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Memorial do Convento José Saramago

Mas tem cada coisa seu tempo. Por enquanto, faltando ao padre Bartolomeu Lourenço o dinheiro para comprar os ímanes que, na sua ideia, hão-de fazer voar a passarola, cujos, ainda por cima, terão de vir do estrangeiro, está Sete-Sóis no açougue do Terreiro do Paço, por empenho do mesmo padre, transportando ao lombo peças de carne variada, quartos de boi, leitões às dúzias, carneiros aos pares, que passam de um gancho para outro gancho, e no trânsito deixam toalhas de sangue na serapilheira que lhe cobre as costas e a cabeça, é um ofício sujo, vá lá que compensado por algumas sobras, um pé de porco, uma franja de dobrada, e, querendo Deus e o humor do açougueiro, a apara de vazia, de alcatra ou pojadouro, embrulhados numa crespa folha de couve, para que Blimunda e Baltasar se alimentem um pouco melhor que o vulgar, quem parte e reparte, mesmo não sendo Baltasar o da partição, para alguma coisa aproveitaria a arte.

Para D. Maria Ana é que lhe vem chegando o tempo. A barriga não aguenta crescer mais por muito que a pele estique, é umbojo enorme, uma nau da Índia, uma frota do Brasil, de vez em quando manda el-rei saber como vai a navegação do infante, se já se avista ao longe, se o traz bom vento ou sofreu assaltos, como aqueles que sofrem as nossas esquadras, que ainda agora, na altura das ilhas, tomaram os franceses seis naus mercantes nossas e uma de guerra, que tudo isto e muito mais se podia esperar dos cabos que temos e dos comboios que armamos, e agora parece que vão os ditos franceses esperar o resto dos nossos barcos à entrada de Pernambuco e da Baía, se é que não estão já à espreita da frota que há-de ter saído do Rio de Janeiro. Tantas foram as descobertas que fizemos quando houve que descobrir, e agora nos passam os outros à capa como a inocentes touros, sem artes de marrar, ou não mais que por acaso. A D. Maria Ana chegam também estas más notícias, coisas que sempre aconteceram há um mês, dois meses, quando o infante ainda era no seu ventre uma gelatina, um girino, um troço cabeçudo, é extraordinário como se formam um homem e uma mulher, indiferentes, lá dentro do seu ovo, ao mundo de fora, e contudo com este mundo mesmo se virão defrontar, como rei ou soldado, como frade ou assassino, como inglesa em Barbadas ou sentenciada no Rossio, alguma coisa sempre, que tudo nunca pode ser, e nada menos ainda. Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios.

Porém, nem tudo é assim tão deplorável para as navegações portuguesas. Chegou há dias a nau de Macau que se esperava, tendo partido daqui há vinte meses, onde isso vai, ainda Sete-Sóis andava na guerra, e fez feliz jornada apesar de ser larga a viagem, que fica Macau muito para lá de Goa, terra de tantas bem-aventuranças, a China, que excede a todas as outras nos regalos e riqueza, e os géneros todos quanto pode ser baratos, e tem de mais o favorável e sadio do clima, tanto que de todo se ignoram achaques e doenças, por isso não há nela médicos nem cirurgiões, e morre cada um só de velho e desamparado da natureza, que não nos pode garantir sempre. Carregou a nau na China tudo rico e precioso, passou pelo Brasil a fazer negócio e meteu açúcares e tabacos, mais muita abundância de ouro, que para tudo isto deram os dois meses e meio que esteve no Rio e na Baía, e em cinquenta e seis dias de viagem veio de lá aqui, e houve causa milagrosa para que em jornada tão perigosa e dilatada nem adoeceu nem morreu um só homem que fosse, que parece que aproveitou a missa quotidiana que cá se ficou dizendo por intenção da viagem a nossa Senhora da Piedade das Chagas, e nem errou o caminho, ignorando-o o piloto, se tal é crível, com o que já se vai dizendo que negócios bons são os da China. Mas, para não ser tudo perfeito, chegou a notícia de estar acesa a luta entre os do Pernambuco e os do Recife, todos os dias ali se dão batalhas, algumas muito sanguinolentas, e foram ao ponto de deitar fogo aos matos, queimando todos os açúcares e tabacos, que para el-rei é perda muito considerável.

Dão, se calha, estas e outras notícias a D. Maria Ana, mas ela está flutuando, indiferente, no seu torpor de grávida, dizerem-lhas ou calarem-lhas tanto faz, e até da sua primeira glória de ter fecundado não resta mais que uma ténue lembrança, pequena brisa do que foi vento de orgulho, quando nos primeiros tempos se sentia como aquelas figuras que à proa das naus se põem e que, não sendo as que mais longe observam, para isso lá está o óculo e lá está o gajeiro, são as que mais fundo vêem. Uma mulher grávida, rainha ou comum, tem um momento na vida em que se sente sábia de todo o saber, ainda que intraduzível em palavras. Mas depois, com o inchar excessivo da barriga e outras misérias do corpo, só para o dia de parir têm pensamentos, nem todos alegres, quantas vezes aterradas por agoiros, mas neste caso vai ser de grande ajuda a ordem franciscana, que não quer perder o prometido convento. Andam ao despique todas as congregações da Província da Arrábida, dizendo missas, fazendo novenas, promovendo orações, por intenção geral e particular, explícita e implícita, para que nasça bem o infante e numa boa hora, para que não traga defeito visível ou invisível, para que seja varão, com o que alguma mazela menor poderia desculpar-se, senão ver nela especial distinção divina. Mas, sobretudo, porque um infante macho daria maior contentamento a el-rei.

