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Memorial do Convento José Saramago

Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, e mais abaixo ainda se os sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele. Talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal feitos e traçados com o sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil, estando ambos deitados de costas, repousando, e, por primeira infracção aos usos, nus como suas mães os tinham parido. Blimunda recolheu da enxerga, entre as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é heresia dizê-lo ou, maior ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alívio que levanta o peito é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá.

Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida. Não me faças isso, e Era o grito tal que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira.

Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o pão. Mastigava devagar. Quando terminou, deu um grande suspiro e abriu os olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido a pensar coisas destas, mas melhor que pensar finezas que poderiam servir nas antecâmaras da corte ou nos palratórios das freiras, foi sentir o calor do seu próprio sangue quando Blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando, que importavam agora os segredos, melhor seria tornar a aprender o que já sabia, o corpo de Blimunda ficará para outra ocasião, porque esta mulher, tendo prometido, vai cumprir, e diz, Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas.

Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti nunca te veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno a dizer que é verdade, Como hei-de ter a certeza, Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar, mas diz-me que mistério é este, como foi que te veio esse poder, se não estás a enganar-me, Amanhã saberás que falo verdade, E não tens medo do Santo Ofício, por muito menos têm outros pagado. O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue e fizeste-me com ele uma cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue de virgindade é água de baptismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo a alma, já viste a alma. Nunca a vi, Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar.

Durante todo esse dia, Baltasar duvidou se tivera tal conversa, ou se a sonhara, ou se, simplesmente, estivera num sonho de Blimunda. Olhava os grandes animais suspensos dos ganchos de ferro antes de serem esquartejados, esforçava os olhos, mas não via mais que a carne opaca, esfolada ou lívida, e quando os pedaços e as postas se espalhavam nas bancadas ou eram atirados para os pratos das balanças, compreendia que o poder de Blimunda tinha mais de condenação que de prémio, porque o interior destes animais não era realmente um gosto para a vista, como não o seria o das pessoas que vêm à carne, nem o das que a vendem, ou cortam, ou carregam, que é o ofício de Baltasar. Aliás, viu na guerra o que está vendo aqui, que para averiguar o que dentro há é sempre preciso um cutelo ou um pelouro, um machado ou o fio duma espada, uma faca ou uma bala, então se rasga a frágil pele, ainda mais dorida virgindade, os ossos aparecem, e as tripas, e com este sangue não vale a pena benzer-nos, porque não é de vida, sim de morte. São pensamentos confusos, que isto diriam se pudessem ser postos por ordem, aparados de excrescências, nem vale a pena perguntar, Em que estás a pensar, Sete-Sóis, porque ele responderia, julgando dizer a verdade, Em nada, e contudo já pensou tudo isto, e mais ainda que foi lembrar-se dos seus próprios ossos, brancos entre a carne rasgada, quando o levavam para a retaguarda, e depois a mão caída, arredada para o lado pelo pé do cirurgião. Venha outro, e aquele que aí vinha, coitado, bem pior iria ficar, se escapasse com vida, sem as duas pernas. Quer um conhecer os mistérios, e para quê, quando deveria bastar-lhe acordar de manhã e sentir, adormecida ou desperta, a mulher que veio com o tempo, o mesmo tempo que amanhã a levará, quem sabe se para outra cama, enxerga posta no chão, como esta, leito de embutidos e festões de ouro, que não faltam, dar e levar, trocar e trazer, e é loucura ou tentação do diabo perguntar-lhe, Por que comes tu pão, tendo fechados os olhos, se não o comendo és cega, não o comas para não veres tanto, Blimunda, porque ver como tu vês é a maior das tristezas, ou sentido que ainda não podemos suportar, E tu, Baltasar, em que pensas, Em nada, não penso em nada, nem sei se alguma vez pensei alguma coisa, Eh, Sete-Sóis, arrasta para aqui essa manta de toucinho.

Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púcaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. Passou a manhã, foi hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos, e enfim levanta-se Blimunda, descidas as pálpebras, faz Baltasar a sua segunda refeição, ela para ver não come, ele nem assim veria, e depois saem de casa, o dia está tão sossegado que nem parece próprio para estes acontecimentos. Blimunda vai à frente, Baltasar atrás, para que o não veja ela, para que saiba ele o que ela vê, quando lho disser.

E isto lhe diz, A mulher que está sentada no degrau daquela porta tem na barriga um filho varão, mas o menino leva duas voltas de cordão enroladas ao pescoço, tanto pode viver como morrer, a sabê-lo não chego, e este chão que pisamos tem por cima barro encarnado por baixo areia branca, depois areia preta, depois pedra cascalha, pedra granita no mais fundo, e nela há um grande buraco cheio de água com o esqueleto de um peixe maior que o meu tamanho, e este velho que passa está como eu estou, de estômago vazio, mas vai-se-lhe a vista, é o contrário de mim, e aquele homem novo que me olhou tem o seu membro de homem apodrecido de venéreo, purgando como uma bica, enrolado em trapos, e apesar disso sorri, é a sua vaidade de homem que o faz olhar e sorrir, provera que não tenhas tu destas vaidades. Baltasar, e sempre te aproximes de mim limpo, e ali vai um frade que leva nas tripas uma bicha solitária que ele tem de sustentar comendo por dois ou três, por dois ou três comeria mesmo que a não tivesse, e agora vê aqueles homens e aquelas mulheres ajoelhados diante do nicho de S. Crispim, o que tu podes ver são persignações, o que tu podes ouvir são pancadas no peito, e as bofetadas que por penitência dão uns nos outros e a si próprios, mas eu vejo sacos de excrementos e de vermes, e ali uma nascida que vai estrangular a garganta daquele homem, não o sabe ele ainda, amanhã saberá, e será tão tarde como já é hoje, porque é sem remédio, E como hei-de eu acreditar que tudo isso é verdade, se tu vais explicando coisas que eu não posso ver com os meus olhos, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Faze com o teu espigão um buraco naquele lugar e encontrarás uma moeda de prata, e Baltasar fez o buraco e encontrou, Enganaste-te, Blimunda, a moeda é de ouro. Melhor pára ti, e eu não deveria ter arriscado, porque sempre confundo a prata com o ouro, mas em ser moeda e valiosa acertei, que mais queres, tens a verdade e o lucro, e se a rainha por aqui passasse eu te diria que está outra vez prenha, mas que ainda é cedo para saber se ocupou de varão ou fêmea, já dizia minha mãe que a matriz das mulheres o mal é ter enchido uma vez, logo quer mais e sempre, e agora te digo que começou a mudar o quarto da lua, porque sinto os olhos a arderem-me e vejo umas sombras amarelas a passar diante deles, são como piolhos caminhando, remexendo as patas, e são amarelos, mordem-me os olhos, pela salvação da tua alma te peço, Baltasar, leva-me para casa, dá-me de comer, e deita-te comigo, porque aqui adiante de ti não te posso ver, e eu não te quero ver por dentro, só quero olhar para ti, cara escura e barbada, olhos cansados boca que é tão triste, mesmo quando estás ao meu lado deitado e me queres, leva-me para casa, que eu irei atrás de ti, mas com os olhos baixos, porque uma vez jurei que nunca te veria por dentro, e assim será, castigada seja eu se alguma vez o fizer.

