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Memorial do Convento José Saramago

Este que por desafrontada aparência, sacudir da espada e desparelhadas vestes, ainda que descalço, parece soldado, é Baltasar Mateus, o Sete-Sóis. Foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala em frente de Jerez de los Caballeros, na grande entrada de onze mil homens que fizemos em Outubro do ano passado e que se terminou com perda de duzentos nossos e debandada dos vivos, acossados pelos cavalos que os espanhóis fizeram sair de Badajoz. A Olivença nos recolhemos, com algum saque que tomámos em Barcarrota e pouco gosto para gozar dele, que não tinha valido a pena marchar dez léguas para lá e correr outras tantas para cá, deixando no campo tanta gente morta e metade da mão de Baltasar Sete-Sóis. Por muita sorte, ou graça particular do escapulário que traz ao peito, não gangrenou a ferida ao soldado nem lhe rebentaram as veias com a força do garrote, e, sendo hábil o cirurgião, bastou desarticular-lhe as juntas, desta vez nem foi preciso meter o serrote ao osso. Com ervas cicatrizantes lhe almofadaram o coto, e tão excelente era a carnadura de Sete-Sóis que ao cabo de dois meses estava sarado.

Por ser pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moedas que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia de fazer as vezes da mão. Assim passou o Inverno, forrando metade do que conseguia angariar, acautelando para o caminho metade da outra metade, e entre a comida e o vinho se lhe ia o resto. Já era Primavera quando, pago aos poucos por conta, o seleiro, com a última verba, lhe entregou o gancho, mais o espigão que, por capricho de ter duas diferentes mãos esquerdas, Baltasar Sete-Sóis encomendara. Eram asseadas obras de couro, ligadas perfeitamente aos ferros, sólidos estes de malho e têmpera, e as correias de dois tamanhos, para atar acima do cotovelo e ao ombro, por maior reforço. Começou Sete-Sóis a sua viagem ao tempo de se saber que já o exército da Beira se deixava ficar pelos quartéis e não vinha ajudar ao Alentejo por ser a fome muita nesta província, sobre ser geral nas outras. A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava-se a ir à batalha, e tanto desertava para o inimigo como debandava para as suas terras, metendo-se fora dos caminhos, assaltando para comer, violando mulheres desgarradas, cobrando, enfim, a dívida de quem nada lhes devia e sofria desespero igual. Sete-Sóis, mutilado, caminhava para Lisboa pela estrada real, credor de uma mão esquerda que ficara parte em Espanha e parte em Portugal, por artes de uma guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum, se completos ou manetas, se inteiros ou mancos, salvo se deixar membros cortados no campo ou vidas perdidas não é apenas sina de quem tiver de nome soldado e para se sentar o chão ou pouco mais. Saiu Sete-Sóis de Évora, passou Montemor, não leva por companhia e ajuda frade ou diabinho, e para mão furada já lhe basta a sua. Veio andando devagar. Não tem ninguém à sua espera em Lisboa, e em Mafra, donde partiu anos atrás para assentar praça na infantaria de sua majestade, se pai e mãe se lembram dele, julgam-no vivo porque não têm notícias de que esteja morto, ou morto porque as não têm de que seja vivo. Enfim, tudo acabará por saber-se com o tempo. Agora faz sol, não tem chovido, e os matos estão cobertos de flores, os pássaros cantam. Baltasar Sete-Sóis leva os ferros no alforge porque há momentos, horas inteiras, em que sente a mão como se ainda a tivesse na ponta do braço e não quer roubar a si próprio a felicidade de se achar inteiro e completo como inteiros e completos se hão-de sentar Carlos e Filipe em seus tronos, afinal haverá para os dois, quando a guerra acabar. A Sete-Sóis basta-lhe, para seu contentamento, e desde que não olhe onde lhe falta, a comichão que sente na ponta do dedo indicador, e imaginar que está coçando com o polegar o sítio onde lhe come. E quando esta noite sonhar, se a si próprio se olhar no sono, ver-se-á sem que nada lhe falte e poderá apoiar a cabeça cansada nas palmas das duas mãos.

