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Memorial do Convento José Saramago

Bem servido de milagres, igualmente. Ainda é cedo para falar deste que se prepara, aliás milagre não tanto, mas simples obséquio divino, descimento de olhar piedoso e propiciatório para um ventre sáfaro, qual há-de ser o nascimento do infante na hora própria, mas é justamente tempo de mencionar veros e certificados milagres que, por virem da mesma e ardentíssima sarça franciscana, bem auguram da promessa do rei.

Veja-se o célebre caso da morte de frei Miguel da Anunciação, provincial eleito que foi da ordem terceira de S. Francisco, cuja eleição, diga-se de passagem, mas não fora de propósito, se fez com acesa guerra que contra ela e ele levantou a Paroquial de Santa Maria Madalena, por obscuros ciúmes, em tal sanha que à morte de frei Miguel ainda corriam pleitos e não se sabe quando, de vez, seriam julgados, se é que teriam fim, entre sentença e recurso, entre conselho e agravo, até que a morte viesse encerrar o processo, como veio a suceder. É certo que não morreu o frade de coração despedaçado, mas de maligna, que seria tifo ou tifóide, senão outra febre sem nome, remate comum de vida em cidade de tão poucas fontes de água para beber e onde os galegos não se duvidam de ir encher os barris à fonte dos cavalos, e assim morrem imerecidamente provinciais. Porém, era frei Miguel da Anunciação de tão compassiva natureza que, mesmo depois de morto, pagou o mal com o bem, e se vivo fizera caridades, defunto obrava maravilhas, sendo a primeira desmentir os médicos que temiam se corrompesse o corpo aceleradamente e por isso recomendaram abreviada sepultura, que não se corrompeu tal o carnal despojo, antes por espaço de três dias inteiros embalsamou a igreja de Nossa Senhora de Jesus onde esteve exposto, com suavíssimo cheiro, e não se lhe enrijeceu o cadáver, pelo contrário, brandamente os membros todos se deixavam mover, como se vivo estivesse.

Segundas e terceiras maravilhas, mas de valor primeiríssimo, foram os milagres propriamente ditos tão assinalados e ilustres que acorreu o povo de toda a cidade a observar o prodígio e a aproveitar dele, pois se autentica que na dita igreja foi dada vista a cegos e pés a mancos, e era tanta a afluência de mundo que nos degraus do adro se davam punhadas e punhaladas para entrar, de que alguns perderam a vida, que depois nem por milagre lhes seria restituída. Ou talvez sim, se, passados três dias, e sendo grande o alarme, dali não tivessem levado o corpo, às ocultas, e às ocultas o enterraram. Privados da esperança de cura enquanto não constasse o passamento doutro bem-aventurado, no mesmo lugar se esbofetearam de desespero e fé lograda mudos e manetas, se a estes lhes sobrava mão, em gritos todos e invocações a quantos santos, até que os padres saíram fora a benzer o ajuntamento, e com essa suficiência, à falta de melhor, se foram uns e outros.

Mas isto, confessemo-lo sem vergonha, é uma terra de ladrões, olho vê, mão pilha, e sendo a fé tanta, ainda que nem sempre recompensada, maior é o descaro e a impiedade com que se salteiam igrejas, como foi ainda o ano passado em Guimarães, também na de S. Francisco, que, por tão vultosos bens ter desprezado em vida, tudo consente que lhe levem na eternidade, o que vale à ordem é a vigilância de Santo António, que esse resigna-se mal a que lhe rapem altares e capelas onde estiver, como em Guimarães se viu e em Lisboa se há de ver.

