto, abraço-te Baltasar, até à volta. Montou a mula e começou a descer a ladeira. O sol aparecera por cima dos cabeços. Come o pão, disse Baltasar, e Blimunda respondeu, Ainda não, primeiro vou ver a vontade daqueles homens.


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