Também por outra interesseira razão traz Baltasar os ferros guardados. Aprendeu rapidamente que com eles postos, em particular o espigão, lhe escusam a esmola, ou dão-lha sovina, ainda que a alguma moeda sempre forçados pela espada que leva à cintura, descaída sobre a anca, apesar de que espada toda a gente a usa, até os pretos, porém não com este perfeito ar de quem aprendeu a servir-se dela, agora mesmo se for preciso. E se o número de viajantes não equilibra a desconfiança causada por aquele vulto que no meio do caminho, cortando a passagem, pede auxílio para um soldado a quem cortaram a mão e só por milagre não a vida, se quem vem teme que a súplica possa mudar-se em assalto, a esmola sempre cai na mão que resta, é o que vale a Baltasar, ter ainda a mão direita.

Passado Pegões, à entrada dos grandes pinheirais onde começa a terra de areia, Baltasar, ajudando-se com os dentes, ata ao coto o espigão, que fará, urgindo a necessidade, as vezes de adaga, em tempo que foi esta proibida por ser arma facilmente mortal. Sete-Sóis tem, por assim dizer, carta de privilégio, e, duplamente armado de espigão e espada, mete-se ao caminho, na penumbra das árvores. Matará adiante um homem, de dois que o quiseram roubar, mesmo tendo-lhes ele gritado que não levava dinheiros, porém, vindo nós de uma guerra onde vimos morrer tanta gente, não é este caso que mereça relato singular, salvo ter Sete-Sóis trocado depois o espigão pelo gancho para mais facilmente arrastar o morto para fora do caminho, assim ficando experimentados os préstimos de ambos os ferros. O salteador safo seguiu-o ainda por meia légua entre os pinheiros, por fim desistiu, e só de longe lhe lançou palavras de insulto e maldição, porém, como quem não acreditava que umas empecessem e outras ofendessem.

Quando Sete-Sóis chegou a Aldegalega, estava anoitecendo. Comeu umas sardinhas fritas, bebeu uma tigela de vinho, e, não lhe chegando o dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa, para a passagem amanhã, meteu-se num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu, enrolado no capote, mas com o braço esquerdo de fora e o espigão armado. Passou a noite em paz. Sonhou com o choque de Jerez de los Caballeros, que os portugueses desta vez irão vencer porque à frente deles avança Baltasar Sete-Sóis segurando na mão direita a mão esquerda cortada, prodígio para que os espanhóis não têm escudo nem esconjuro. Quando acordou, não havia ainda então luzeiro de madrugada no levante do céu, sentiu umas grandes dores na mão esquerda, nem era para admirar, com um espigão de ferro ali espetado. Desatou as correias, e, podendo tanto a ilusão, muito mais sendo noite, e espessa a treva debaixo dos carros, não ver Baltasar as suas duas mãos, não significava que não estivessem lá Ambas. Aconchegou com o braço esquerdo o alforge, enroscou-se no capote e tornou a adormecer. Ao menos livrara-se da guerra. Com menos um bocado, mas vivo.

Na claridade do primeiro alvorecer, levantou-se. O céu estava muito limpo, transparente até às últimas e pálidas estrelas. Era um bonito dia para entrar em Lisboa, com bom tempo para lá ficar ou continuar viagem, logo veria. Meteu a mão ao alforge, tirou as botas arruinadas que em todo o caminho ,do Alentejo nunca calçara, e calçasse-as ele nesse mesmo caminho teriam ficado, e pedindo à mão direita habilidades novas, com o frouxo amparo que o coto, ainda em primeira aprendizagem, podia oferecer, conseguiu acomodar os pés, se pelo contrário não ia sacrificá-los em bolhas e roeduras, tão antigo era o hábito de andarem descalços, em sua vida de paisano, ou, no tempo militar, quando a impedimenta nem para jantar tinha sola, quanto mais para botas. não há pior vida que a do soldado.

Quando chegou ao cais, era já sol-fora. Começara a vazante, o mestre da barca gritava que ia largar não tarda, Está a maré boa, quem embarca para Lisboa, e Baltasar Sete-Sóis correu pela prancha, tilintavam-lhe os ferros dentro do alforge, e quando um gracioso disse que o maneta levava as ferraduras no saco, se calhar para as poupar, olhou-o de revés, meteu a mão direita e tirou o espigão, onde, agora bem se via, se não era aquilo sangue seco, era o diabo que o fingia. O gracioso desviou os olhos, encomendou-se a S. Cristóvão, que defende de maus encontros e acidentes de viagem, e dali até Lisboa não abriu mais o bico. Uma mulher que calhou ir sentada ao lado de Sete-Sóis, com o marido, desatou o farnel do almoço, e se à vizinhança ofereceu por comprazer, mas nenhuma vontade de repartir, com o soldado insistiu tanto, que ele aceitou. Baltasar não gostava de comer diante de gente, com aquela sua mão direita que sozinha parecia canha, o pão que escorregava, o conduto que caía, mas a mulher ajeitou-lhe a comida em cima duma larga fatia e assim, alternando o uso dos dedos com a ponta da faquita que tirara do bolso, pôde comer com descanso e suficiente asseio. A mulher tinha idade para ser sua mãe, o homem para ser seu pai, não se tratava ali de nenhum namoro sobre as águas do Tejo, nas barbas de involuntário ou consentidor pau-de-cabeleira. Apenas alguma fraternidade, dó de quem vem da guerra aleijado para sempre.