Naquela cidade foram, pois, os ladrões a roubar, subindo para esse efeito a uma janela, aonde logo o santo lepidamente os veio receber com isso lhes pregando um tal susto que fez cair desamparado o que mais alto na escada estava, é certo que sem nenhum osso partido, mas tolhidinho de tal maneira que não se pôde mexer mais, e querendo os companheiros levá-lo dali, que também entre ladrões não são raros os corações generosos e abnegados, não o conseguiram, caso aliás não inédito, porque já sucedido a Inês, irmã de Santa Clara, quando ainda S. Francisco andava pelo mundo, precisamente há quinhentos anos, em mil duzentos e onze, mas não era de roubo o caso dela, ou de roubo seria, porque ao Senhor a queriam roubar. Ali ficou o ladrão, como se a mão de Deus o estivesse espalmando contra o chão ou a garra do Diabo o filasse das profundas, ali ficou até de manhã, quando deram com ele os moradores e depois o levaram, já sem custo e com o seu peso natural, ao altar do mesmo santo para que o sarasse, milagre obrado por forma original, pois se viu suar copiosamente a imagem de Santo António e. durante tanto tempo que deu para virem juízes e escrivães autenticar juridicamente o prodígio, que foi este de suar madeira e também de curar-se o ladrão por lhe passarem na cara uma toalha humedecida do humor bento. E com isto ficou o homem são, salvo e arrependido.

Porém, nem todos os delitos chegam a averiguar-se. Em Lisboa, por exemplo, não tendo o milagre sido menos notório, ainda hoje está por apurar quem foi o do assalto, embora sejam permitidas algumas desconfianças, porventura absolvidas, e quem delas for objecto, pela boa intenção que derradeiramente o motivou. Foi o caso que no convento de S. Francisco de Xabregas entraram gatunos, ou gatuno entrou, pela clarabóia de uma capela contígua com a de Santo António, e foi, ou foram, ao altar-mor, e as três lâmpadas que lá estavam se sumiram pelo mesmo caminho em menos de um credo. Despendurar as lâmpadas dos ganchos, carregar com elas às escuras por maior cautela, arriscar tropeções, tropeçar mesmo e fazer ruído sem que ninguém acudisse a indagar do rebuliço, seria suspeito prodígio ou cumplicidade de algum santo transviado se não fosse estarem, nessa mesma hora, a campa e a matraca em seu costumado tumulto para se despertarem os frades e irem às matinas da meia-noite. Por isso pôde o ladrão escapar a seu salvo, e se mais barulho fizera, não lho teriam ouvido, por aqui se vendo como o assaltante conhecia bem os costumes da casa. Começaram os frades a entrar na igreja e deram com ela às escuras. Já o irmão responsável se estava conformando com o castigo que não deixaria de ser-lhe aplicado por uma falta que não saberia explicar, quando se observou, e confirmou pelo tacto e cheiro, que não era o azeite que faltava, ali derramado pelo chão, mas sim as lâmpadas, cujas eram de prata. O desacato ainda estava fresco, se assim se pode dizer, pois as correntes de onde tinham estado suspensas as roubadas lâmpadas oscilavam devagarinho, dizendo, em linguagem de arame, Foi por pouco, foi por pouco.

Saíram logo alguns religiosos às estradas de em torno, repartidos em patrulhas, que se apanham o ladrão não se sabe o que misericordiosamente lhe fariam, mas não deram nem com o rasto dele, ou da quadrilha, se o era, caso que não devemos estranhar, porquanto passava já então da meia-noite e a lua estava em seu minguante. Esbaforiram-se os frades a correr as cercanias, a passo de carga, e enfim regressaram ao convento, de mãos a abanar. Entretanto, outros religiosos, pensando que podia o ladrão, por fina astúcia, ter-se escondido na igreja, deram-lhe uma volta completa desde o coro à sacristia, e foi quando andavam neste alvoroçado esquadrinhar, toda a congregação atropelando sandálias e fraldas de hábito, levantando tampas de arcazes, arredando armários, sacudindo paramentos, que um frade velho, conhecido por virtuosa vida e brava religião, reparou que o altar de Santo António não fora tocado pelas gatunas mãos, apesar de ser nele abundantíssima a prata, rica de peso, lavor e pureza. Estranhou o pio homem, e estranharíamos nós se lá estivéssemos, porque, sendo manifesto que por aquela clarabóia de além entrou o ladrão e ao altar-mor foi roubar as lâmpadas, teve de passar diante da capela de Santo António que ao meio estava. Com mais do que razão se achou então o frade, inflamado em zelo, ao voltar-se para Santo António, increpando-o como a servo que descuidasse as suas obrigações, E vós, santo, só guardais a prata que vos toca, e deixais levar a outra, pois em paga disso não vos há-de ficar nenhuma, e ditas estas violentíssimas palavras, foi-se à capela e começou a despi-la toda, tirando não só as pratas, mas as toalhas e adornos, e não só à capela, mas também ao próprio santo, que viu levaremlhe a auréola de tirar e pôr, e a cruz, e que ficaria sem o menino ao colo se outros religiosos não tivessem acudido, achando a punição excessiva e advertindo que o deixasse para consolação do pobre castigado. Meditou um pouco o frade na advertência, e rematou, Pois fique como seu fiador, enquanto não restituir o Santo as lâmpadas. E como isto já era pelas duas depois da meia-noite, tempo gasto nas buscas e finalmente no recriminatório lance relatado, recolheram-se os frades e foram dormir, alguns temendo que viesse Santo António a tirar desforra do insulto.