Levantemos agora os nossos próprios olhos, que é tempo de ver o infante D. Francisco a espingardear, da janela do seu palácio, à beirinha do Tejo, os marinheiros que estão empoleirados nas vergas dos barcos, só para provar a boa pontaria que tem, e quando acerta e eles vão cair no convés, sangrando todos, um e outro morto, e se a bala errou não se livram de um braço partido, dá o infante palmas de irreprimível júbilo, enquanto os criados lhe carregam outra vez as armas, bem pode acontecer que este criado seja irmão daquele marinheiro, mas a esta distância nem sequer a voz do sangue é possível ouvir, outro tiro, outro grito e queda, e o contramestre não se atreve a mandar descer os marujos para não irritar sua alteza e porque, apesar das baixas, a manobra tem de ser feita e dizermos nós que ele não se atreve é ingenuidade de quem de longe está olhando, porque o mais certo é nem sequer pensar esta simples humanidade. Lá está aquele filho da puta a dar tiros nos meus marinheiros que vãopara o mar a descobrir a Índia descoberta ou o Brasil encontrado, e em vez disso dá ordem para que venham lavar o convés, e sobre esta matéria não temos mais que dizer, que tudo viria a dar em repetição fastidiosa, afinal, se há-de o marinheiro levar um tiro fora da barra, de um corsário francês, melhor é que lho dêem aqui, morto ou ferido sempre está na sua terra, e por falarmos de corsário francês, vão os nossos olhos mais longe, lá no Rio de Janeiro, onde entrou uma armada daqueles inimigos, e não precisaram de dar um tiro, estavam os portugueses a dormir a sesta, tanto os do governo do mar como do governo da terra, e tendo os franceses fundeado a seu bel-prazer, desembarcaram, eles sim que parecia que estavam na sua terra, a prova foi que o governador deu logo ordem formal para que ninguém tirasse nada de casa, lá teria as suas boas razões, pelo menos as que o medo dá, tanto que os franceses deram eles saque a tudo o que encontraram, e com o que não fizeram recolher aos navios armaram uma venda no meio da praça, que não faltou quem ali fosse comprar o que roubado lhe fora uma hora antes. Não pode haver maior desprezo, e deitaram fogo à casa do fisco, e foram aos matos, por denúncia de judeus, a desenterrar o ouro que certas pessoas principais tinham escondido, e isto sendo os franceses apenas dois ou três mil e os nossos dez mil, porém estava o governador feito com eles, não há mais que saber, que, entre portugueses traidores houve muitas vezes, ainda que nem tudo seja o que parece, por exemplo, aqueles soldados dos regimentos da Beira de quem dissemos que desertaram para o inimigo, não desertaram, antes foram para onde lhes dariam de comer, e outros houve que fugiram para as suas casas, se isso é traição, é o que está sempre a suceder, quem quiser soldados para entregar à morte há-de ao menos dar-lhes de comer e de vestir, enquanto estiverem vivos, e não andarem por aí descalços, sem trabalhos de marcha e disciplina, mais gostosos de pôr o próprio capitão na mira da espingarda do que de estropiar um castelhano do outro lado, e agora, se quisermos rir do que estes nossos olhos vêem, que a terra dá para tudo, consideremos o caso das trinta naus de França que já se disse estarem à vista de Peniche, ainda que não falte quem diga tê-las avistado no Algarve, que é perto, e na dúvida se guarneceram as torres do Tejo, e toda a marinha se pôs de olho alerta, até Santa Apolónia, como se as naus pudessem vir rio abaixo, de Santarém ou Tancos que isto de franceses é gente capaz de tudo, e estando nós tão pobrezinhos de barcos pedimos a uns navios ingleses e holandeses que aí estão e eles foram pôr-se na linha da barra, à espera do inimigo que há-de estar no espaço imaginário, já em tempos antes contados se deu aquele famoso caso da entrada dos bacalhaus, e agora veio-se a saber que eram vinhos comprados no Porto, e as naus francesas são afinal inglesas que andam no seu comércio, e de caminho vão-se rindo à nossa custa, bom prato somos para galhofas estrangeiras, que também as temos excelentes da nossa lavra, é bom que se diga, esta tão claramente vista à luz do dia que não foram precisos os olhos de Blimunda. E foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam, satisfazendo os apetites do estômago e desenfadando os da carne, e sempre pontualmente dizendo sua missa, quando lá lhe parecia alçava levando os bens que lhe estavam à mão, e tantas fez que um dia a ofendida, a quem muito mais se tirara fio que o tudo que dera, tirou ela ordem de prisão, e indo os oficiais e agarradores a cumpri-la por ordem do corregedor do bairro, a uma casa onde o clérigo já estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu em pêlo, e, disparando escada abaixo, a murro e pontapé limpou o caminho, ficaram gemendo os quadrilheiros pretos, mas conforme puderam, cainçando, correram atrás do padre pugilista e garanhão, que já lá ia pela Rua dos Espingardeiros, e eram isto oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e janelas, ver o clérigo a correr como lebre, com os pretos atrás, e ele de verga tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é a servir nos altares mas na cama de serviço às mulheres, e com este espectáculo padeceram grande abalo as senhoras moradoras, coitadas, assim desprevenidas, como desprevenidas e isentas estariam as que se achavam rezando na igreja da Conceição Velha. E viram entrar o padre resfolgando, em figura de inocente Adão, mas tão carregado de culpas, sacudindo badalo e guizos, à uma apareceu, às duas se escondeu, às três nunca mais foi visto, que nesse passe de mágica deu a diligência dos padres que o recolheram e deram fuga pelos telhados, já vestido, nem isto é sucesso que cause estranheza, se em cestos içam os franciscanos de Xabregas mulheres para dentro das celas e com elas se gozam, por seu próprio pé subia este padre a casa das mulheres que lhe apeteciam o sacramento, e para não fugirmos ao costumado fica tudo entre o pecado e a penitência, que não é só na procissão da Quaresma que saem à rua as disciplinas excitantes, quantos maus pensamentos hão-de ter de confessar as senhoras moradoras da baixa de Lisboa e as devotas da Conceição Velha por tão rico padre terem gozado com a vista, e os quadrilheiros atrás dele, agarra, agarra, quem pudera agarrá-lo para uma coisa que eu cá sei, dez padre-nossos, dez salve-rainhas, e dez réis de esmola ao nosso padre Santo António, e ,estar deitada uma hora inteira, com os braços em cruz, de barriga para baixo como à prosternação convém, de barriga para cima que é posição de mais celestial gozo, mas sempre levantando os pensamentos, não as saias, que isso ficará para o próximo pecado.