O mestre levantara uma pequena vela triangular, o vento ajudava a maré, e ambos o barco. Os remadores, frescos da noite dormida e da aguardente bebida, remavam certo e sem pressa. Quando dobraram a ponta de terra, a barca foi apanhada na força da corrente e da vazante, parecia uma viagem para o paraíso, com o sol relampejando na superfície da água e duas famílias de toninhas, qual uma, qual outra, cruzando à frente da barca, escuros os seus lombos luzidios, arqueados como se imaginassem o céu perto e lhe quisessem chegar. Na outra margem, assente sobre a água, ainda longe, Lisboa derramava-se para fora das muralhas. Via-se o castelo lá no alto, as torres das igrejas dominando a confusão das casas baixas, a massa indistinta das empenas. E o mestre começou a contar, Boa foi a que sucedeu ontem, quem quer ouvir, e todos queriam, sempre era um modo de passar o tempo, que a viagem não é curta, Então foi assim, começou o mestre, chegou aí uma frota inglesa, que está além, em frente da praia de Santos, e traz tropas que hão-de ir para a Catalunha, para a guerra, com as outras que cá estavam à espera, mas veio também com ela um navio que trazia uns casais de facinorosos desterrados para a ilha das Barbadas, e umas cinquenta mulheres de má vida que para lá também iam, a fazerem casta, que em terras dessas tanto monta honrada como desonrada, mas o capitão do navio entendeu, diabo do homem, que em Lisboa a poderiam fazer melhor e assim se aligeirou da carga, mandou pôr as mulheres em terra, com o corpinho que têm, que algumas vi-as eu, não era nada má a inglesia. Riu-se de gosto antecipado o mestre, como se estivesse fazendo seus próprios planos de navegação carnal e calculando os proveitos da abordagem, riram grosso os remadores algarvios, Sete-Sóis espreguiçou-se como um gato ao sol, a mulher do farnel fez que não ouvira, o marido estava sem saber se havia de achar graça à história ou ficar sério, justamente porque histórias destas já a sério as não podia tomar, se alguma vez pudera, vivendo longe, em terra de Pancas, onde, do nascer ao morrer, é sempre o mesmo rego da charrua, a própria e a figurada. E, pegando numa ideia, depois noutra, por alguma razão desconhecida as ligando, perguntou ao soldado, E vossemecê, que idade tem, e Baltasar respondeu, Vinte e seis anos.

Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora alta de muros e de casas. A barca aproou à Ribeira, fez o mestre manobra para encostar ao cais depois de ter arreado a vela, e os remadores levantaram num só movimento os remos do lado da atracação, os do outro lado harpejaram a amparar, mais um toque no leme, um cabo lançado por cima das cabeças, foi como se se tivessem juntado as duas margens do rio. Estando vaza a maré, ficava alto o cais, e Baltasar ajudou a mulher do farnel e o seu homem, de peito feito pisou o gracioso que não tugiu nem mugiu, e, alçando a perna, num só impulso se achou em firme.

Havia uma confusão de muletas e caravelões que descarregavam peixe, os olheiros gritavam e maltratavam de palavras e algum safanão os carregadores pretos que passavam ajoujados, encharcados pela água que escorria das grandes alcofas, com a pele dos braços e da cara salpicada de escamas. Parecia que tinham vindo juntar-se no mercado todos os moradores de Lisboa. A Sete-Sóis crescia-lhe a água na boca, era como se uma fome acumulada em quatro anos de campanha militar estivesse saltando agora os diques da resignação e da disciplina. Sentiu o estômago aos torcegões, inconscientemente procurou com os olhos a mulher do farnel, onde é que ela já iria, mais o seu sossegado marido, este provavelmente a mirar as fêmeas que passavam, a adivinhar se eram inglesas e de má vida, um homem precisa de fazer a sua provisão de sonhos.