Ao outro dia, aí pelas onze horas dele, bateu à portaria do convento um estudante, cujo convém dizer logo que desde há tempos andava pretendendo o hábito da casa, frequentando com grande assiduidade os frades dela, e esta informação se dá, primeiro, por ser verdadeira e sempre servir a verdade para alguma coisa, e, segundo, para auxiliar quem se dedique a decifrar actos cruzados, ou palavras cruzadas quando as houver, enfim, bateu v estudante à portaria e disse que queria falar ao prelado. Levaram-no à presença, beijou-lhe a mão ou v cordão do hábito, se não a fímbria, isto não se averiguou bem, e declarou ter ouvido dizer na cidade que as lâmpadas estavam no mosteiro da Cotovia, dos padres da Companhia de Jesus, além no Bairro Alto de S. Roque. Duvidou o prelado, logo pela manifesta insuficiência do portador da notícia, um estudante que só não era bargante por tanto aspirar a ser frade. embora não seja assim tão raro encontrar-se nisto aquilo, e depois pela inverosimilhança de se ir restituir à Cotovia o que se furtara em Xabregas, sítios tão opostos e distantes, ordens tão pouco parentes, na distância quase uma légua a voo de pássaro, e no resto uns de preto, outros de castanho, ainda isso seria o menos, pela casca não se conhece o fruto se lhe não tivermos metido o dente. Mandava porém a prudência que se averiguasse o aviso, e assim foi um religioso grave, acompanhado do dito estudante, de Xabregas à Cotovia, ambos a pé, entrando na cidade pela Porta de Santa Cruz, e se para completa ciência do caso importa saber que outro caminho tomaram até ao destino, diga-se então que passaram rente à igreja de Santa Estefânia, depois ao lado da igreja de S. Miguel, e depois da igreja de S. Pedro entraram a porta que lhe tem o nome, posto o que desceram na direcção do rio pelo Postigo do Conde de Linhares, depois a direito, pela Porta do Mar, ao Pelourinho Velho, são nomes e lugares de que só ficou recordação, evitaram a Rua Nova dos Mercadores por ser grave o religioso e de prática usurária o sítio até hoje, e tendo passado à ilharga do Rossio, foram dar ao Postigo de S. Roque, e enfim à Cotovia, onde bateram e entraram, e sendo conduzidos ao reitor disse o frade, Este estudante que aqui vem comigo foi dizer a Xabregas que estão cá as nossas lâmpadas, ontem à noite roubadas. Assim é, pelos sinais que me foram dados, eram aí umas duas horas bateram à portaria com muita força, e perguntando o porteiro de dentro o que queriam, respondeu uma voz que abrisse logo a porta porque se daria ali uma restituição, e tendo o porteiro vindo a dar-me notícia do insólito caso, mandei abrir a porta e achámos as tais lâmpadas, um tanto amassadas e partidas nas guarnições, aqui estão, se lhes falta alguma coisa, já estava faltando quando foram deixadas, E viram quem foi o da chamada, Isso não vimos, ainda foram padres à estrada, mas não encontraram ninguém.

