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Marília Rocha

Tem feito muito calor ultimamente, creio que posso responsabilizar as inúmeras queimadas que têm acontecido no país por isso. A solução para diminuir o desconforto tem sido os banhos regulares. Ah, claro, além da confortável rede. Aquele balanço me refresca às mais tenras memórias. O curioso é que elas não me remetem àqueles que tinham em sua cultura o hábito do banho diário e que desenvolveram a preguiçosa rede. Sabe de quem estou falando? Aposto que não, costumam não valorizar o espaço dos indígenas na história. Eles sempre foram meros personagens secundários. Hoje em dia, é até difícil de encontrar algum por aí.

  Aos poucos eles têm desaparecido. Não é à toa que acontecimentos como o do "dia do fogo", que ocorreu em 10 de agosto de 2019, têm se tornado mais frequentes. Nessa brincadeira de pique-esconde e de pular fogueira já sabemos quem serão os prejudicados no final. Na ocasião, fazendeiros e empresários cometeram um crime ambiental com o pretexto de apoiar o Governo Federal, logo depois que este expôs sua indiferença quanto a demarcação das terras indígenas. O que deixou mais que claro a negligência das autoridades governamentais para com etnias. 

 Desde então, sabe o que tem acontecido com as matas e as aldeias onde costumavam viver? Estão virando cinzas! Além de seus direitos à terra estarem sendo violados e vidas têm sido ceifadas. Também não sabia disso? Talvez os responsáveis por tais ações tenham dado aquele "jeitinho" que só o brasileiro sabe dar. Afinal, é melhor evitar a polêmica, até porque, quem se enxerga nos povos originários? Um pouco de empatia seria bom, mas aí seria exigir demais, não acha?

  A discriminação tem raízes históricas, difundidas de maneira sistemática. Parece até que estou lendo um livro do Quinhentismo com os relatos de ocupação da terra que não pertenciam aos europeus, pois foi nesse período que a desigualdade passou a ser uma realidade no cenário nacional. 

 Os espelhos não eram presentes, eram moedas de troca. Hoje ainda, pode-se enxergar a usurpação. E é por conta disso que eles estão perdendo o seu espaço, se tornou algo cultural o patrimônio indígena ser menosprezado. Mas não caia no erro de achar que a violência do século XV foi mais ou menos cruel que a do presente século. Afinal, qual seria a diferença entre os colonizadores do Quinhentismo e os fazendeiros que atearam fogo nas matas em 2019? Acredito que a única mudança seja o tempo em que aconteceram, pois a perversidade permanece a mesma. Foi assim que o Brasil se formou, de uma maneira autoritária, preconceituosa e repressiva para com as minorias.

 Porém, a questão é que as populações indígenas não estão tendo apenas o direito à terra violado, mas também, as suas tradições, as suas formas de viver. O lugar a que um povo pertence guarda muito mais que laços afetivos, é onde está presente a memória de quem são. Sem ela, eles perdem a sua identidade, podendo ser esquecidos pelo tempo. Não acha que chega a ser ironia que os responsáveis por boa parte da matriz social brasileira sejam os apagados da história? Creio que mais irônico que isso, só o fato de o Governo anuir com esse mal. 

 Na Constituição Cidadã, os indígenas passariam a ter os seus direitos garantidos e a sua cultura preservada. Tudo balela! Eles são mortos aos milhares por conta da invasão de suas territórios. Casos como os assassinatos de Emyra Waiãpi e Paulo Paulino Guajajara, em 2019, comprovam isso. Ambos líderes indígenas que foram mortos por madeireiros e por garimpeiros que tinham interesse em suas terras.

 E até hoje o patrimônio cultural indígena não ganhou o seu devido reconhecimento no Brasil. E isso deve-se, principalmente, a herança do preconceito colonialista que inferiorizava os povos originários e que ainda se encontra diluída nas estruturas da sociedade brasileira.

 No Romantismo, por exemplo, os indígenas foram retratados de uma maneira idealizada, "o bom selvagem". Com traços europeus, eram quase cavaleiros. Antes tivessem lhes dado armaduras a espelhos. Obras como O Guarani, de José de Alencar, evidenciam isso. O protagonista Peri é integrante de uma tribo indígena e é retratado de uma forma "europeizada". A marca que permaneceu através dos séculos é de uma identidade indígena violada. Desde 1500 até a atualidade, os povos originários têm se permitido conhecer uma cultura e novos hábitos que não são os seus, ao passo que parte da sociedade brasileira, por conta de seu legado preconceituoso, continua a ignorar essa alteridade. Quer saber de uma coisa? A verdade é que a construção da identidade indígena no Brasil foi baseada numa mentira, na deturpação das suas crenças e de suas tradições. 

 Sabe, desconstruir a visão distorcida desse povo é uma proposta um tanto desafiadora. Porque, constantemente, os indivíduos nacionais são submetidos a essas ideias errôneas, seja pelo Governo, seja pelas universidades e escolas, ou até mesmo pelo núcleo familiar. É por essa razão que cada vez mais o país caminha em direção ao ato mais cruel possível que poderia cometer com esse grupo étnico, a sua invisibilização. 

 Nesse momento, aproveitando o balançar de uma confortável rede, estou a me debruçar sobre algumas criações literárias nacionais. Como algumas poesias de Gonçalves Dias e, o até então já conhecido, O Guarani de José de Alencar. Nelas, consigo enxergar toda essa idealização. Me pergunto como essas grandiosas obras podem ter ideias tão pequenas sobre a identidade de um povo tão rico culturalmente como os indígenas? O brasileiro se diz nacionalista, mas, no final das contas, não dá o devido valor às suas verdadeiras raízes. Negar o patrimônio cultural indígena é negar a própria história brasileira. Enfim, a hipocrisia.

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