Com pouco dinheiro no bolsilho, umas só moedas de cobre que soavam bem menos que os ferros do alforge, desembarcado numa cidade que mal conhecia, tinha Baltasar de resolver que passos daria a seguir, se a Mafra onde não poderia a sua única mão pegar numa enxada que requer duas, se ao paço onde talvez lhe dessem uma esmola por conta do sangue perdido. Alguém lhe tinha dito isto em Évora, mas também lhe foram dizendo que era necessário pedir muito e por muito tempo, com muito empenho de padrinhos, e apesar disso muitas vezes se apagava a voz e acabava a vida antes que se visse a cor ao dinheiro. Na falta, aí estavam as irmandades para a esmola e as portarias dos conventos que proviam ao caldo e ao tassalho do pão. E um homem a quem falte a mão canhota não tem muito de que se queixar se ainda lhe ficou a destra para pedir a quem passa. Ou exigir com um ferro aguçado.

Sete-Sóis atravessou o mercado do peixe. As vendedeiras gritavam desbocadamente aos compradores, provocavam-nos, sacudiam os braços carregados de braceletes de ouro, batiam juras no peito onde se reuniam fios, cruzes, berloques, cordões, tudo de bom ouro brasileiro, assim como os longos e pesados brincos ou argolas, arrecadas ricas que valiam a mulher. Mas, no meio da multidão suja, eram miraculosamente asseadas, como se as não tocasse sequer o cheiro do peixe que removiam às mãos cheias. A porta duma taberna que ficava ao lado da casa dos diamantes, Baltasar comprou três sardinhas assadas, que, sobre a indispensável fatia de pão, soprando e mordiscando, comeu enquanto caminhava em direcção ao Terreiro do Paço. Entrou no açougue que dava para a praça, a regalar a vista sôfrega nas grandes peças de carne, nos bois e porcos abertos, quartos inteiros pendurados dos ganchos. A si próprio prometeu um festim de viandas quando lhe desse o dinheiro para isso, não sabia então que ali viria a trabalhar, um dia próximo, e que deveria o emprego, a padrinho sim, mas também ao gancho que trazia no alforge, tão prático para puxar uma carcaça, para escoar umas tripas, para arredar umas mantas de gordura. Tirando a sangueira, o lugar é limpo, com as paredes forradas de azulejos brancos, e se o homem da balança não enganar no peso, com outros enganos ninguém dali sai, porque em qualidades de macieza e saúde é muito verdadeira a carne.

Aquilo além é o palácio do rei, está o palácio, o rei não está, anda a caçar em Azeitão, com o infante D. Francisco e os seus outros irmãos, mais os criados da casa, e os reverendos padres jesuítas João Seco e Luís Gonzaga, que decerto não foram só para comer e rezar, talvez quisesse el-rei refrescar as lições de matemáticas e latinidades que deles, quando príncipe, recebeu. Levou também sua majestade uma espingarda nova, que lha fez João de Lara, mestre de armas dos armazéns do reino, obra fina, adamasquinada de prata e ouro, que se a perder em caminho tornará prestes a seu dono, pois tem ao comprido do cano, em boa letra romana embutida, como a do frontão de S. Pedro de Roma, estes dizeres explicados SOU DE EL-REI NOSSO SENHOR AVE DEUS GUARDE DOM JOAM O V, todos em maiúsculas, como se copia, e ainda dizem que as espingardas só sabem falar pela boca e em linguagem de pólvora e chumbo. Essas são as comuns, como foi a de Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, agora desarmado e parado no meio do Terreiro do Paço, a ver passar o mundo, as liteiras e os frades, os quadrilheiros e os mercadores, a ver pesar fardos e caixões, dálhe de repente uma grande saudade da guerra, e se não fosse saber que não o querem lá, ao Alentejo voltaria neste instante, mesmo adivinhando que o esperava a morte.