Regressaram as lâmpadas a Xabregas, e agora pense cada um de nós o que quiser. Terá sido o estudante, afinal tunante e bargante, que delineou o estratagema para poder entrar as portas e vestir o hábito franciscano como de facto veio a vestir, e por isso roubou e foi entregar, com muita esperança. de que a bondade da intenção lhe perdoasse a fealdade do pecado no dia do juízo final. Terá sido Santo António que, tendo cometido até hoje tantos e tão variados milagres, também podia ter feito este, ao verse dramaticamente despojado das pratas pelo furor sagrado do frade, que bem sabia a quem intimava, como igualmente o sabem os barqueiros e marinheiros do Tejo, que quando o santo lhes não satisfaz as vontades nem lhes premeia os votos o castigam mergulhando-o de cabeça para baixo nas águas do rio. Não será tanto pela incomodidade, porque um santo merecedor desse nome é tão capaz de respirar a pulmões o ar de nós todos como a guelras a água que é céu dos peixes, mas a vergonha de saber expostas as plantas humildes dos pés ou o desânimo de ver-se sem pratas e quase sem Menino Jesus, fazem de Santo António o mais milagroso dos santos, mormente para encontrar coisas perdidas. Enfim, saia o estudante absolvido desta suspeita, se não vier a achar-se noutra igualmente duvidosa.

Com tais precedentes, sendo tão favorecidos os franciscanos de meios para alterarem, inverterem ou acelerarem a ordem natural das coisas, até a matriz renitente da rainha obedecerá à fulminante injunção do milagre. Tanto mais que convento em Mafra o anda a querer a ordem de S. Francisco desde mil seiscentos e vinte e quatro, ainda estava rei de Portugal um Filipe espanhol, que, apesar de o ser e portanto dever dar-lhe só cuidado mínimo a fradaria de cá, pelos dezasseis anos que conservou a realeza nunca deu consentimento. Não cessaram por isso as diligências, meteu-se no empenho o valimento dos nobres donatários da vila, mas parecia que andava exaurida a potência e embotada a pertinácia da Província da Arrábida, que ao convento aspirava, pois ainda ontem, que tanto se pode dizer do que apenas há seis anos aconteceu, em mil setecentos e cinco, deu parecer desfavorável o Desembargo do Paço a nova petição, e com não pequeno atrevimento se exprimiu, se não desrespeito pelos interesses materiais e espirituais da Igreja, ousando considerar não ser conveniente a pretendida fundação por estar o reino muito onerado de conventos mendicantes, e por muitos outros inconvenientes que a prudência humana sabe ditar. Lá saberiam os desembargadores que inconvenientes ditava a prudência humana, mas agora vão ter de engolir a língua e digerir o mau pensamento, que já disse frei António de S. José que convento havendo, haverá sucessão. A promessa está feita, a rainha parirá, a ordem franciscana colherá a palma da vitória, ela que do martírio tantas colheu. Cem anos à espera não será excessiva mortificação para quem conta viver a eternidade.

Vimos como em instância final saiu absolvido o estudante da suspeita do roubo das lâmpadas. Agora não se vá dizer que, por segredos de confissão divulgados, souberam os arrábidos que a rainha estava grávida antes mesmo que ela o participasse ao rei. Agora não se vá dizer que D. Maria Ana, por ser tão piedosa senhora, concordou calar-se o tempo bastante para aparecer com o chamariz da promessa o escolhido e virtuoso frei António. Agora não se vá dizer que el-rei contará as luas que decorrerem desde a noite do voto ao dia em que nascer o infante, e as achará completas. Não se diga mais do que ficou dito. Saiam então absolvidos os franciscanos desta suspeita, se nunca se acharam noutras igualmente duvidosas.

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