D. João V vai ter de contentar-se com uma menina. nem sempre se pode ter tudo, quantas vezes pedindo isto se alcança aquilo, que esse é o mistério das orações, lançamo-las ao ar com uma intenção que é nossa, mas elas escolhem o seu próprio caminho, às vezes atrasam-se para deixar passar outras que tinham par tido depois, e não é raro que algumas se acasalem, assim nascendo orações arraçadas ou mestiças, que não são nem o pai nem a mãe que tiveram, quando calha brigam, param na estrada a debater contradições, e por isso é que se pediu um rapaz e veio uma rapariga, vá lá saudável e robusta, e de bons pulmões, como se percebe pela gritaria. Mas o reino está gloriosamente feliz, não só porque nasceu o herdeiro da coroa e pelas luminárias festivas que por três dias foram decretadas, mas porque, havendo sempre que contar com os efeitos secundários que têm as preces sobre as forças naturais, podendo até acontecer que dêem em grandes secas, como esta que há oito meses durava e só essa causa podia ter, nem se via que outra fosse, acabadas as orações deu em chover, enfim, que já se diz que o nascimento da infanta trouxe auspícios de felicidade, pois agora chove tanto que só Deus a pode estar mandando, por alívio seu da importunação que lhe fazíamos. Já andam os lavradores lavrando, vão para o campo mesmo debaixo de chuva, a leiva cresce da terra húmida como saem as crianças lá donde vêm, e, não sabendo gritar como elas, suspira ao sentir-se rasgada pelo ferro, e deita-se de lado, luzidia, oferecendo-se à água que continua a cair, agora muito devagar, quase poalha impalpável, para que não se perca a forma do alqueive, terra encrespada para o conchego da seara. Este parto é muito simples, mas não se pode fazer sem aquilo que os outros primeiro requereram, a força e a semente. Todos os homens são reis, rainhas são todas as mulheres, e príncipes os trabalhos de todos.

Porém, não convém perder de vista as diferenças,que são muitas. Foi a princesa a baptizar, em dia de Nossa Senhora do Ó dia por excelência contraditório, pois já está a rainha despejada da sua redondez, e logo se observa que, finalmente, nem todos os príncipes são príncipes por igual, como com muita clareza está mostrando a pompa e solenidade com que se dará o nome e o sacramento a este, ou esta, com todo o paço e capela real armados de panos e ouros, e a corte ajoujada de galas, que mal se distinguem as feições e os vultos debaixo de tanto adereço de franças e bandarras. Saiu o acompanhamento da câmara da rainha para a igreja, passando pela sala dos Tudescos, e atrás dele o duque de Cadaval, com a sua opa roçagando o chão, sob o pálio vai o duque, e às varas pegam, por distinção, títulos de primeira grandeza e conselheiros de Estado, e nos braços do duque, quem vai, vai a princesa, enfaixada de linhos, franzida de laços, escorrida de fitas, e atrás do pálio a nomeada aia, que é a condessa de Santa Cruz velha, e todas as damas do paço, as formosas e as não tanto, e enfim meia dúzia de marqueses e o duque filho, que trazem as insígnias da toalha, do saleiro, do óleo, e o resto, que para todos havia.

Sete bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor, e ficou a chamar-se Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de Dona adiante, apesar de tão pequena ainda, está ao colo, baba-se e já é dona, que fará em crescendo, e leva, por começo, uma cruz de brilhantes que lhe deu seu padrinho e tio, o infante D. Francisco, cuja custou cinco mil cruzados, e o mesmo D. Francisco mandou à rainha sua comadre, de presente, uma pluma de toucar, estou que por galantaria, e uns brincos de diamantes, esses. sim, de superlativo valor, perto de vinte e cinco mil cruzados, é obra, mas francesa.

Para este dia baixou el-rei da sua grandeza e majestade e assistiu, não por trás das rótulas, mas público, e não na sua tribuna, mas na da rainha, em mostra do muito respeito que lhe merecia, assim posta a feliz mãe ao lado do feliz pai, ainda que em cadeira mais baixa, e à noite houve luminárias. Sete-Sóis baixou com Blimunda do alto do castelo para ver as luzes e os adornos, o paço armado de colgaduras, os arcos mandados levantar pelos ofícios. Está mais cansado que de costume, talvez por ter carregado tanta carne para os banquetes que festejaram o nascimento e vão festejar o baptizado. Dói-lhe a mão esquerda de tanto puxar, içar e arrastar. O gancho descansa no alforge que leva ao ombro. Blimunda segura-lhe a mão direita. Em um qualquer destes meses que passaram, morreu de santa morte frei António de S. José. Salvo se vier a aparecer em sonhos a el-rei, já não poderá recordar-lhe a promessa, porém sosseguemos, a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não prometas, e D. João V é rei de palavra. Haveremos convento.


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