Meteu-se Baltasar pela rua larga, em direcção ao Rossio, depois de ter entrado na igreja de Nossa Senhora da Oliveira, onde assistiu a uma missa e trocou sinais com uma mulher sozinha que dele se agradou, divertimento aliás geral, porque, mulheres a um lado, homens ao outro, recados, gestos de mão, movimentos de lenço, trejeitos de boca, piscadelas de olhos, não faziam mais, se não é pecado fazer tanto, que transmitir mensagens, combinar encontros, pactuar acordos, mas vindo Baltasar de tão longe, afalcoado do caminho, sem dinheiros para manjares-do-céu e fitas de seda, não foi por diante com o namoro, e, saindo da igreja, meteu pela rua larga, em direcção ao Rossio. Era este um dia de mulheres, como se confirmava pela dúzia delas que vinham saindo duma rua estreita, rodeadas de quadrilheiros pretos que as tocavam para a frente, com um corregedor de vara na mão, e eram quase todas louras, de claros olhos, azuis, verdes, cinzentos, Quem são estas, perguntou Sete-Sóis, e quando um homem cerca lho disse, já ele estava acertando que seriam inglesas levadas ao navio donde por fraude do capitão haviam sido largadas, e que remédio agora senão irem para as ilhas Barbadas, em vez de ficarem nesta boa terra portuguesa, tão favorecedora de putas estrangeiras, ofício que se ri das confusões de Babel, porque nas oficinas dele se pode entrar mudo e sair calado, desde que antes tenha falado o dinheiro. Mas o mestre da barca dissera que eram ao todo umas cinquenta e ali não iam mais que doze, Que é das outras, e o homem respondeu, Já apanharam umas tantas, mas não as levam todas, porque algumas se esconderam muito bem escondidas, se calhar a esta hora já sabem se há diferença entre ingleses e portugueses. Seguiu Baltasar o seu caminho, fazendo a S. Bento promessa de um coração de cera se lhe pusesse adiante, ao menos uma vez na vida, uma inglesa loura, de olhos verdes, e que fosse alta e delgada. Se no dia da festa daquele santo vai a gente bater-lhe à porta da igreja a pedir que não falte o pão, se as mulheres que querem arranjar bons maridos mandam rezar-lhe missas às sextas-feiras, que mal tem que peça um soldado a S. Bento uma inglesa, ao menos uma vez, para não morrer ignorante.

Baltasar Sete-Sóis girou pelos bairros e praças durante toda a tarde. Foi beber um caldo à portaria do convento de S. Francisco da Cidade, informou-se das irmandades mais generosas na esmola, retendo três delas para ulterior averiguação, a de Nossa Senhora da Oliveira, onde já estivera, que era a dos confeiteiros, a de Santo Elói, dos ourives da prata, e a do Menino Perdido, por alguma semelhança que consigo encontrava, mesmo lembrando-se tão pouco de ter sido menino, perdido sim, se me acharão um dia.

Caiu a noite, e Sete-Sóis foi procurar onde dormir. Já então se tinha ligado de amizade com outro antigo soldado, mais velho de anos e experiência, chamava-se este João Elvas, agora com modo de vida na rufiagem, que justamente se acoitava para a noite, estando suave o tempo, nuns telheiros abandonados, rentes com os muros do convento da Esperança, para o lado do olival. Fez-se Baltasar hóspede de ocasião, sempre era um amigo novo, uma companhia para a conversa, mas, pelo sim pelo não, dando como desculpas convir-lhe muito aliviar o braço são do peso do alforge, encairou o gancho no coto, não querendo ofuscar João Elvas e mais quadrilha com o espigão, arma mortal, como sabemos. Ninguém lhe fez mal, e eram seis debaixo do telheiro, e ele não fez mal a ninguém.