Usa cada qual os olhos que tem para ver o que pode ou lhe consentem, ou apenas parte pequena do que desejaria, quando não é por simples obra de acaso, como Baltasar, que por trabalhar no açougue veio com os mais moços de carga e cortadores ao terreiro, a ver chegar o cardeal D. Nuno da Cunha que vai receber o chapéu das mãos de el-rei, acompanha-o o enviado do papa numa liteira toda forrada de veludo carmesim com passarinhos de ouro, dourados também os painéis, e ricamente, com as armas cardinalícias de um lado e do outro, traz um coche de respeito, que não leva ninguém dentro, só o respeito, mais uma estafa para o estribeiro e para o secretário doméstico, e também o capelão que leva a cauda quando a cauda tem de ser levada, e vêm dois coches castelhanos a deitar por fora capelães e pagens, e à frente da liteira doze lacaios, que somando a isto tudo os cocheiros e liteireiros é uma multidão para servir um cardeal só, quase íamos esquecendo o criado que lá vai adiante com a maça de prata, lembrou a tempo, feliz povo este que se regala de tais festas e desce à rua para ver desfilar a nobreza toda, que primeiramente foi a casa do cardeal buscá-lo. Depois o vem acompanhando até ao paço, aonde já Baltasar não pode ir nem entram os olhos que tem, mas conhecendo nós as artes de Blimunda, imaginemos que ela aqui está, veremos o cardeal subindo por entre fileiras de guardas, e entrando na última casa do dossel sai el-rei a recebê-lo e ele lhe deu água benta, e na casa seguinte ajoelha el-rei numa almofada de ..veludo, e o cardeal noutra, mais atrás, diante de um altar ricamente armado, onde logo diz missa um capelão do paço, com todas as cerimónias, e acabada ela tira o enviado do papa o breve de nomeação e o entrega a el-rei que o recebe e devolve para que o leia, por assim determinar o protocolo, não porque el-rei não tenha seus fumos de latinista, feito o que recebe el-rei das mãos do enviado o barrete cardinalício e o põe na cabeça do cardeal, esmagado de cristã humildade claro está, que são cargas demasiadas para um pobre homem ser assim íntimo de Deus, mas não terminaram ainda as zumbaias, primeiro foi o cardeal mudar de roupas, e agora reaparece todo de vermelho vestido, como é próprio da sua dignidade, torna a entrar para falar a el-rei, este debaixo do dossel, por duas vezes tira e põe o barrete, por duas vezes faz el-rei o mesmo com o seu chapéu, e à terceira dá quatro passos a recebê-lo, enfim se cobrem ambos, e sentados, um mais acima, outro mais abaixo, dizem algumas poucas palavras, ditas já foram, são horas de despedir, tira chapéu, põe chapéu, mas dali ainda o cardeal vai ao quarto da rainha, onde as continências se repetem, ponto por ponto, até que enfim desce o cardeal à capela onde se vai cantar o Te Deum laudamus, louvado seja Deus que tem de aturar estas invenções.