Enquanto não adormeceram, falaram de crimes acontecidos. Não dos seus próprios, cada qual sabe de si, Deus saberá de todos, mas dos de gente principal, sem castigo quase sempre quando conhecidos os autores, e sem escrúpulo extremo da justiça nas averiguações se fora misterioso o acto. Ladrãozito, briguento, matador de a real e meio, se não havia perigo de soltar este a língua para denunciar o mandante, esses malhavam com os ossos no Limoeiro, e ainda assim tinham as sopas garantidas, tanto como a merda e o mijo em que viviam. A pontos de há pouco tempo terem soltado uns cento e cinquenta de culpas menos pesadas, que então estavam no Limoeiro, por junto, mais de quinhentos, com as muitas levas de homensque vieram para a Índia e que acabaram por não ser necessários, e era tanto o ajuntamento, e a fome tanta, que se declarou uma doença que nos ia matando a todos por isso soltaram aqueles, um deles sou eu. E outro disse, Isto é terra de muito crime, morre-se mais que na guerra, é o que diz quem lá andou, e tu que dizes, Sete-Sóis, e Baltasar respondeu, Vi como se morre na guerra, não sei como se morre em Lisboa, por isso não posso comparar, mas que fale aí o João Elvas, tanto sabe de praças de guerra como de praças de gente, e João Elvas só encolheu os ombros, não disse nada. Tornou a conversa ao ponto primeiro, e foi contado o caso do dourador que deu uma facada numa viúva com quem queria casar, e não queria ela, que por castigo de não coroar o desejo do homem ficou morta, e ele foi-se meter no convento da Trindade, e também aquela desventurada mulher que tendo repreendido o marido de descaminhos em que andava, lhe passou ele uma espada de parte a parte, e mais o que aconteceu ao clérigo que por história de amores levou três formosas cutiladas, tudo em tempo de Quaresma, que é sazão de sangue ardido e humor retraído, como se tem averiguado. Mas Agosto também não é bom, como ainda o ano passado se viu, quando aí apareceu uma mulher cortada em catorze ou quinze pedaços, nunca se chegou a saber a conta, o que se percebia é que tinha sido açoitada com muita crueldade nas partes fracas, como traseiras e barriga das pernas, cortadas fora, separadas dos ossos, os pedaços foram deixados na Cotovia, metade postos nas obras do conde de Tarouca, e os outros abaixo nos Cardais, mas tão manifestos que facilmente foram encontrados, nem os enterraram, nem os deitaram ao mar, parecia que de propósito os deixavam à vista, para que fosse geral o horror.

Tomou então a palavra João Elvas, que declarou, Foi grande chacina, e deve ter sido feita em vida da infeliz, porque teria sido rigor demasiado tratar assim um cadáver, e porquê, quando o que ali se via era o retalhado das partes sensíveis e menos mortais, só alguém de coração mil vezes danado e perdido pode ter praticado tal crime, nunca na guerra viste uma coisa assim, Sete-Sóis, mesmo não sabendo eu o que na guerra viste, e o que começara a contar o caso pegou nesta vírgula e continuou, Depois foram aparecendo as partes que faltavam, ao outro dia achou-se na Junqueira a cabeça e uma mão, e um pé à Boavista, e por mão, pé e cabeça se viu ser pessoa mimosa e bem criada, mostrava o rosto ter de idade não mais que dezoito, vinte anos, e no saco onde apareceu a cabeça vinham as tripas e mais partes interiores, e os seios, cortados como laranjas, e com eles uma criança que mostrava três ou quatro meses, estrangulada com um cordão de seda, em Lisboa tem-se visto muito, nunca um caso assim.

Tornou João Elvas, acrescentando o que do sucesso sabia, El-rei mandou pôr cartéis com promessa de que se dariam mil cruzados a quem descobrisse os culpados, mas já lá vai quase um ano e nunca se descobriram, pudera, que logo toda a gente viu que deviam ser pessoas com quem se não havia de entender, que os tais homicidas não eram sapateiros nem alfaiates, que estes só nas bolsas fazem cortes, e os da tal mulher foram feitos com tal arte e ciência, sem se errar nenhuma junta de tantas partes do corpo que se lhe cortaram, quase osso por osso, que os cirurgiões chamados à vistoria disseram que aquilo fora feito por pessoa peritíssima na arte anatómica, só não confessaram que nem eles sabiam tanto. Por trás do muro do convento ouviam-se ladainhar as freiras, mal sabem elas do que se livram, parir um filho e tão violentamente pagar por ele, então Baltasar perguntou, E não veio a saber-se mais, nem quem fosse a mulher, Nem dela nem dos homicidas houve notícia, puseram-lhe a cabeça na porta da Misericórdia para ver se alguém a conhecia, foi o mesmo que nada, e um dos que ainda não tinham falado, de barbas mais brancas do que negras, disse, Deviam de ser de fora da corte, se fossem moradores nela dava-se pela falta da mulher e começavam a murmurar, terá sido algum pai que determinou matar a filha por causa de desonra e a mandou trazer, espedaçada, em cima de mula ou escondida a carniça numa liteira, para a espalhar na cidade, se calhar, lá onde mora, enterrou um porco a fingir que era a assassinada, e disse que a sua pobre filha tinha morrido de bexigas, ou de humores corruptos, para não ter de abrir a mortalha, ele há gente capaz de tudo, até do que está por fazer.

Calaram-se os homens, indignados, das freiras não se ouvia agora um suspiro, e Sete-Sóis declarou, na guerra há mais caridade, A guerra ainda está uma criança, duvidou João Elvas. E não havendo mais que dizer depois desta sentença, puseram-se todos a dormir.

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