Chegando a casa, conta Baltasar o que viu .a Blimunda, e como se anunciaram luminárias descem ao Rossio depois de cear, mas as tochas são poucas desta vez, ou o vento as apagou, o que importa é que já lá tem o cardeal o seu barrete, dormirá com ele à cabeceira, e se a meio da noite se levantar da cama para o contemplar sem testemunhas, não recriminemos este príncipe da Igreja porque todos somos homens pela banda do orgulho, e um barrete de cardeal, vindo por mão própria de Roma e de propósito feito, se não anda aqui experimentação maliciosa da modéstia dos grandes, é porque afinal merece inteira confiança a humildade deles, humildes realmente são se lavam pés a pobres, como fez e fará o cardeal, como fizeram e farão o rei e a rainha, ora tem Baltasar as solas rotas e os pés sujos, primeira condição para que o cardeal ou rei se ajoelhem um dia diante dele, com toalhas de linho, bacias de prata e água-de-rosas, desde que a outra condição Baltasar satisfaça, que é a de ser ainda mais pobre do que até agora conseguiu ser, e à condição terceira, que é escolherem-no por virtuoso e cliente da virtude. Da tença que pediu, ainda não há sinal, de pouco têm servido as instâncias do padre Bartolomeu Lourenço, seu padrinho, do açougue o mandarão embora não tarda, por qualquer pretexto, mas lá estão os caldos da portaria, as esmolas das irmandades, é difícil morrer de fome em Lisboa, e este povo habituou-se a viver com pouco. Entretanto, nasceu o infante D. Pedro, que por vir segundo só teve quatro bispos a baptizá-lo, mas ficou a ganhar por ter sido parte no baptismo o cardeal, que ao tempo da sua mana ainda não havia, e veio notícia de que no cerco de Campo Maior morreram muitos soldados inimigos e poucos dos nossos, se amanhã não se disser que foram muitos dos nossos e poucos dos deles, ou ela por ela, que é o que virão a dar as contas quando, ao ir acabar-se o mundo, se contarem os mortos de todos os lados. Baltasar conta a Blimunda casos da sua guerra, e ela segura-lhe o gancho do braço esquerdo como se a verdadeira mão segurasse, é o que ele está sentindo, a memória da sua pele sentindo a pele de Blimunda.

El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há-de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não hão-de os franciscanos de cá ser de menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria um ermo, mas esse era santo e está morto. Oremos.


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